HARRY RADCLIFFEO barulho da porta se fechando foi a única coisa que quebrou o silêncio cortante da delegacia. Ruby havia pedido para ir ao banheiro. Sua amiga se ofereceu para acompanhá-la, mas Ruby recusou com aquele tom suave e firme que eu já reconhecia como decisivo. Disse que seria rápido.Eu continuei parado, de pé, próximo à porta. O policial que ainda preenchia os papéis de rotina mal me olhava, provavelmente desconfortável com a minha presença. Bons instintos. Era melhor assim dado o meu humor.Sophia se aproximou e se postou ao meu lado, cruzando os braços diante do peito, numa postura que misturava determinação e gratidão barata.— Obrigada por ter vindo — disse ela, com um sorriso quase afetado.Agradecimento é uma perda de tempo, ainda mais nessa situação específica, por isso não respondi. Meus olhos permaneciam fixos na parede suja e amarelada da delegacia. Não porque era interessante, mas porque olhar para ela era melhor do que manter contato visual com qualquer pessoa
HARRY RADCLIFFEO relógio na parede marcava exatamente vinte horas. Eu sabia disso porque meus olhos percorriam o ambiente a cada poucos minutos, como se esperassem algo acontecer. A luz suave do abajur ao canto iluminava o escritório com uma tonalidade âmbar discreta, contrastando com a tela do notebook à minha frente. Estava vestido de forma casual, uma T-shirt branca, simples, e calças de moletom cinza — confortáveis o suficiente para uma noite que, até então, eu pretendia manter sob controle.Mas claro que controle era uma ilusão temporária.A porta se abriu com um rangido leve, e por ela entrou Ruby.Se não fossem pelas circunstâncias que a trouxeram até mim — o hematoma no rosto, o inchaço evidente sob o olho esquerdo, a delicadeza fragilizada dos seus movimentos —, eu diria que jamais me cansaria da visão que era Ruby Portman naquele instante. Seus cabelos, longos e desalinhados, caíam como uma cortina sobre os ombros. O rosto levemente amassado denunciava que havia acordado h
RUBY PORTMANUma semana se passara desde a manhã em que fui à delegacia com o rosto marcado por hematomas. Agora, diante do espelho do meu quarto, eu observava a pele limpa, sem roxos, sem inchaços, sem vestígios visíveis do que acontecera. A dor física se esvaíra, mas algo dentro de mim permanecia latejando em silêncio, como uma lembrança teimosa que se recusava a partir, ainda mais com os acontecimentos atuais.Depois que deixei o apartamento de Harry — no dia seguinte à agressão —, eu soube, por meio dele mesmo, que o caso havia sido formalmente denunciado. Não foi surpresa. O delegado já havia mencionado a possibilidade. O que me atingiu de fato foi a confirmação: o Ministério Público assumiria a denúncia, e a audiência de instrução e julgamento seria marcada para a semana seguinte. E foi. Bem rápido.Durante aqueles dias, Harry mostrara um tipo de envolvimento que me deixava sem saber como reagir ou como agradecer, embora se eu soubesse, ele não aceitaria nada daquilo. Ele contra
RUBY PORTMANApós a audiência, conversei brevemente com o Sr. Martinez. Ele explicou quais seriam os próximos passos, como o Ministério Público trabalharia agora para apresentar mais elementos, e que o juiz, pelo que deu a entender, já estava parcialmente convencido da culpa do réu.Despedimo-nos e Harry me levou de volta para casa e quando ele estacionou em frente ao meu prédio, desci e apenas murmurei:— Obrigada por tudo, Harry.Ele apenas assentiu com a cabeça, sem palavras, como se não fosse necessário dizer nada.Subi e, em casa, comecei a organizar algumas coisas. O lugar ainda estava em ordem, mas havia algo inquieto em mim. Meu querido e adorado irmão estava vindo. E ele vinha furioso. Descobrira tudo apenas agora, quer dizer, um dia antes do julgamento, por Milena, e me mandou uma sequência de áudios inflamados exigindo explicações.E Milena com certeza viria junto para tentar equilibrar os ânimos. os dele, especialmente. E como ela havia prometido cozinhar, me propus a orga
