𝘒𝘩𝘪𝘰𝘯𝘦
A troca de estações, algo que sempre amei, ver os últimos vestígios do verão dando lugar as brisas gélidas do outono, fazendo meus cabelos ruivos dançarem através do último raio de sol. Como se era costumeiro estava eu sentada a beira da sacada com um livro nas mãos, depois de um longo dia de trabalho esperava o telefonema diário de meu avô, as sete em ponto, sem acrescentar ou diminuir um minuto, aproximei-me do aparelho pois sabia que tocaria em breve, e como se era esperado o som agudo disparou em um rompante.
— Olá vovô! - Exclamei com certa felicidade.
— Olá minha querida, como está?
— Bem, hoje pela manhã fui a uma entrevista no New York Times, estão precisando de uma editora nova pois a antiga se demitiu, talvez consiga essa vaga e saía daquela lanchonete, não que seja um trabalho indigno, muito pelo contrário, porém com o salário que ganho mal consigo pagar esse cubículo, não seria uma má ideia ganhar o triplo e me mudar para o centro. Mas e o senhor, como está?
— Vejo que está se adaptando bem a New York, não é mais a minha garotinha de oito anos, é muito bom te ver progredir Khione, tenho orgulho da mulher que está se tornando, e estou bem, sentindo sua falta é claro, aliás não tenho mais com quem conversar a maior parte do dia, é solitário as vezes mas estou me acostumando.
— Sabe que pode me ligar quando quiser, não sabe?
— Claro que sim querida, mas não quero atrapalhar-te, sei que andas bem ocupada, e no seu tempo livre, ora, saía e vá conhecer a cidade, fazer amigos, ao invés de ficar falando com um velho do outro lado do país.
— Vovô! - Digo abafando uma risada.— Eu gosto de conversar com o senhor, e não tenho com quem sair, não irei sozinha de forma alguma, então as opções que me restam são: ou falar com o senhor, ou ver uma maratona de "Good Girls", e sinceramente prefiro papear com um "velho do outro lado do país."
— Tudo bem, tem lido o livro que te dei?
— Com toda certeza, estava lendo ele antes de atender.
— Está gostando?
— Definitivamente.
— Já viu a dedicatória que fiz no final?
—Ainda não. — Respondo folheando as páginas até o final, quase que de olhos fechados para não ver os próximos capítulos.
"Para Khione minha querida neta e fiel companheira, sentirei muito a sua falta quando partir, espero que venha me visitar mais que uma vez ao ano, este é um livro passado de pai pra filho em nossa família, era do seu pai até o seu falecimento, esperei você ter a idade certa para te dar, e aqui está, faça bom proveito e estude."
— Era do papai?
— Sim, eu dei a ele quando completou dezoito.
— É realmente um livro bonito, e interessante. - Virei uma página observando o elfo estampado nela, orelhas pontudas, um nariz simetricamente desenhado, maçãs do rosto saltadas e um maxilar marcado.
— Fico feliz que tenha gostado.
— Só não entendo por que escolheram esse livro para ser nossa "herança" familiar.
— É um conhecimento que vale ser aprendido.
— Convenhamos que nunca usarei isso na vida, aliás essas criaturas nem de longe são reais.
— E é aí que você se engana minha pequena.
— Não quer mesmo que eu acredite nisso não é? — Rio descontroladamente.
— Elfos, fadas, vampiros e assim por diante, todos convivem conosco no dia a dia, e nem nos damos conta.
— Ok, ok, estou começando a achar que o senhor está entrando no primeiro estágio de demência.
— Não diga que eu não avisei depois.
— Eu vou fingir que esse diálogo não aconteceu para poder continuar crendo na sua saúde mental vovô. Mas e como a mamãe está?
— Aparentemente bem, ou o máximo que ela consegue ficar.
— Os remédios novos estão fazendo efeito? — Indago em um tom preocupado, pelo que conheço é raro medicações novas controlarem minha mãe, porém os médicos insistem em trocá-los constantemente para tentar obter resultados melhores.
— Não, como de costume. — Ele pigarreia e em seguida continua. — Mas nada para se preocupar querida, esses estão sendo melhores que os anteriores.
— Por que simplesmente não param de trocar as receitas? Sabem que ela não irá além disso, e está tudo bem, já fazem quinze anos.
— Não se pode perder a esperança Khione.
— A minha já se perdeu há tempos. — Uma lágrima solitária escorre umidecendo minha bochecha, as lembranças de minha infância vem novamente para atormentar-me, ver mamãe em um estado quase vegetativo desde que me lembro foi uma das coisas mais dolorosas que já experimentei até hoje, cuidar dela todos os dias esperando que algum dos remédios fizessem efeito e a trouxessem de volta a vida, os médicos disseram que ela sofreu traumatismo craniano, e por um milagre não veio a óbito, o que é irônico pois esse estado é quase como o de um falecido, sempre agradececi por ela ainda estar aqui, vovô sempre cuidou de nós depois que o paipai morreu, no mesmo acidente que deixou minha mãe assim aliás, um dos motivos pelos quais hoje detesto andar de carro, sempre me vem o acidente a cabeça, por mais que naquele dia não estivesse com eles.
