Swan Song - O encontro
Swan Song - O encontro
Por: cy
Um dia dos mortos

Ally Cannon POV's

Duas convulsões.

Esse é o número necessário para acabar com quaisquer férias de família para o México. Guardei essa informação no fundo da minha mente caso alguém viesse me perguntar mais tarde. Está entediado de tanto ver imagens coloridas espalhadas sobre o Dia dos Mortos? 

Bom, eu tenho uma dica do que você pode fazer. 

Minha última lembrança era minha mãe ajoelhada ao meu lado, com diversas pessoas ao redor rezando e dizendo palavras em espanhol - que eu não entendia nenhuma, apenas "muerta", visto que o Dia de Los Muertos estava acontecendo de forma síncrona com meu drama epilético. Kelly chorava alto ao lado de minha mãe e gritava palavras sem sentido numa língua que acabara de inventar - talvez até eu pudesse lhe responder, se minha boca não estivesse espumando da forma que estava. 

Quando acordei horas mais tarde dentro de um hospital muito branco, fiquei com saudade do filtro amarelo que os filmes americanos colocam para representar qualquer país latino. Aquilo tudo era branco demais. Minha mãe dormia com as sobrancelhas franzidas ao lado do meu leito, com um casaco marrom cobrindo seu corpo. 

Eu estava numa posição que devia ficar entre estar deitada e sentada - e aquilo não era nada agradável pro meu coccix. Tentei olhar para baixo e observar meu próprio corpo. A primeira coisa que notei foram as bolas de nós que meu cabelo formara, aparentando ter perdido uma luta contra si mesmo. Meus braços estavam espetados com duas agulhas de soro e um equipamento media minha pressão no intervalo de alguns minutos - o susto que ele me dera na última vez que fizera isso tinha feito com que eu acordasse. Percebi que estava nua e usando apenas o avental fino do hospital, que era deveras confortável - fiz uma anotação mental de adquirir um para usar em casa.

Tentei analisar o ambiente ao meu redor, tentando pensar na melhor forma de fuga. A porta da frente parecia tentadora, mas considerei o duto do ar condicionado a melhor opção, uma vez que não avistava minhas roupas em nenhum lugar. Talvez se eu conseguisse o acesso de um bueiro...

—Nem pensar. - Ouvi minha mãe, Amanda, murmurar, enquanto me vigiava girando os olhos por todos os ambientes do quarto e flertando com o quadrado perfeito pelo qual saía o ar gelado - Vai ficar aqui até receber alta. 

—Ninguém precisa ficar internado por causa de uma convulsão! - protestei. 

Minha mãe me olhou, ofendida. 

—Foram duas! - Ela disse, erguendo dois dedos para dar ênfase ao argumento. Depois, se acomodou no sofá e fechou os olhos, como se estivesse tentando adormecer novamente – E um dia você vai me agradecer por isso.

—Vou. - Murmurei em resposta - Estou dando saltos de gratidão, não notou?

Minha mãe pareceu rolar os olhos por baixo das pálpebras fechadas e adormeceu quase instantaneamente. Eu fiquei invejando aquela sorte. 

Sem muita coisa para fazer, decidi ficar apertando o botão para chamar as enfermeiras até que uma finalmente se irritou e veio me trazer um coquetel para pegar no sono novamente, xingando em diversas palavras diferentes que eu não conhecia.

Esse é literalmente o único lado ruim de todos os países do mundo ensinarem inglês como segunda língua - seus xingamentos na língua natal nunca passariam despercebidos. 

Fiquei pensando na possibilidade de aprender uma segunda língua para poder xingar também – talvez essa fosse a oportunidade para me aprimorar no espanhol.

Sem ter muito tempo para decidir em que língua ofenderia os outros, acabei adormecendo até o amanhecer.

   [...] Algumas horas depois

  Eu achava que definitivamente estava pronta para o calor que fazia no México, uma vez que já tinha lidado com verões brutais na Califórnia.

Mas a proximidade com a linha do Equador estava testando todos os meus limites e eu sentia falta do meu avental de hospital. Tinha conseguido ter alta depois de viver uma noite terrível em um leito duro e os exames não constatarem absolutamente nada. Eu estava saudável, mas tinha que tomar cuidado com o calor. E eu estava justamente debaixo da maior zona de calor possível. 

Andamos em passos que pareciam vagarosos e longos demais até nosso hotel em Patzcuaro, enquanto eu sentia o Sol queimando cada centímetro exposto da minha pele - que, infelizmente, eram muitos. Minha mãe falava animada com um panfleto na mão sobre a programação de mais tarde. 

Hoje, em todo o México, era comemorado o Dia de Los Muertos. As comemorações pareciam começar alguns dias antes e todos os lugares exibiam delicadas flores douradas dentre muitos adereços coloridos e pessoas com rostos de caveira. As fotos dos familiares falecidos (muitas em preto e branco) pareciam flutuar sorridentes em cima de toda aquela comemoração cheia de cores. 

