O quarto de Selene situado no topo da segunda torre de Magdala era um espaço pequeno e escuro, com uma única cama e uma latrina. Um feixe de luz fraca entrava pela única e diminuta janela, e as paredes de pedra fria pareciam fechar-se sobre ela tornando o lugar semelhante a uma cela. O que de fato era para Selene. A cama era rígida, coberta por lençóis desgastados, testemunhas dos anos de confinamento carregados de lágrimas.
Tendo revirado na cama por horas e dormido só de madrugada, por causa de outra torturante tentativa de seu pai e de Mamba de obter magia lunar, despertou com o chiado de abertura, algo que sempre a preparava para o horror e repreensões diárias.
Gemendo, por causa das dores que cortavam seu corpo, devido os golpes da noite anterior, sentou e passou os dedos pelos fios loiro-platinados de seu cabelo, esperando que assim tivesse uma aparência no mínimo digna para recebê-lo.
Preparou-se para mais um dia de dor e sofrimento, mas algo parecia diferente. O rei Phelix entrou seguido de três empregadas no lugar do feiticeiro Mamba. Uma sensação de alívio sutil a envolveu. Além de não gostar do feiticeiro, tinha esperança que o pai a maltratasse menos longe da influência do outro.
Uma das empregadas colocou uma imensa caixa que carregava sobre a cama.
— Levante-se inútil!
Devagar e de cabeça baixa, fez o que o pai pediu. Olhou de relance para o conteúdo da caixa quando a destamparam. A fagulha de esperança, de que o pai a libertaria e voltaria a ser como antigamente, aumentou ao ver a empregada retirar um lindo vestido azul claro, o corpete bordado com pequenas flores cercando o brasão das duas torres em azul real de Magdala.
— Como pouco me ajuda a conseguir dominar nossos inimigos, estamos à beira de perder a guerra e tudo pelo qual batalhei — esbravejou Phelix, batendo em Selene com o pesado cetro com seis cobra azuis incrustadas no topo. O objeto, dado por Mamba, servia para captar o poder dos inimigos os repassando para Phelix. Porém, tinha mais uma utilidade perversa como o dono, extravasar a raiva na filha. — Não me sobrou escolha além de casá-la para preservar a segurança do meu reinado.
O encarou abrindo e fechando a boca, indecisa do que dizer, sabendo que o pai a castigaria se tentasse questionar sua decisão, mas precisando saber qual seria seu destino.
— Quem...?! Com quem terei de casar, Majestade?
— O Corvo. O maldito conseguiu não só reaver as terras de sua família, como juntou mercenários, traidores e uma maga poderosa para roubar o que consegui — bradou furiosamente. — Se você usasse a magia herdada de Myra não estaríamos nessa situação. EU não teria de barganhar para afastar essa ave agorenta do que é meu.
Em silêncio, Selene ocultou o alívio em não ser entregue a Mamba. Mesmo que o Rei Corvo fosse terrível e cruel, como seu pai sempre alardeava, preferia se arriscar com o estranho a cair nas garras nojentas do feiticeiro que destruiu sua família.
— A cerimônia acontecerá em Eszter. Esteja pronta em uma hora ou a mandarei em trapos ao altar. Aproveite que ele estará desarmado na noite nupcial e faça-nos um favor: Mate-o! — o rei Phelix, ordenou saindo do quarto para que as mulheres trocassem a filha.
Observando-o partir, Selene compreendeu que o pai a usaria como escudo para permanecer vivo, mesmo que fosse à custa da vida dela.
Segurou a vontade de rir, de desespero, de tristeza e uma estranha fagulha de alegria desdenhosa. Seu pai desceu ao mais baixo, deixou-se transformar em um demônio e causou a morte da esposa para nada.
Com mãos trêmulas tocou o macio tecido da sua próxima algema, pois o casamento seria somente um modo de passa-la para um carrasco novo, talvez até mais cruel e violento. Mesmo assim, não se importou com seu destino. Finalmente teria a chance de sair, respirar ar puro, ver o sol sem ser através de uma brecha na parede.
~*~
Da janela da torre norte, Cedric observou a carruagem com o brasão das duas torres atravessar os portões de sua fortaleza e seguir em direção a capela do castelo.
De onde estava também conseguia ver os arqueiros nas muradas, os cavaleiros a postos e o pátio livre, de forma que ao menor sinal de perigo, seus homens abateriam o inimigo sem ferir os aldeões dentro da fortaleza.
Apertou o punho de sua espada, um sombrio desejo de que Phelix agisse como a escoria que era, que tentasse atrai-lo em uma armadilha. Assim poderia enfim vingar a morte dos pais, colocar a cabeça do rei assassino em uma estaca e comemorar por um mês, melhor, por um ano inteiro.
