Esther curvou os lábios em um sorriso frio.— Está tentando me assustar?Jogar ratos... Que método mais baixo e infantil.A garota, com os braços cruzados, avançou em direção a Esther, o olhar gélido e carregado de fúria.— Não estou te assustando, estou te avisando! Fique longe do professor Bernardo! Não ouse tentar dar em cima dele!A garota falava em português, mas seu sotaque denunciava que sua fluência era apenas um pouco superior à das crianças da aldeia.Esther riu, balançando levemente a cabeça.— Você está avisando a pessoa errada. Não tenho nenhum interesse nele.— Acha que engana quem? — A garota claramente não acreditava, o rosto tingido de desprezo. — Você não é daqui, não pertence ao nosso povo. Apareceu na aldeia com segundas intenções!Sua voz se elevava, transbordando indignação.— E ainda se aproximou do professor Bernardo assim que chegou. Se isso não é tentar dar em cima dele, então o que é?Por dentro, Esther achava tudo aquilo hilário.Mas, aparentemente, o leve s
Luciana ficou sem palavras.Os aldeões, que antes estavam cheios de acusações, começaram a perceber quem realmente estava errado. Um após o outro, se dirigiram a Esther, pedindo desculpas.— Desculpe, a gente não entendeu a situação direito e quase acabou cometendo uma injustiça com você.— Não leve isso pro coração, viu? Pode ficar tranquila, ninguém vai te incomodar mais. Pode continuar aqui o tempo que precisar.— Luciana, quando a gente erra, tem que ter coragem de admitir. Vai lá e peça desculpas pra moça....As vozes se cruzavam, cada um tentando se redimir. Embora falassem no idioma local, Esther, que já estava se acostumando, conseguiu entender boa parte do que diziam.Luciana, por outro lado, estava fervendo por dentro.Gostava tanto do professor Bernardo que nem coragem tinha para confessar seus sentimentos. Agora, com tudo exposto, se sentia humilhada e sem saber como encará-lo depois disso. Além disso, o peso das críticas e repreensões públicas a deixavam ainda mais arrasa
Esther assentiu com a cabeça.— Certo.De volta ao quarto, segurou o celular nas mãos, enquanto diversas lembranças e rostos surgiam em sua mente. O turbilhão de pensamentos a deixava inquieta, os minutos se arrastavam sem que conseguisse relaxar. Tentou dormir, mas a insônia parecia persistente. Sem perceber, acabou adormecendo em meio à confusão de ideias.Quando abriu os olhos novamente, já era manhã.Esther se lembrou do que havia prometido a Bernardo: hoje seria seu primeiro dia como professora substituta para as crianças.A manhã começou simples, mas acolhedora. A mãe do homem havia preparado uma panela de mingau de milho. Esther tomou apenas meia tigela, agradeceu e saiu acompanhada do homem rumo à escola improvisada.No caminho, refletiu sobre a aula que daria. Ela se lembrava de que, na última vez que ouviu as crianças lendo, cometeram muitos erros. Decidiu começar pelo básico: ensinar as vogais e consoantes de forma clara e simples.Ao chegar na sala de aula, Esther observou
Esther destrancou a porta do pequeno quarto usado por Bernardo na escola. O cômodo, embora modesto, estava impecavelmente arrumado, cada objeto no seu lugar. Ela sentiu um leve alívio por encontrar um ambiente organizado em meio à confusão que havia acabado de enfrentar.Seus olhos percorreram a janela, onde avistou um frasco de remédio vermelho, usado para aliviar hematomas. Com cuidado, pegou o frasco e se ajoelhou ao lado da menina machucada.— Vou passar o remédio aqui na escola, mas, depois da aula, você vai levar isso pra casa. Precisa pedir a um adulto que olhe essa marca, tá bom? E, da próxima vez que algo assim acontecer, fale com um professor ou com seus pais. Não pode só chorar ou ficar com medo do Kauan, entendeu? — Disse Esther, com um tom firme, mas acolhedor.A menina olhou para ela e murmurou:— Mas eu tenho medo que o Kauan me bata.Esther suspirou, sentindo um aperto no coração ao ver o rosto assustado da criança. Passou a mão suavemente pelos cabelos dela e respondeu
— Tem movimento! — Formação defensiva! — Protejam os civis! O cenário se transformou em um caos absoluto. Assim que o conflito se instaurou, o cheiro de pólvora e sangue dominou o ar. Tiros cruzavam o espaço em todas as direções, e explosões estremeciam o solo sob os pés.Os aldeões, apavorados, corriam de um lado para o outro, tentando escapar do campo de batalha. Alguns, no entanto, não foram rápidos o suficiente. Homens, mulheres e crianças caíam no chão, atingidos por balas perdidas.Entre os gritos e o som incessante de disparos, uma criança de apenas dois ou três anos estava parada no meio da confusão. Chorava desesperada, chamando pela mãe, enquanto o pavor congelava seus movimentos.— Protejam as crianças! — Gritou um soldado do exército do País B.Com agilidade, um membro da equipe de resgate pegou a criança nos braços, a protegendo com o próprio corpo sob o escudo balístico. Enquanto o tiroteio continuava, a criança foi transferida para uma área segura por outros soldados.
