Sou Presa a Você
Sou Presa a Você
Por: Liliane Mira
Prólogo

Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus.

_ Eduardo Galeano

Perder alguém é um sentimento obscuro, há um desamparo em nossa alma que não conseguimos lidar. Se para um adulto não é fácil, imagina para uma criança? Passar pelos cinco estágios do luto é um suplício.

É assim que Evelin Ferreira se sente. Há um mês perdeu seus pais em um acidente de carro, em um dia estavam planejando uma viagem em família, no outro a polícia batia em sua porta lhe contando o que aconteceu.

Sem ter a chance de lidar com sua perda repentina, foi empurrada para seus avós. As pessoas que ela nunca teve contato, seus pais nunca lhe trouxeram para eles e muito menos lhe disseram o porquê. Para quem morava no Subúrbio Ferroviário de Salvador e lançada para área nobre da Pituba, fora uma mudança e tanto.

Seus avós Carlos e Joana Ferreira não ficaram muito felizes, mas aceitaram, visando algo vantajoso no futuro. Tentando livrar-se da menina chorona, a mandou para um acampamento de verão no estado do Amazonas.

— Vamos meninas, hoje temos a tirolesa e o banho de rio. — Uma das responsáveis pelo acampamento falou empolgada. Evelin não queria ir, no entanto, pela olhada que recebeu da mulher tudo indicava que essa não era uma opção viável. O lugar é bonito, se fosse em outras circunstâncias não hesitaria em se divertir, o problema são as miríades de sentimentos que precisa lidar todos os dias sendo apenas uma criança.

Ela se arrumou como se tivesse indo para uma sentença de morte, andou cabisbaixa sem ânimo. No café da manhã não sentiu fome, então se escondeu esperando todos saírem. Na Van ela notou que além das crianças menores, os mais velhos também participariam. Se encolheu dentro de si, ignorando todos ao seu redor, por isso não notou que estava sendo observada.

Eduardo Schramm é herdeiro de uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, com sede principal em Salvador e subsidiárias em mais sete estados. Com o intuito de ter uns dias de paz, longe da pressão de ser o herdeiro de um grande império tecnológico, escolheu o acampamento de verão do estado do Amazonas, quanto mais longe melhor.

Ele não sabe porque está encarando a menina, mas alguma coisa nela o atraía.

— O que tanto você olha, Dudu? — Bruna, indagou enciumada. Ela é a filha mais nova da família Simioni, a segunda mais influente do país.

— Do que está falando?

— Está encarando aquela pirralha há algum tempo. Qual é o interesse?

— Não seja ridícula, não há interesse, estou apenas pensando. — Respondeu ríspido. Ele não admitiria que uma pirralha lhe chamou tanta atenção. Ele não entendeu o porquê. Será a tristeza em seus olhos, ou, sua beleza singular mesmo com pouca idade? Uma pele negra, que lhe lembra muito a madeira cedro e, os olhos tão negros que o faz pensar em jabuticabas. Eles chegaram ao destino de não, contudo os olhos de Eduardo não desviavam da menina, isso o irritava profundamente. Se dando por vencido, continuou observando a menina de longe, e notou quando ela se esgueirou e fugiu da pequena multidão. Ele olhou para todos os lados, e quando notou que não havia ninguém olhando em sua direção, seguiu a garota. A encontrou sentada em uma pedra chorando, mesmo longe ele podia escutar o som dos seus soluços. Ele não compreendia porque, mas isso o incomodou.

— Por que está chorando? Se machucou? — Perguntou abaixando-se na frente da pequena.

Evelin, ao ouvir uma voz em sua frente, levantou a cabeça e deu de cara com um garoto lindo. Cabelos negros como carvão, olhos azuis que lhe lembrava duas piscinas, queixo quadrado com uma covinha fofa. Ela não conseguia desviar seus olhos, tão pouco ele. A menina, com seus dez anos, sentiu pela primeira vez um friozinho na barriga.

— Quem é você? Um anjo? — Perguntou inocente. O jovem sorriu encantado. Além de linda, a menina possuía uma voz melodiosa.

— Ninguém nunca me chamou de anjo. — sorriu maroto — Me chamo Eduardo, pequena índia. Pergunto de novo, por que está chorando?

— Estou sofrendo. — Disse voltando a chorar.

— Quem lhe fez sofrer? Diga-me e me vingarei por você. — Declarou com uma postura altiva, típico aquelas que os heróis sempre fazem. Ela sorriu, o achando bobo, e em simultâneo, charmoso.

