Esther assentiu com a cabeça.— Certo.De volta ao quarto, segurou o celular nas mãos, enquanto diversas lembranças e rostos surgiam em sua mente. O turbilhão de pensamentos a deixava inquieta, os minutos se arrastavam sem que conseguisse relaxar. Tentou dormir, mas a insônia parecia persistente. Sem perceber, acabou adormecendo em meio à confusão de ideias.Quando abriu os olhos novamente, já era manhã.Esther se lembrou do que havia prometido a Bernardo: hoje seria seu primeiro dia como professora substituta para as crianças.A manhã começou simples, mas acolhedora. A mãe do homem havia preparado uma panela de mingau de milho. Esther tomou apenas meia tigela, agradeceu e saiu acompanhada do homem rumo à escola improvisada.No caminho, refletiu sobre a aula que daria. Ela se lembrava de que, na última vez que ouviu as crianças lendo, cometeram muitos erros. Decidiu começar pelo básico: ensinar as vogais e consoantes de forma clara e simples.Ao chegar na sala de aula, Esther observou
Esther destrancou a porta do pequeno quarto usado por Bernardo na escola. O cômodo, embora modesto, estava impecavelmente arrumado, cada objeto no seu lugar. Ela sentiu um leve alívio por encontrar um ambiente organizado em meio à confusão que havia acabado de enfrentar.Seus olhos percorreram a janela, onde avistou um frasco de remédio vermelho, usado para aliviar hematomas. Com cuidado, pegou o frasco e se ajoelhou ao lado da menina machucada.— Vou passar o remédio aqui na escola, mas, depois da aula, você vai levar isso pra casa. Precisa pedir a um adulto que olhe essa marca, tá bom? E, da próxima vez que algo assim acontecer, fale com um professor ou com seus pais. Não pode só chorar ou ficar com medo do Kauan, entendeu? — Disse Esther, com um tom firme, mas acolhedor.A menina olhou para ela e murmurou:— Mas eu tenho medo que o Kauan me bata.Esther suspirou, sentindo um aperto no coração ao ver o rosto assustado da criança. Passou a mão suavemente pelos cabelos dela e respondeu
— Tem movimento! — Formação defensiva! — Protejam os civis! O cenário se transformou em um caos absoluto. Assim que o conflito se instaurou, o cheiro de pólvora e sangue dominou o ar. Tiros cruzavam o espaço em todas as direções, e explosões estremeciam o solo sob os pés.Os aldeões, apavorados, corriam de um lado para o outro, tentando escapar do campo de batalha. Alguns, no entanto, não foram rápidos o suficiente. Homens, mulheres e crianças caíam no chão, atingidos por balas perdidas.Entre os gritos e o som incessante de disparos, uma criança de apenas dois ou três anos estava parada no meio da confusão. Chorava desesperada, chamando pela mãe, enquanto o pavor congelava seus movimentos.— Protejam as crianças! — Gritou um soldado do exército do País B.Com agilidade, um membro da equipe de resgate pegou a criança nos braços, a protegendo com o próprio corpo sob o escudo balístico. Enquanto o tiroteio continuava, a criança foi transferida para uma área segura por outros soldados.