RUBY PORTMANO restaurante inteiro parecia se esvair ao meu redor quando Harry pousou a caixa do anel sobre a mesa com a mesma frieza com que fazia qualquer movimento. O diamante ali dentro brilhava sob a luz difusa do aquário panorâmico ao nosso redor, mas minha atenção estava completamente fixada nele. Não no anel. Nele.Eu estava em choque. Mas não era o tipo de choque encantado que ele provavelmente esperava. Era um silêncio repleto de memórias, de perguntas, de cicatrizes não curadas. Um pedido de casamento vindo de Harry Radcliffe era o equivalente a uma tempestade em pleno deserto. Raro, inesperado, perigoso.Harry não pareceu se incomodar com o meu silêncio. Pegou a sua taça de vinho, tomou um gole e apoiou-a novamente sobre a mesa com calma estudada. Depois cruzou os braços, me observando por um instante longo demais.— Eu devia começar explicando por que você. — ele disse, com a voz baixa, densa, como se cada palavra fosse tirada a força do fundo do peito. — Mas acho que voc
RUBY PORTMANO caminho de volta para casa foi silencioso, mas não desconfortável. Era como se tudo o que precisava ser dito já tivesse sido. As luzes da cidade refletiam no para-brisa do carro, criando padrões dourados e cintilantes que dançavam sobre o painel. Eu observava aquelas luzes, tentando me agarrar a elas como quem tenta se apegar a algo que ainda faz sentido.O meu coração ainda pesava. Não de dor, mas de um peso diferente, mais denso. Eu tentava assimilar a noite, a conversa, a história dele. O anel. Aquilo tudo parecia um mundo novo que eu ainda não sabia se queria adentrar ou apenas observar de longe.Harry dirigia em silêncio, a mão firme sobre o volante, os olhos atentos à estrada, mesmo que os pensamentos estivessem visivelmente em outro lugar. Ele não era do tipo que pedia, que se explicava. Então o simples fato de ter se despido emocionalmente daquela forma me fazia entender o quão longe ele já havia ido. Por mim.Quando o carro parou em frente ao meu prédio, um sil
RUBY PORTMANDesliguei o tablet e o deixei de lado, pousando-o sobre o sofá. Peguei a minha taça de vinho branco, girando o líquido suavemente antes de levar a taça aos lábios. Três anos. Três longos anos haviam se passado desde o desaparecimento de Harry e da sua família. Eu estava prestes a completar 30 anos, uma nova década de vida se aproximando, mas minha mente ainda insistia em voltar ao que aconteceu, ou ao que deixou de acontecer. Três anos de ausência, de silêncio, de especulações e de um vazio que, por mais que eu tentasse, nunca conseguia preencher completamente.Durante esse tempo, eu havia tentado de tudo para esquecer, para seguir em frente. Queria sentir raiva de Harry, nutrir um ressentimento profundo por ele, por ter me deixado sem respostas, sem um adeus. Queria odiá-lo, desejar que ele pagasse por tudo de ruim que significou na minha vida. No entanto, a cada semana, sem falhar, eu pegava-me lendo tabloides, procurando por qualquer sinal, qualquer notícia que dissess
RUBY PORTMANDespedindo-me de Johnny com um aceno rápido, deixei-o na cozinha e me dirigi à porta. Ele estava ocupado com algo, talvez preparando um jantar, ou procurando alguma bebida, como de costume, não questionou a minha saída repentina. Eu sabia que assim que eu chegasse não o encontraria mais, já que nos víamos apenas aos finais de semana, e, muito raramente nos dias úteis, já que eu trabalhava mais do que devia, ele também. E a nossa relação funcionava assim, ninguém se aborrecia com ninguém e tínhamos cada um o seu espaço, embora eu sempre soube que ele quer algo, além disso, já que ultimamente o tema casamento não tem saído da sua boca.Saí do apartamento e entrei no elevador, pressionando o botão para o piso térreo. Enquanto descia, a minha mente vagava, como sempre fazia nessas horas. As paredes do elevador refletiam uma versão minha que parecia diferente da jovem que havia começado a trabalhar na Radcliffe’s tantos anos atrás. Havia uma maturidade que o tempo e as experiê