Esther se levantou repente. Ainda sentia a cabeça pesada, mas o suficiente para enxergar o que estava ao seu redor com mais clareza.Notou que as cobertas que a aqueciam, assim como os copos e outros utensílios familiares ao lado. Uma sensação estranha percorreu seu corpo.— Professora! Você acordou! Kauan se lançou em seus braços antes que ela pudesse concluir o pensamento. Ele a abraçava com força, o rosto enfiado contra o peito dela, tremendo de emoção.Por um instante, Esther ficou atordoada. Suas mãos deslizaram automaticamente até o cabelo do garoto, o acariciando com carinho.— Você acordou! A voz vinha da entrada da tenda. Um soldado com uniforme militar puxava a cortina ao entrar.— Senhorita, como está se sentindo? — Ele se aproximou, a expressão preocupada e gentil.Ao ouvir o português fluido do homem, Esther sentiu uma onda de alívio, como se tivesse voltado para casa. A tensão que pesava em seus ombros pareceu se dissipar naquele instante.— Estou bem, obrigada. Vocês s
Os olhares se cruzaram, naquele instante, parecia que um século inteiro havia passado em um único piscar de olhos.Durante o tempo que passaram juntos, a convivência diária parecia nunca ter sido tão preciosa quanto aquele primeiro olhar depois de tanto tempo separados.Os olhos de Esther se encheram de lágrimas, vermelhos de emoção. Ver que ele estava bem e seguro era mais importante do que qualquer palavra que pudesse ser dita.Ela permaneceu onde estava, sem dar nem mais um passo em sua direção, lutando para controlar os sentimentos que borbulhavam dentro dela. Antes de vir para cá, Esther havia se permitido imaginar várias vezes: Será que eles poderiam se reencontrar?Mesmo que fosse apenas por um breve momento, já seria o suficiente.As mágoas que ela ainda guardava por ele agora pareciam insignificantes diante do simples fato de que ele estava vivo e bem.Eles não se aproximaram. Permaneceram distantes, cada um em seu lugar, mas os olhos de ambos estavam carregados de saudade.—
— Aqui. — Marcelo entregou algo para Esther.Um aroma quente de arroz subiu até o nariz dela. Ao levantar o rosto, viu-o parado em sua frente. Ele a encarava com seriedade, os olhos fixos nos dela. Na mão dele, estava uma tigela impecavelmente limpa, cheia de arroz branco.Esther ficou surpresa, sem saber o que dizer.Vendo que ela não reagia, Marcelo colocou a tigela ao lado dela e, calmamente, pegou os talheres para deixar sobre o arroz.— Coma. — Disse, com um tom gentil.Em seguida, ele pegou uma tigela com arroz levemente preto, que deveria ser o resto do preparo, e começou a comer sem reclamar.Esther observava cada movimento dele, intrigada.— Vocês comem isso?Marcelo se acomodou em um banco de pedra ao lado dela e respondeu com simplicidade:— Sim.Ela mordeu o lábio inferior, refletindo. Ele havia mudado muito.O Marcelo de antigamente, sempre sofisticado, jamais seria visto comendo algo que não fosse da mais alta qualidade. Tudo nele, desde os hábitos até as refeições, segui