Esther se levantou repente. Ainda sentia a cabeça pesada, mas o suficiente para enxergar o que estava ao seu redor com mais clareza.Notou que as cobertas que a aqueciam, assim como os copos e outros utensílios familiares ao lado. Uma sensação estranha percorreu seu corpo.— Professora! Você acordou! Kauan se lançou em seus braços antes que ela pudesse concluir o pensamento. Ele a abraçava com força, o rosto enfiado contra o peito dela, tremendo de emoção.Por um instante, Esther ficou atordoada. Suas mãos deslizaram automaticamente até o cabelo do garoto, o acariciando com carinho.— Você acordou! A voz vinha da entrada da tenda. Um soldado com uniforme militar puxava a cortina ao entrar.— Senhorita, como está se sentindo? — Ele se aproximou, a expressão preocupada e gentil.Ao ouvir o português fluido do homem, Esther sentiu uma onda de alívio, como se tivesse voltado para casa. A tensão que pesava em seus ombros pareceu se dissipar naquele instante.— Estou bem, obrigada. Vocês s
Os olhares se cruzaram, naquele instante, parecia que um século inteiro havia passado em um único piscar de olhos.Durante o tempo que passaram juntos, a convivência diária parecia nunca ter sido tão preciosa quanto aquele primeiro olhar depois de tanto tempo separados.Os olhos de Esther se encheram de lágrimas, vermelhos de emoção. Ver que ele estava bem e seguro era mais importante do que qualquer palavra que pudesse ser dita.Ela permaneceu onde estava, sem dar nem mais um passo em sua direção, lutando para controlar os sentimentos que borbulhavam dentro dela. Antes de vir para cá, Esther havia se permitido imaginar várias vezes: Será que eles poderiam se reencontrar?Mesmo que fosse apenas por um breve momento, já seria o suficiente.As mágoas que ela ainda guardava por ele agora pareciam insignificantes diante do simples fato de que ele estava vivo e bem.Eles não se aproximaram. Permaneceram distantes, cada um em seu lugar, mas os olhos de ambos estavam carregados de saudade.—
— Aqui. — Marcelo entregou algo para Esther.Um aroma quente de arroz subiu até o nariz dela. Ao levantar o rosto, viu-o parado em sua frente. Ele a encarava com seriedade, os olhos fixos nos dela. Na mão dele, estava uma tigela impecavelmente limpa, cheia de arroz branco.Esther ficou surpresa, sem saber o que dizer.Vendo que ela não reagia, Marcelo colocou a tigela ao lado dela e, calmamente, pegou os talheres para deixar sobre o arroz.— Coma. — Disse, com um tom gentil.Em seguida, ele pegou uma tigela com arroz levemente preto, que deveria ser o resto do preparo, e começou a comer sem reclamar.Esther observava cada movimento dele, intrigada.— Vocês comem isso?Marcelo se acomodou em um banco de pedra ao lado dela e respondeu com simplicidade:— Sim.Ela mordeu o lábio inferior, refletindo. Ele havia mudado muito.O Marcelo de antigamente, sempre sofisticado, jamais seria visto comendo algo que não fosse da mais alta qualidade. Tudo nele, desde os hábitos até as refeições, segui
— Entendido, Durval! — Responderam os soldados em uníssono.Durval suspirou, olhando para os rapazes com reprovação.— Vocês estavam aí, tagarelando todos animados, né? Agora estou curioso para saber quem é essa pessoa... — Ele se inclinou para olhar na direção que os soldados apontavam.No início, ele só viu um vulto feminino de costas. Algo naquele porte lhe pareceu familiar, mas nada que conseguisse identificar de imediato. Quando voltou os olhos para Marcelo, sua expressão endureceu.Afinal, o que os soldados haviam dito não era exagero. O olhar de Marcelo parecia transbordar algo que Durval não via há tempos.“Pronto, acabou!”, pensou Durval, sentindo o peso da confusão que viria. Esse homem vai colocar fogo no próprio quintal! E agora?Ele esfregou as têmporas, já imaginando o caos. Se o capitão arrumasse uma segunda esposa, o que ia acontecer com a oficial que já estava esperando por ele lá?Um dos soldados cutucou Durval, curioso.— E aí, o que você acha, Durval?Durval respiro
Ao ouvir aquelas palavras, Esther sentiu uma pontada de amargura no peito.As dificuldades que Nico e seu povo enfrentavam eram como um espelho do que os antepassados de sua nação haviam vivido décadas atrás.Embora ela nunca tivesse experimentado isso pessoalmente, os relatos em livros e documentários sempre a emocionavam. A cada leitura ou vídeo, sentia a dor de seus ancestrais e, ao mesmo tempo, uma gratidão imensa pelo progresso que seu país alcançou.Era impossível não pensar no lema que carregava desde a infância. Lembrar o passado para não repetir os erros.Enquanto estava perdida nesses pensamentos, Marcelo saiu de um dos alojamentos e, ao erguer os olhos, avistou Esther conversando com Nico.Ele observou como ela se inclinava levemente para dar um tapinha nas costas de Nico, tentando confortá-lo. O tom gentil da voz dela e o sorriso acolhedor nos lábios deixavam claro que os dois estavam à vontade um com o outro.Eles parecem próximos. Quanto tempo será que se conhecem?Marcel