Destruindo seu sonho, quando a carruagem parou somente uma figura miúda, de vestido azul e longo cabelo platinado. Dois de seus cavaleiros, sem tirar a mão das espadas se aproximaram, trocaram algumas palavras com a mulher e com o homem que controlava a carruagem, antes de escoltar os dois para dentro da capela. Aparentemente, o Perverso não acompanharia o casamento da amada filha. Obviamente o rei de Magdala era tão desconfiado a respeito do acordo quanto Cedric.
— Cedric, está na hora! — uma voz baixa e feminina avisou atrás de si.
Virou-se e encarou Ayala, a feiticeira que salvou sua vida, o ajudou no campo de batalha e na restauração de Eszter.
— Phelix não veio?
— Ele jamais deixa a segurança de suas muralhas. Hoje não foi exceção.
— E envia uma criança em seu lugar — disse entredentes, os dedos se apertando na cabeça de corvo que adornava o punho de sua espada.
— Tem vinte anos, não é uma criança.
Cedric voltou a olhar para a janela, mas todos já estavam dentro da capela.
— A matarei e colocarei sua cabeça em exposição bem em frente ao reino dele — decidiu irritado com o que considerava uma afronta.
— Nosso acordo de paz...
— Depois das núpcias ela me pertencerá, posso fazer o que quiser com ela e ninguém poderá dizer uma só palavra contra — soltou interrompendo Ayala.
— E o que ganhará com isso?
— Vingança. Sangue por sangue. Esse foi o lema que adotei quando ele matou meus pais e meu povo. Só descansarei quando o matar, mas, enquanto isso, me divertirei tomando dele tudo o que puder — ameaçou ao seguir em direção à porta, os passos pesados pela armadura que usava por precaução.
Selene não esperava uma grande recepção em sua chegada, mas a falta de pessoas no dia de seu casamento e a frieza que a cercava era angustiante. O sacerdote começou a cerimônia, pronunciando palavras vazias em um pacto frágil. O homem ao seu lado, recebendo com ela a benção matrimonial aumentava seu receio. O pai estava louco se achava que teria qualquer chance contra o cavaleiro alto e musculoso para o qual ele a entregou em casamento. Quando Cedric entrou na capela, estranhamente Selene sentiu o coração disparar e um frio na barriga ao erguer os olhos para o rosto másculo. Ele tinha profundos olhos pretos, cabelo escuro e a pele bronzeada, como se passasse cada hora do dia sendo beijada pelo sol. Uma beleza alta, selvagem e fria, foi como sua mente o descreveu conforme ele caminhava com a expressão fechada na direção dela e do sacerdote. Inimigos de guerra unidos em matrimônio, forçados a isso em um acordo tão frágil quanto um dente-de-leão ao vento. Assim foi o matrimônio de Sel
Deixando evidente o quanto a desprezava e a queria distante de si, Cedric, a enviou para a ala oposta a que ocupava. Meses se passaram em que Selene via o “marido” somente à distância e nenhuma palavra era trocada entre eles. Passado o medo, quando dois guardas agarraram seus braços e a forçaram a ir para um quarto aconchegante na ala oposta a do rei, Selene ficou confusa, mas feliz por ter seu próprio canto, por poder ficar em um ambiente tranquilo, sem agressões e ameaças. Dias depois foi informada que teria algumas aulas com Ayala Trever, a maga poderosa de Eszter conhecida como Feiticeira Dourada. As aulas incluiriam aprender a ser uma boa rainha para Eszter e a usar magia. Relutantemente, mas sem escolha a não ser obedecer, aceitou e deu início a uma vida praticamente solitária. Cuidavam da ala quando estava nas aulas, limpando e deixando comida a sua espera, mas quando retornava ficava completamente sozinha, as refeições frias e o ambiente silencioso. Ainda assim, era melhor qu
Mantendo o corpo inconsciente de Selene junto ao seu, Cedric, seguiu em direção à ala médica da fortaleza. Ao pousar, a magia alada se desconectou de seu corpo voando de volta para as acomodações reais. De imediato foi cercado por alguns de seus homens e aldeões curiosos com o corpo que carregava ensanguentado em seus braços. Não dando atenção as indagações, com o coração acelerado, correu para dentro da propriedade até passar pelas portas de madeira do cômodo ocupado pelo médico de Eszter. — Majestade...! Colocou Selene na cama mais próxima e ordenou imperioso: — Salve-a! O idoso chamou sua equipe para atender a esposa de seu rei, ainda sem compreender como ela acabou naquela situação, com o pequeno corpo minando sangue. Cedric deixou a equipe médica cuidando de Selene e foi ao encontro de três cavaleiros que o seguiram, preocupados com a possibilidade de o rei estar ferido. — No jardim do sul deixei um homem amarrado. Peguem-no e levem para o calabouço para ser interrogado — co