Fiquei pensando no quanto aquilo me parecia perturbador e interessante ao mesmo tempo. Uma criança passou rapidamente por mim, carregando um peru assado e gritando palavras estranhas. Ele e várias outras crianças se juntaram e deixaram o peru em frente à uma casa, onde estava a primeira foto colorida que eu vira no dia - um menininho sorridente, aparentando a mesma idade das demais crianças. 

Cheguei mais perto enquanto minha mãe continuava falando como se eu estivesse ouvindo. Encarei os olhos verdes do menino da foto e por um segundo tive a sensação que ele me encarava de volta. A criança do peru disse algumas palavras e olhou pra mim.

—Perdão? - falei, sem entender nada do que ele dizia, tentando gesticular - Eu não falo sua língua.

—Ele é um anjo agora. - ele disse, apontando para os céus e sorrindo - Deus deu isso pra ele. 

Sorri constrangida sem ter o que dizer, enquanto minha mãe aparecia dando pulinhos ao meu lado.

—Isso mesmo, você está pegando o espírito da coisa. - ela disse, sorridente. Ergueu o panfleto mais uma vez sobre o rosto e continuou: - Por isso, nossa parada hoje a noite vai ser o Lago, porque...

Não consegui ouvir o que ela dizia, pensando nas crianças que comiam um peru e conversavam com uma foto, como se ele realmente estivesse ali. 

[...]

Quando o Sol começou a se pôr, nossa próxima parada era o Lago Pátzcuaro - eu podia pensar em milhões de nome para ele, não precisava ser o mesmo nome da cidade. 

Ali, milhares de pessoas se reuniam, com os rostos ornamentados e pintados, com fotos de familiares, adornos coloridos, santuários imponentes erguidos em laranja e dourado que pareciam brilhar tanto quanto a última luz do Sol e luminárias. 

—Eu acho que um cemitério teria sido mais interessante. - Minha mãe comentou, em dúvida, vestindo um colar de flores douradas que lhe ofereciam - Gracias. 

—Eu estou achando tudo muito legal. Definitivamente vou colocar tudo no meu tiktok. - Kelly respondeu, gravando vídeos de tudo que acontecia ao nosso redor. 

—Não acha isso meio desrespeitoso? - questionei, chutando a areia molhada com meu tênis. - Digo, os homenageados já morreram...

Minha mãe ergueu o panfleto mais uma vez, como se a reposta e a lição de moral estivessem escritas ali em algum lugar. Kelly bufou e guardou seu celular, enquanto eu aceitava também um colar dourado de um mexicano simpático. 

—Esse pessoal é bem esquisito. - falei, enquanto um mexicano me oferecia um abraço e um pedaço de torta sem motivo algum - Gracias.

Gracias era literalmente a única palavra que eu havia aprendido, porque eu precisava dela pra praticamente tudo. No início achei que eles falassem Aloha aqui também, mas depois percebi que estadunidenses realmente são burros em Geografia. 

—Ally! - minha mãe me chamou, apontando para o Lago - Olhe só, você adora.

O Lago estava se enchendo de pequenas canoas, que carregavam duas pessoas, diversas flores que eram esparramadas pela água e duas luminárias, uma em cada extremidade. Era verdade, eu amava. Amava a água e tudo que se movia acima dela. Sorri para os barquinhos.

—Será que eu posso subir em um? - perguntei, com um sorriso. Parecia literalmente incrível cruzar a noite em um barquinho com a luz do fogo. - Fala sério, são meus elementos favoritos. 

—A gente pode tentar. - Minha mãe disse, animada por eu finalmente estar me divertindo. - Quem sabe essa não vai ser a melhor experiência das nossas vidas? 

[...] 

Enquanto eu subia na pequena embarcação, aquela realmente parecia uma das melhores experiências da minha vida. Só cabia uma pessoa em cada embarcação - fora, é claro, o comandante do barquinho. Por causa disso, eu, minha mãe e Kelly fomos cada uma em um. 

A água do Lago parecia levantar um frescor sobre meu rosto, invadindo o ar quente da cidade que parecia se despedir dos últimos feixes de luz do Sol. Aprumei minha lanterna de fogo aos meus pés, segurando confiante sua base, para não botar fogo sem querer no barco. 

Pode parecer loucura, mas a minha era a única embarcação dirigida por uma mulher. Seus olhos eram verdes como eu já tinha visto antes. 

—Você não é daqui. - Ela disse, depois de muito silêncio, virando-se para mim, enquanto controlava com uma mão só um pequeno motor, que fazia o barco se mover suavemente. 

—Não. - Concordei com um sorriso, me perguntando se seria óbvio demais. - Sou dos Estados Unidos. 