— Khione, ainda está aí?
— Ah, Claro! - Por um instante esqueço que estava falando com meu avô, lembrar tudo isso me traz um aperto no peito, acreditei ter me acostumado, mas creio que enganei-me
— Ainda vai vir nos visitar este final de semana?
— Sim, inclusive estava pensando em levar um presente para o senhor, o que prefere, uma camisa nova ou um dos maravilhosos livros que encontro nas bibliotecas daqui.
— Você realmente me fez essa pergunta?
— Ok, o livro, e pode deixar que levo um de fantasia desses com seres místicos para o senhor, mas já está ficando tarde e infelizmente tenho que acordar cedo amanhã, nos vemos no final de semana?
— Nos vemos no final de semana.
A ligação foi encerrada quando as estrelas já estavam espalhando seu forte brilho enquanto algumas nuvens cobriam partes do céu, a água fria do chuveiro agora caía sobre minha pele causando pequenos arrepios, cantarolava a baixa música que tocava no exterior do box, até que o som foi interrompido por passos pesados vindos da porta do banheiro, minha visão estava embaçada pela ausência de luz mas uma forma era perceptível do outro lado da fina camada de vidro, uma respiração ofegante podia ser ouvida, algumas palavras inaudíveis foram pronunciadas e uma chama verde se fez no ar iluminando por completo o local, fazendo com que pudesse enxergar claramente meu "visitante".
Um homem robusto com diversas cicatrizes por todo o rosto, de roupas esfrangalhadas olhava-me fixamente, de repente sinto algo emaranhado em meus pés, olhando para baixo vejo raízes brilhantes que aos poucos tomam conta de boa parte do meu corpo, e mesmo tentando retirá-las vejo que o esforço é inútil, me sinto tomada cada vez mais envolta por seu brilho e uma sensação de tranquilidade se instala por mim, fecho os olhos antes de ser coberta por completo, logo após sinto todas as raízes se desfazendo ao meu redor, retomo a visão e estou em um bosque, ou algum tipo de floresta, casas e mais casas podem ser vistas, uma redoma evolve toda a aparente cidade, ando alguns metros tentando entender o que está acontecendo e como cheguei ali, associo imediatamente toda essa situação ao meu visitante indesejado, mas não faz sentido, aliás não faz sentido alguma aquelas raízes em plena cidade também, nada tem o mínimo de nexo, até que um garoto alto e forte se aproxima de mim com um sorriso no r
𝘌𝘴𝘵𝘦𝘭𝘭𝘢Acordo desorientada, uma dor aguda lateja em minha cabeça, abro os olhos examinando meu corpo e o local ao redor, não me lembro de absolutamente nada, minha mente é uma completa escuridão, levanto-me da espécie de cama onde estou e quase desabo no chão, minhas pernas estão fracas, ao que parece estou deitada e desacordada a algum tempo. Ando lentamente até uma das portas e para minha surpresa está destrancada, passo por ela me deparando com um extenso corredor, tento me recordar de onde estou e de como cheguei aqui, mas novamente minhas memórias parecem um completo vazio, sigo em frente tentando achar uma saída, as janelas mostram-me que é noite, a luz do luar as atravessa fazendo com que eu enxergue ao menos dois metros a frente, vejo alguns corpos ao chão, ao que me parecem jovens, alguns com minha idade ou até menos, me pergunto o que aconteceu nesse local, chego mais perto dos cadáveres e algo me intriga, há cortes profundos na garganta de cada um, mas não a
— Nós? — Khione e eu rimos de sua afirmação.— Isso não tem a menor possibilidade de ser verdade, sabe disso não é mesmo?— Concordo com ela, você mesmo disse que o Arthur nunca havia levado uma humana em seu reino, exceto por mim.— Estella você não sabe ao menos de onde veio, como pode dizer que certamente não é uma de nós? Já você Khione, eu estava certo o Arthur nunca levou humanos até nosso reino, e pelo visto não começou com essa prática, sinto muito você não é da espécie que pensa.— Sinto lhe informar meu querido amigo de orelhas pontudas mas você está enganado.— Não confiam na minha palavra, isso era de se esperar, infelizmente não posso provar a vocês já que a base de informações de Elphia só registra os nascimentos nos seis reinos.— Muito convincente. — Digo debochando da situação.— Detesto ter que atrapalhar a conversa de vocês, mas chegamos a Cleveland, e já que nenhuma de vocês tem um celular, ali na frente podem usar a cabi