Forçando as pálpebras a se abrirem, Selene observou um teto branco por um segundo, antes de uma dor aguda a fazer fecha-los com um gemido trêmulo. Seu corpo doía por inteiro. Ergueu um braço, para suavizar a luminosidade em seus olhos. Com a visão melhor, reparou nas ataduras cobrindo todo seu torso. Como um raio as lembranças do que aconteceu antes de desmaiar a atingiu. O empregado conjurando um portal; a fera esverdeada; o ataque feroz; a chegada de um ser alado, que logo soube se tratar de Cedric, junto com a certeza de que ele terminaria o serviço e a mataria como tentou no dia do casamento; o abrigo quente e reconfortante que encontrou nos braços dele. Confusa, fraca, com uma sensação pastosa na língua, e sentindo os braços e pernas pesando como chumbo, piscando observou o que a cercava. Estava em um quarto pequeno, com outras três camas, um armário com remédios e havia uma cadeira próxima a sua cama. Sentado na cadeira, em trajes elegantes e encarando-a com os profundos olho
Tendo desistido de começar a missão de seduzir Selene, Cedric, focou sua atenção para o segundo problema que tinha em suas mãos: O motivo do atentado contra a esposa. Embora não fosse comum aos reis interrogarem prisioneiros, Cedric, acostumado a executar todas as funções durante sua saga em reconstruir seu reino, acostumou-se a tomar a frente de todas as situações importantes dentro e fora das muralhas da fortaleza de Eszter. Seguindo pelos corredores úmidos que levavam ao calabouço, Cedric preparava-se para interrogar o homem, trajando roupas de empregado do castelo, e tirar dele a motivação e nomes de todos que estavam envolvidos na tentativa de matar Selene. Ao alcançar o enorme e pesado portão de ferro da prisão, sem ser necessário soltar uma só palavra, os quatros guardas, protegendo o castelo de possíveis fugas dos prisioneiros, o abriram para lhe dar passagem. — Vim falar com o prisioneiro que mandei trazer hoje — anunciou imperioso. Um dos homens, o de maior posição entre
Embora todo seu corpo doesse e tivesse de se manter quieta para recuperar-se rápido, Selene muitas vezes esquecia-se das feridas e se remexia de um lado para o outro, entediada em ficar na cama. Não queria permanecer imóvel em um leito lúgubre. Desejava estar ao ar livre e não em uma “cela” como tinha estado durante grande parte de sua vida ao lado do pai. — Boa tarde, princesa Selene! Novamente esquecida dos ferimentos, dessa vez movida pela empolgação, Selene se ergueu com a intenção de abraçar o único amigo que tinha em Eszter. Um instante depois, com um urro de dor, voltou a jogar o corpo nos lençóis. — Calma! Não faça movimentos bruscos, princesa — Tristan pediu se aproximando veloz dela. — Tem que ter cuidado — disse passando a mão carinhosamente pelo cabelo dela. — Obrigada por me visitar — disse com um sorriso agradecido. Tristan era seu único amigo dentro da fortaleza, nas terras de Eszter e até além das fronteiras de todos os reinos restantes. Somente em sua infância, an
Após terminar a verificação dos arredores, pausada por causa do ataque a Selene, e conversar com seus guardas, exigindo que espalhassem, dentro e fora da fortaleza, à condenação que atentar contra a rainha causaria, Cedric, voltou para o palácio. Precisando de um banho e trocar as roupas sujas do sangue de Selene e do empregado condenado, logo na entrada do palácio deu ordens que esquentassem água e enchessem a tina de suas acomodações. Passava pelo grande salão, rumo a escadarias para o piso superior, quando viu Tristan saindo do corredor que levava a ala médica. Com o olhar indecifrável, permaneceu parado no lugar, aguardando o amigo aproximar-se já imaginando o motivo dele estar daquele lado do palácio. — Boa noite, Majestade! — Tristan saudou com toda pompa, o sorriso atrevido fazendo Cedric revirar os olhos. Cresceram juntos, até mesmo lutaram lado a lado nos anos sangrentos de guerra contra o reino de Magdala. Tristan conhecia Cedric melhor que qualquer pessoa no mundo e até
Sem sono e com as feridas latejando, indicando que as ervas falharam em alivia-las, Selene desistiu de dormir e, mesmo odiando os manuscritos sobre magia, pegou um dos encadernados pousado ao lado de sua cama. No entanto, por mais que forçasse a visão, a leitura dos manuscritos antigos era difícil. A esfera flutuante acima de sua cama tinha pouca luz. A magia de trovão presa nela, que emitia fortes raios esbranquiçados quando cheia, estava quase apagada, provavelmente pelo passar do tempo não tendo sido recarregado para a iluminação não prejudicar o descanso noturno. Largou o livro e puxou a bolsa trazida por Tristan, remexendo seu interior em busca de algo para distrai-la. Havia algumas peças para distrair, como cartas e jogos, mas precisava de uma segunda pessoa. Observou cada peça com curiosidade, desconhecendo a maioria. Após a morte de sua Myra, seu pai a proibiu de gastar energia com tolices infantis e concentrar-se em ser tão poderosa quanto sua mãe foi. Era assim que conside