—Ah. - Ela respondeu levantando as sobrancelhas. - Não pareceu, não vi seu celular em nenhum momento. 

Acabei soltando uma sonora gargalhada e apontei para um barquinho a alguns metros de distância de nós duas. Kelly estava de pé gravando vídeos de dança para o tik tok dentro do barco em movimento. O senhor que estava com ela revirava os olhos e coçava a cabeça, sibilando algumas coisas que eu imaginava que seria "americanos". 

A senhora soltou uma risada comigo.

—O que as traz aqui, no dia de los muertos? - ela perguntou, com curiosidade. Ela mexeu no leme mais uma vez, nos afastando da maior parte dos barcos que seguia em linha reta. 

Dei de ombros.

—Minha mãe é latina. Não daqui, do Brasil. - Me apressei em responder - E ela sempre quis conhecer o México e toda a cultura do Dia dos Mortos porque no Brasil ela seguia uma religião espírita. 

Os olhos verdes da senhora faiscaram e eu tive certeza que os reconhecia de algum lugar.

—A senhora tem filhos? - Perguntei de supetão. A senhora olhou pra mim com profundo interesse e suspirou. - Desculpe, não quis parecer intrometida. Mas seus olhos me lembram uma foto que eu vi hoje mesmo...

—Meu filho - Ela se adiantou, sem deixar que eu continuasse. - Miguel. Ele faleceu há alguns anos, bem aqui, nesse Lago. 

De repente as águas do Lago não me pareceram mais tão agradáveis. O frescor que outrora me trouxeram pareceu morrer e eu só senti um calor sufocante o suficiente pra me causar dispneia e uma dor latejante na cabeça.

—Ok, será que podemos voltar agora? 

—Não tenha medo da morte, minha filha. - ela disse paciente, virando o leme em direção à prainha - Ela acontece para todos. 

Tentei sorrir sem humor e voltar minha atenção para minha lanterna, que parecia bem mais quente agora do que antes. Fiquei pensando nas palavras e na foto da criança de olhos verdes, idênticos ao da senhora. Brinquei com meus polegares até ouvir novamente o barulho de Kelly gravando vídeos. 

—Eu sinto muito pelo seu filho. - Falei, assim que reuni coragem o suficiente. - Acho que isso realmente deve ser muito difícil. 

Foi a vez dela dar de ombros, com um sorriso. 

—Me fale mais da sua família. - Ela pediu, enquanto o barulho das ondas do Lago ficavam mais fortes no barco e o vento fresco retornava. - Assim, eu me sinto melhor. 

Sorri para ela. 

—Bem, somos só eu, minha mãe e irmã. Elas são basicamente tudo que tenho no mundo. - Falei, com um sorriso. - Meu pai sumiu faz muito tempo e eu não tenho notícias dele. Temos uma família razoavelmente grande, mas, no geral, eu fico mais com as duas. 

—Uma família de mulheres! - ela se admirou. - Dá muita briga?

—Quase nenhuma! - ri com sarcasmo, e comecei a explicar toda a origem das brigas por sapatos, maquiagens e blusas preferidas. 

Quando o final do passeio chegou, eu já nem queria mais ir embora. Toparia tudo por uma outra volta, mas a senhora tinha mais clientes para recolher. Antes que eu saísse, ela segurou firme nas minhas mãos e olhou no fundo dos meus olhos ao dizer:

—A morte não tem sentido, minha filha. A única coisa que tem sentido é a vida. 

Soltei involuntariamente minhas mãos da dela, muito rápido. Ela recuou pra trás e eu levantei rapidamente do meu assento. 

—Bem, muito obrigada...Eu acho. - Murmurei desconcertada e saltei pra fora do barco, afundando os pés na areia molhada. - Foi um ótimo passeio. 

Ela sorriu pra mim e se aproximou do próximo cliente, que falava uma língua tão embolada que eu nem sequer reconheci. Ele logo tomou o meu lugar e eu me perguntei se a senhora faria o tour do terror com ele também. 

Talvez fosse parte da atração. 

Encontrei minha mãe e Kelly perto da prainha do Lago conversando animadamente com um casal que usava a bandeira dos Estados Unidos pendurada nas costas. O jeito mais simples de reconhecer compatriotas. 

Me aproximei deles e tentei me envolver na conversa, enquanto eles combinavam um lugar pra jantar e as bolas de luzes pareciam atravessar minha visão toda hora. 

Depois de alguns segundos, notei que meu pulso ardia no local que a senhora segurou e decidi passar um pouco da água do Lago nele, para diminuir o calor. Eu era bastante alérgica, então imaginei que seria isso. Enquanto o alisava, observei bem a ínfima marca que ela havia deixado.

Feito de pequenas pintas vermelhas, um cisne parecia brotar com imponência, marcado em minha pele.

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