— Meus pais faleceram em um acidente de carro. São tantos sentimentos aqui dentro. — apontou para o peito — Não consigo lidar com eles. Me sinto só e desamparada.

— Sinto muito pelos seus pais. Perder alguém não é fácil.

— Quem você perdeu? — Ela perguntou se afastando para ele sentar ao seu lado.

— um grande amigo, mas faz muito tempo

— Isso não quer dizer nada, o tempo não apaga a dor.

— Verdade, mas nos faz suportar melhor! — sorriu — Mesmo sabendo que um dia a vida acaba, nós nunca estamos preparados para perder alguém.

— Nicholas Sparks! — Evelin o respondeu.

— Isso! Além de linda, é uma garota inteligente. O pacote completo.

— Você me acha linda? — Questionou incrédula. Ninguém nunca lhe falou isso.

— Sim, lindíssima. — colocou a não no queixo pensativo — Por acaso é índia?

— Não. — riu — Sou assim por parte de mãe, na verdade, minha falecida bisavó. Ela era índia da tribo Tukano.

— Uau, uma bela bagagem ancestral. — segurou a mão da menina — Qual é o seu nome e idade, pequena índia?

— Evelin, tenho dez anos! E você, quantos anos tem?

— Dezessete anos! — disse — Além de inteligente, linda, possui o nome de uma princesa. Sou um homem afortunado por conhecê-la.

— Você é bobo… — Exprimiu mais leve.

— Bobo bom, ou ruim?

— Bom, claro. — Gargalhou, hipnotizando Eduardo com sua beleza simples e extraordinária.

— Bem, pequena índia, chamada Evelin. — segurou a mão da menina — Quero que me prometa algo.

Eduardo disse se levantado e puxando a menina. Sem ela notar sua intenção, tirou o boné da cabeça dela e seus longos cabelos caíram como cascatas em suas costas. Ele segurou o fôlego ao notar o quanto a menina ficou mais encantadora.

— Qual é a promessa, Eduardo? — Perguntou tomando o chapéu das mãos dele, e colocando no lugar.

— Que vai se esforçar para viver melhor. Sei que é duro, mas seus pais não iam querer que ficasse nesse estado. Brinque, estude, seja alguém melhor no futuro. — Terminou sério.

— Eu prometo! — Ela respondeu convicta.

— Então, vamos selar essa promessa. — disse juntando o mindinho dele com o dela, depois selando com seu dedo polegar ao dela.

— Promessa selada! — Evelin disse sorrindo.

— Ainda falta mais uma coisa. — Eduardo falou sério.

— O que seria? — Indagou sem entender.

— Isso! — Eduardo disse juntando seu lábio ao dela com um longo selinho. — Agora, sim, foi selado.

Evelin nunca foi beijada por nenhum garoto, principalmente por um mais velho que ela, por isso ficou estática tocando os lábios.

— Dudu, cadê você? — Eduardo escutou a voz de Bruna, por essa razão se apressou em se despedir da menina a sua frente.

— Preciso ir, pequena índia! Lembre-se da nossa promessa.

— Nos veremos novamente, Edu? — Evelin perguntou com os olhos rasos.

— Não sei, apenas o tempo dirá, todavia, se isso acontecer será a minha esposa! — Exclamou sério.

— O quê?

— Foi o que ouviu, pequena índia. Acredito que terá idade o suficiente para isso. Você foi a melhor parte dessa viagem, até mais.

— Ei, espera. — mostrou a bola de beisebol — Isso é seu.

— É mesmo. — ele nem havia notado estar com a bola — Agradeço querida Evelin.

Disse beijando o dorso da mão dela. Eduardo correu para achar a voz de Bruna que se aproximava cada vez mais de onde estão. Ele a encontrou no meio do caminho.

— Onde estava?

— Fui mijar Bruna! — respondeu irritado — Pare de querer saber cada passo meu, lhe trouxe porque insistiu, caso contrário viria sozinho.

— Não precisa ser tão grosso.

— Então, pare de ser evasiva, isso me irrita.

— Calma, Dudu. — sorriu sedutora — Que tal uma foda rapidinho, estou cheia de tesão acumulado.

Ele suspirou ainda mais irritado.

— Está louca? Estamos rodeados de crianças. Quer que nos peguem? — Ele pensava em Evelin, não deixaria ela vê tal cena.

— Tá bom. — Ela concordou a contragosto. Percebeu que ele está estranho e não saber porque a estressava profundamente.

