O hospital estava especialmente movimentado naquela manhã, como se todos os casos urgentes do mundo tivessem decidido aparecer no meu plantão. Eu já estava exausta, mesmo sabendo que o dia seria longo. Desde que o Dr. Mendes resolveu me punir por causa das minhas desculpas para fugir das cirurgias, os plantões pareciam ainda mais desgastantes. Ele vinha me fazendo rodar por diferentes setores, como se eu fosse uma R1 novamente. Sentia-me sendo subutilizada, presa a tarefas básicas enquanto deveria estar praticando aquilo pelo que estudei anos da minha vida: cirurgia. Mas como eu poderia reclamar, se mal conseguia segurar um bisturi sem que minhas mãos latejassem?Enquanto me dirigia ao setor de emergência para mais um atendimento, meu pensamento voltava repetidamente para Bernardo e nossas recentes discussões. Era difícil ignorar como nossas pequenas divergências vinham me abalando. A cada dia, parecia mais evidente que ele estava inclinado a deixar o país, buscando segurança para Ian
Parada em frente ao condomínio de Clarice, não pude deixar de sentir uma onda de estranheza. Já tinha estado ali algumas vezes, quando ainda considerava Clarice uma amiga. Mas agora, observando o prédio com outros olhos, tudo parecia diferente. Era um lugar sofisticado demais, caro demais para alguém que, como eu, recebia uma bolsa-auxílio. Não que fosse um valor ruim, mas não era o suficiente para sustentar uma vida de luxo em um condomínio como aquele. Em uma localização como àquela. Clarice claramente tinha outra fonte de renda. Agora, era Bernardo, claro. Mas e antes? Quem a estava bancando?Respirei fundo e me aproximei da portaria. O porteiro — ou, melhor dizendo, o segurança do prédio, com aquele ar altivo — me encarou enquanto eu explicava o motivo da minha visita. Sinceramente, não esperava que Clarice me recebesse. As coisas entre nós tinham desmoronado há muito tempo, e mesmo o fato de eu estar ali parecia uma afronta.— Pode subir, senhora — disse o segurança, com uma expr
O apartamento de Liz sempre tinha aquele toque aconchegante que me fazia sentir em casa. A luz suave que entrava pelas cortinas, o cheiro familiar de café recém passado e o tapete fofo na sala, onde Ian agora brincava, davam ao lugar uma sensação de conforto que eu desejava poder levar comigo. Coloquei Ian no chão, e ele começou a balbuciar alegremente enquanto pegava os blocos de madeira que Liz mantinha ali especialmente para ele.— Tem certeza de que quer deixar o Ian aqui o fim de semana? — Liz perguntou, segurando uma taça de vinho e me estendendo outra.Suspirei, observando Ian com um sorriso suave. Era difícil, sempre era, mas eu sabia que não tinha escolha.— Tenho, Liz. Você sabe que odeio me separar dele, mas... para aquele ninho de cobras? — Balançava a cabeça em desgosto, ainda me incomodando com a ideia de passar um fim de semana na casa dos pais de Bernardo. — Quero mantê-lo bem longe daquela gente, especialmente com Valentina lá. Vamos hoje e voltamos amanhã. À noite já
Bernardo chegou à casa de Liz com aquele sorriso descontraído que eu tanto gostava de ver em seus lábios, mas havia algo em seus olhos que denunciava um cansaço mais profundo. Ele entrou, cumprimentando Liz rapidamente, e logo pegou minha mala. Ian ainda estava brincando no chão da sala, alheio ao fato de que eu estava prestes a deixá-lo para trás.— Você está mesmo bem com isso de deixar Ian aqui? — Bernardo perguntou, enquanto eu dava um beijo de despedida na testa de nosso filho.— Sim, vai ser difícil ficar longe dele, mas é o melhor a fazer — murmurei, tentando esconder o aperto no peito. — Eu não gosto da ideia de deixá-lo, mas levar Ian para um lugar como aquele... — Suspirei, pegando minha bolsa e endireitando os ombros. — Sei que são seus pais, mas...— Mas você tem carta branca para reclamar... — Bernardo ri, me fazendo rir de volta.Liz, que estava observando em silêncio, se aproximou de mim com uma expressão preocupada. Ela sempre foi mais intuitiva, sabia quando eu estava