— Sem exageros Demir.— Arwen você conheceu a minha mãe, quando ela ainda estava grávida de mim.— De fato, mas Demir, já que estava com elas por que não as levou para a minha casa de uma vez?— Você me fez de guardião da Khione desde que ela nasceu, acha mesmo que eu iria deixá-la levar uma mulher desconhecida, que por acaso estava na floresta no meio da madrugada fugindo de um demônio para a casa de vocês? — Confesso, me senti ligeiramente ofendida.— Um motivo plausível.— Um instante, como se já não fosse suficiente vocês se conhecerem, o Demir foi feito meu guardião assim que nasci? Você tem muito a me explicar Arwen, muito.— Eu sempre disse para ele te contar, mas nunca me ouviu por ser esse ser extremamente teimoso.— Podemos viajar em silêncio? Quando chegarmos a Chicago explicarei tudo a você Khione.Estou começando a suspeitar que a minha companheira sabe tanto dela quanto eu sei sobre mim.O restante da vi
KhioneMeu coração palpitava cada vez mais rápido, a cada batida na porta, e em um piscar de olhos ela veio ao chão, dei um passo para trás recuando, procurando alguma possível saída.— Vocês teriam me poupado trabalho se tivessem aberto a primeira batida. — A voz feminina soava familiar, porém ainda não conseguia destinguir seus traços da escuridão noturna, até que um feixe de luar atingiu seu rosto, revelando sua identidade.— Você! Quase nós matou de susto, como se já não bastasse tudo que aconteceu hoje.— Como eu disse, poderiam simplesmente ter aberto a porta.— Você está ciente de tudo que houve? O Demir, Arwen? — Estella esbraveja as palavras.— Uma pergunta melhor a fazer, como nos encontrou? — Ela me olha com desprezo, como se acabasse de perguntar a coisa mais estúpida que já tivesse ouvido em toda sua vida. Ainda não consigo acreditar como em quarenta e oito horas descobri que meu avô não me contou a real verdade sobre nossa família, o
Adentro os portões avistando a bela e luminosa cidade, observo cada detalhe, as grandes construções. Uma estátua gigantesca encontra-se ao lado de uma escola, ou o que imagino ser uma, chego mais perto e vejo o nome Áster escrito em letras maiúsculas, passo minhas mãos pela estátua e sinto algo inexplicáveis, um aperto se instala em meu peito, como se soubesse quem ela é, apoio minha cabeça no topo dela e ouço uma voz chamar.— Uriel, procure Uriel. — Olho para trás mas nada encontro, vejo ao redor mas ainda assim não existe ninguém ali, e por algum motivo esse nome me soa familiar. Sigo até um dos anjos mais próximos, talvez Uriel seja um dos anjos deste lugar.— Emanuel? — Pergunto sem muita certeza, mas é o nome estampado em seu crachá - Acredito que seja um crachá.— Em que posso lhe ajudar? — Diz com um sorriso terno.— Uriel, ele é daqui? — Rapidamente seu sorriso se desfaz e um semblante sério toma conta.— Uriel? Os céus abrigam muitos anjos, se
— Então com toda certeza temos que sair daqui nesse instante, ou aqueles lindos querubins ali vão acabar com a nossa existência. — Estella disse apontando para minhas costas.— Definitivamente é uma ótima ideia.— Prontas para o teletransporte? Pode ser meio diferente, aqui não tem muita energia, então não consigo nos teletransportar para muito longe.— Dá pra não explicar isso agora? Só tire a gente daqui. — Digo apressada. Em momentos estamos a alguns quilômetros de toda aquela confusão.— Até quando você vai continuar assim? — Estella aponta para meu corpo de cima para baixo.— Espero que não muito.— Esperamos, você é alvo ambulância, esperando uma espada ser cravada no seu coração.— Obrigada, isso foi ótimo, totalmente reconfortante.— Sinto muito mas é a realidade, e temos que andar rápido, antes que eles nos alcancem, possuem asas, coisas que nós não temos. Onde a droga do Demir escondeu aquele maldito banker? — Disse esbraveja
— Não seria melhor irmos para o galpão de onde a Estella veio primeiro?— Está sugerindo que cometamos suicídio? Por que até onde eu sei nós não temos como nos defender dos demônios que possam haver lá, e se por algum acaso tivermos por sua parte, mesmo assim, você não sabe sequer atirar uma flecha flamejante, então não, não é melhor irmos até o covil dos demônios.— Mas você não é um demônio? Sua espécie deveria te acolher. — Digo e ela permanece em silêncio.— Elphia e por aqui, vamos.Árvores imensamente grandes ao nosso redor cobrem o luar, fazendo com que tudo seja escuro exceto pela luz que provoco, a qual agora já não é intensa, com o passar das horas grande parte do meu corpo perdeu suas chamas que se concentram nesse instante somente em minhas mãos e braços, toco uma árvore e minha mão a atravessa, deixando um círculo de fogo.— Teria como você não deixar rastros de para onde estamos indo Khione?— Ah, dá um tempo Psyche.— É sério?