— Vamos, é provável que já tenham terminado. — Ele saiu na frente e a deixou para trás. Bruna não se deu por vencida e agarrou a mão direita dele.

Por outro lado, Evelin ainda estava parada no mesmo lugar, tocando seus lábios sonhadoramente, pensando nas palavras do garoto há alguns instantes.

— Não sei, apenas o tempo dirá, todavia, se isso acontecer será a minha esposa!

Se isso acontecer, me caso contigo, príncipe encantado! Pensou decidida. Decidiu voltar para os outros, agora com um pequeno sorriso desenhando sua face. Se obrigou a não fazer, mas foi impossível não procurá-lo quando se juntou aos demais. Para sua decepção não o encontrou, entretanto, não deixou de sorrir. Eduardo foi a culminância da viagem, e por essa razão ela nunca o esqueceria. O levaria em seu coração até o dia de sua morte.

— O amarei para sempre! — Proferiu apaixonada. Evelin prometeu a si mesma. O que ela não entendia é que o futuro reservava para ela desafios, ela precisaria ser forte. Evelin aprenderá da forma mais difícil que, errar, superar, aprender, acertar é como precisamos levar a vida, mesmo que naquele momento nada faça sentido.

Dez anos depois…

— Bom dia, céu, bom dia, mar! — Evelin exclamou animada. Em breve terminaria sua faculdade de administração. Ela começou a cursar o nível superior aos quatorze anos, desde então não parou. Tem dupla graduação, ou seja, cursou a faculdade de Engenharia da computação e Desenvolvimento de sistema simultaneamente, logo em seguida efetuou pós-graduação em Tecnologia e Segurança de Blockchain e Smart Contracts. Evelin possui uma inteligência fora do comum, é uma hacker excepcional. A questão é que ninguém sabe disso. Sua família não se importa muito com o que se passa com ela, apenas que ela saia do caminho deles.

— Vinha, desce, seus avós querem conversar contigo no escritório — Maria, a governanta da casa, informou. Essa mulher e seu primo Louis são os únicos que a tratam com carinho e respeito.

— Já vou Ma, agradeço. — Disse terminando de colocar sua calça jeans surrada e prendendo seus longos cabelos com um palito hashi. Evelin desceu com sua mochila nas costas e seus livros grossos, que pareciam chumbo de tão pesados. Ela passou pela mesa do café, pegou uma maçã e mastigou em grandes mordidas. Sorriu sem graça para Maria que lhe repreendia com o olhar. Chegou à porta do escritório e bateu duas vezes antes de entrar. Seu avô está sentado na poltrona atrás da mesa e sua avó lia em um jornal no pequeno sofá marrom. Ela escondeu o desgosto em sua face com um sorriso ensaiado.

— Bom dia! Como posso ajudá-los?

— Sente querida, o que temos para lhe falar é muito sério. — Sua avó se manifestou carinhosa. A menina estranhou, pois nesses dez anos que se passaram nunca recebeu um abraço dela, imagina palavras carinhosas.

— Irei direto ao assunto. — seu avô começou — Estamos passando por uma dificuldade tremenda. Nossa família deve uma soma muito alta a família Schramm, eles nos cobraram, mas não temos como pagar.

— Não entendo, senhor Ferreira. — Disse encolhendo os ombros. Desde que morou com eles nunca os chamou de vovô e vovó, eles simplesmente não deixavam. Evelin não entendia porque tanta hostilidade, mas acredita que descobrira cedo, ou tarde.

— Mesmo que vendesse tudo que temos não cobrirá os custos, no entanto, ele nos deu uma solução.

— Qual? — Evelin Inquiriu com a certeza que não gostará da resposta.

— Que uma jovem da minha família virgem se casasse com seu herdeiro. Você é a única Evelin. — fez uma pausa dramática — Apenas você pode ajudar nossa família.

— Mas vovô… quer dizer, senhor, isso é um absurdo. Como me casarei com um estranho.

— É apenas um contrato de um ano, depois está livre para pedir o divórcio. — Explicou ocultando algo, mas coisas. Ele falava sobre o assunto como fosse algo corriqueiro, comum. Para ela não é. Seu coração diminuiu no peito de tal forma que a menina triste ameaçou voltar à superfície. Como poderia dizer não, é a sua família, mesmo que não mereçam nada que venha dela.

— Posso pensar? — Perguntou em um fio de voz.

— Não temos tempo, Evelin! — exclamou irritado — Temos até hoje para dar uma resposta.

A menina Suspirou vencida, sem ver uma saída para esse problema. Pensou. É apenas um ano, passará rápido.