Assim que chegamos à casa de praia dos pais de Bernardo, senti imediatamente o contraste entre o calor do sol e a frieza do ambiente familiar que nos aguardava. Era uma casa luxuosa, com grandes janelas de vidro que permitiam uma vista deslumbrante para o mar. Mas, para mim, aquele lugar parecia mais um campo minado, onde cada passo era dado com extremo cuidado.Bernardo me guiou pela casa, seus dedos entrelaçados aos meus, enquanto seus olhos brilhavam com uma certa nostalgia ao observar o lugar que claramente trazia boas memórias para ele. Mas, no fundo, ele sabia que essa visita seria complicada. Seus pais nunca esconderam o desprezo por mim, e cada vez que estávamos juntos, o ar se tornava mais denso.— Vamos deixar nossas coisas no quarto e descer para o almoço — disse ele, abrindo a porta do quarto que ocuparíamos.Era um quarto espaçoso, com uma varanda privativa de frente para o mar. A decoração era clean e elegante, mas nada naquele ambiente me fazia sentir confortável. A sen
A noite caiu sobre a praia particular da casa dos Orsini, e a festa estava a todo vapor. A areia fina, iluminada pelas luzes âmbar penduradas em cordas ao redor, brilhava sob o céu estrelado. Uma grande fogueira estava acesa no centro, com cadeiras de madeira e sofás de tecido branco espalhados ao redor, criando um ambiente aconchegante para os convidados. O som das ondas ao fundo se misturava à música suave que tocava, enquanto parentes e amigos dos Orsini se reuniam, rindo e conversando em pequenos grupos. Era uma cena de filme, de perfeição orquestrada, mas para mim, tudo parecia estranhamente fora de lugar.Bernardo e eu chegamos juntos, de mãos dadas, mas desde que descemos do quarto para a festa, havia um desconforto crescente entre nós. Aqueles últimos dias tinham sido carregado de pequenas discussões e silêncios desconfortáveis. Cada olhar que trocávamos estava recheado de palavras não ditas. E eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, a tempestade viria.A praia estava repleta d
~BERNARDO~A brisa do mar era agradável, mas não fazia nada para aliviar a frustração que pulsava dentro de mim. A briga com Alice tinha deixado um gosto amargo persistente, que nada conseguia dissipar. Eu podia sentir os olhares dos convidados e da minha própria família, cada um tentando adivinhar o que havia se passado. Era como se cada sussurro ao meu redor aumentasse minha irritação, e o peso das especulações começava a me sufocar. Cada passo que eu dava me fazia sentir ainda mais exposto, e o incômodo crescia, queimando em silêncio.Renato se aproximou, com o desconforto estampado em seu rosto. Ele hesitava, claramente escolhendo com cuidado o que diria, enquanto eu me dirigia ao bar com passos pesados. Seus olhos me acompanhavam, incertos, como se ele soubesse que qualquer coisa dita naquele momento poderia piorar a situação. Sem saber como agir, ele optou pelo caminho mais simples: me seguir em silêncio, talvez esperando que o ambiente do bar facilitasse uma conversa menos carr
Cheguei à casa de Liz no meio da madrugada, depois de ter conseguido convencer um dos pilotos do helicóptero a me trazer de volta para o Rio. Meu corpo estava exausto, mas a mente ainda a mil, revivendo cada palavra da briga com Bernardo. A sensação de sufocamento ainda apertava meu peito, como se eu estivesse presa em um pesadelo sem fim. Liz me recebeu com um olhar preocupado, mas não tentei explicar nada. Não queria conversar. Não naquele momento. Essa era a melhor parte do meu relacionamento com a minha irmã: a gente se entendia no olhar e se respeitava.— Não precisa dizer nada, Alice — ela sussurrou, vendo o estado em que eu estava.Eu balancei a cabeça, agradecida por não ter que colocar em palavras o que estava sentindo. Assim que vi Ian no berço, me olhando com seus grandes olhinhos curiosos, foi como se o mundo ao meu redor se desfizesse. Aquele pequeno ser era tudo o que me restava de estabilidade, e eu precisava dele mais do que nunca. Sem hesitar, peguei-o nos braços, bus