— Tudo bem, eu aceito! — Eles comemoraram se abraçando e excluindo-a. Ela se sentiu triste, mas escondeu com um sorriso murcho.

— Agradeço Evelin, isso nos salvará da ruína. — Ela não o respondeu. Após ouvir a ligação que seu avô conduziu com o patriarca da família Schramm confirmando o acordo, ela saiu do escritório. Sem ânimo, voltou para o quarto sentindo-se sem chão. Mais uma vez terá que fingir que está bem, sendo que nada está certo.

(…)

Um mês se passou desde o momento que Evelin disse sim. Agora, no carro em frente a mansão da família Schramm, seu coração parecia que sairia pela boca. Nesse tempo ela nunca viu seu noivo. Procurou fotos e não encontrou, a única coisa que descobriu é que seu futuro esposo é um CEO competente. Desde o momento que assumiu a empresa da família o patrimônio cresceu ainda mais. Ela assinou o contrato no dia anterior, hoje será a cerimônia apenas com alguns amigos e familiares. O noivo nunca fez questão de conhecê-la e isso lhe deixou com o pé atrás.

— Está na hora, Evelin! — Seu avô avisou impaciente. Ela desceu com dificuldades, pois seu vestido estilo princesa era um pouco pesado. Mesmo não sendo sua escolha, ela amou cada detalhe. Do rendado no busto, a saia de seda bufante. Pela primeira vez se sentia linda e torcia que seu futuro esposo pensasse dessa forma. Ela colocou o véu e entrou na casa. Seu avô lhe guiou até o altar improvisado, está tão nervosa que não reparou no seu noivo parado de forma séria a sua espera. Evelin se sentia cabisbaixa, pensou em seus pais o dia todo. Ela acreditava fielmente que se estivessem vivos não passaria por mais essa provação. Casar com um homem desconhecido! Lembrou de Eduardo, seu amor de infância. Ela prometeu em seu coração que o esperaria, porém, está quebrando mais outra promessa. A primeira era ter que adiar seu sonho, faltando dois meses para concluir a faculdade de administração. Ela mostraria a todos quão, inteligente é, e talvez conquistasse pelo menos o respeito deles.

Ela parou de divagar quando ouviu a voz do padre. Ele falava, mas ela não conseguia compreender. Quando percebeu o movimento do seu lado, notou que o seu noivo virava em sua direção, então fez o mesmo. O padre abençoou as alianças, Evelin colocou no dedo anelar da mão esquerda de seu esposo e logo em seguida beijou. O homem fez o mesmo, mas diferente dela não beijou.

— Agora, pode beijar a noiva, meu jovem! — O sacerdote exclamou sorrindo. O homem puxou o véu que cobria sua cabeça, e antes mesmo de ela o encarar ele cobriu seus lábios em um beijo casto sem graça. Ela o encarou nervosa, pois é a segunda vez que um homem lhe toca de forma tão íntima. Ela o encarou assustada, e, ao notar que lhe beijara, seus olhos dobraram de tamanho. É ele! Pensou assustada. O homem que prometeu amar e se casa quando jovem. Eduardo, o menino que lhe deu um propósito em sua vida sem cor. Com essa constatação, ela sorriu para ele, mas não foi retribuído. Eduardo não enxerga nada se não, a amargura. Ele trabalhou duro para chegar onde chegou, e mesmo assim está sendo privado de ter o que lhe é de direito. Se casar com uma mulher fútil e mesquinha não estava em seus planos. Ter um filho por inseminação nunca passou pela sua cabeça. Eduardo pensava que, se uma mulher pode sugerir tal coisa, ela não presta e não merece seu afeto. Com esse pensamento a abraçou e sussurrou.

— Não esqueça que assinou um contrato, seja a esposa perfeita na frente de todos, mas entre nós, haverá apenas desprezo. — Sorriu, mas ela pôde notar raiva em seus olhos. Sua fala lhe lembrou porque estava lá. Ela o encontrou, mas pelo visto ele não gostou de encontrá-la.

Após a cerimônia eles circularam de braços dados cumprimentando a todos. Não demorou muito para ser largada sozinha em um canto qualquer. Seu esposo nem lhe deu uma explicação.

— Onde está o noivo? Está na hora da dança. — A cerimonialista informou. Evelin se encolheu se sentindo estranha, envergonhada. O que ela diria. Não sei? Seria humilhante. Pensou parada igual a uma estátua. Distraída, se assustou quando viu uma mão masculina estendida em sua direção.

— Que tal uma dança?

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