O som constante dos teclados e o zumbido baixo das conversas nos corredores criavam uma trilha sonora quase reconfortante para Ester naquela manhã. Mas, por dentro, ela sentia-se como se estivesse num terreno instável, cada passo calculado para não escorregar. A oferta de Laura ainda ecoava em sua mente, misturada com a conversa ambígua que tivera com Bruno no dia anterior. Nada parecia ser o que realmente era, e isso a deixava mais desconfortável do que gostaria de admitir.
Enquanto revia alguns documentos, uma nova notificação apareceu na sua tela: “Letícia do RH gostaria de agendar uma reunião rápida contigo. Sala 4, 10h.” Ester franziu a testa. Não esperava um novo encontro com Letícia, mas algo na formalidade do convite parecia indicar que não era apenas sobre processos burocráticos. Decidiu que precisava de respostas e talvez Letícia pudesse oferecê-las. Letícia estava à espera na pequena sala de reuniões no fim do corredor. A mulher, conhecida pelo seu profissionalismo impecável e pela postura neutra, parecia mais relaxada do que o habitual. Vestia um blazer cinza claro, e os óculos de armação fina davam-lhe um ar ainda mais sério. Mas quando Ester entrou, Letícia a recebeu com um sorriso caloroso, diferente da imagem fria que a maioria dos funcionários tinha dela. - Ester, obrigada por vir tão rápido - disse Letícia, gesticulando para a cadeira à sua frente. Ester sentou-se, cruzando as pernas, o olhar curioso fixo em Letícia. - Recebi o e-mail sobre a promoção. Só não entendi por que me chamou para conversar… Achei que ainda tinha tempo para aceitar ou não a oferta. Letícia soltou um leve suspiro, como se estivesse prestes a cruzar uma linha que normalmente manteria intacta. - Olha, vou ser direta com você porque gosto de você e acho que merece saber o que está a acontecer nos bastidores. Esta empresa… não é tão simples como parece. - Ela fez uma pausa, olhando para Ester com seriedade. - A Laura tem mais poder aqui dentro do que a maioria imagina. Essa promoção não é só uma questão de competência. Ela quer que você aceite o cargo. E, acredita, quando a Laura quer algo, ela encontra uma maneira de conseguir. Ester sentiu um frio na espinha. Já desconfiava da influência de Laura, mas ouvir isso de Letícia tornava tudo mais real. - E o Bruno? Do marketing. - perguntou Ester, a voz mais baixa. - Ele disse que eu devia ter cuidado com a Laura. Que ela tem segundas intenções. Letícia riu, mas não havia humor no som. - O Bruno? - Ela inclinou-se para frente, como se fosse compartilhar um segredo. - O Bruno é um falso. Ele usa o “charme” de segunda mão dele para conseguir o que quer, especialmente com as mulheres aqui dentro. Já vi isso acontecer com outras colegas. Ele finge que se preocupa, mas no fundo só esta tentando manter o controle. E, sinceramente? Acho que ele está mais incomodado por não conseguir o que quer com você do que realmente preocupado com o que a Laura faz. Ester ficou em silêncio, processando as palavras de Letícia. Tudo começava a fazer sentido, as investidas de Bruno, o jeito descontraído demais, como se estivesse sempre a jogar um jogo que só ele conhecia as regras. - Então… acha que devo aceitar a promoção? - perguntou Ester, ainda incerta. Letícia deu um leve sorriso, mas o olhar manteve-se firme. - Se eu estivesse no seu lugar? Aceitava. Não é só pelo salário ou pelos benefícios. Estar perto da Laura pode ser arriscado, sim, mas também pode abrir portas que você nem imagina. E, de certa forma, é melhor ter pessoas como ela por perto do que contra você. - Letícia fez uma pausa, relaxando na cadeira. - E, para ser honesta, estou curiosa para ver como vai lidar com isso. Nem todos conseguem manter a cabeça fria quando estão no centro das atenções aqui dentro. Ester riu suavemente, o nervosismo começando a dissipar-se. Havia algo tranquilizador na franqueza de Letícia. - Obrigada pela honestidade - disse ela, levantando-se. - Vou pensar seriamente nisso. Letícia acenou com a cabeça. - Faz isso. Mas não demora muito. Laura não gosta de esperar. De volta à sua mesa, Ester não precisou de muito tempo para decidir. Letícia estava certa. Era melhor manter Laura por perto e descobrir por si mesma até onde tuido aquilo podia ir. Talvez, só talvez, ela conseguisse virar as cartas a seu favor. Ela abriu o e-mail e começou a digitar a resposta para Letícia: "Aceito a promoção. Aguardo os próximos passos." Com um clique, a decisão estava tomada. No final do dia, enquanto o escritório começava a esvaziar, Ester recebeu uma nova notificação no celular. Era uma mensagem de um número desconhecido. "Parabéns pela nova posição, Ester. Acho que vamos trabalhar muito bem juntas." - Laura. O coração de Ester acelerou, mas ela não respondeu. Guardou o celular e olhou para a cidade através da janela. Sabia que estava prestes a entrar num território perigoso. Mas, no fundo, uma parte dela estava ansiosa para ver até onde aquilo iria. Enquanto Ester processava tudo isso, Letícia voltava para sua própria rotina. Mas, ao contrário do que todos pensavam, Letícia não era apenas uma espectadora dos jogos corporativos. Ela conhecia cada movimento, cada segredo que passava despercebido pelos outros. E agora, observava com interesse o desenrolar dos acontecimentos. No corredor, um novo rosto surgia: Ricardo, o novo coordenador de TI, recém-transferido de outra filial. Ele tinha fama de ser discreto, mas eficiente. Letícia cruzou-se com ele na saída do elevador, trocando um olhar rápido. Ela sabia que Ricardo não estava ali por acaso. E, naquele escritório, nada acontecia sem motivo.Laura estava ansiosa pelo primeiro dia em que trabalharia tão perto de Ester. Ter a jovem ali, sob sua supervisão direta, seria uma excelente distração em meio às intermináveis papeladas. Mas, mais do que isso, era uma vitória. Um prazer sutil e perigoso de poder tê-la por perto. Ainda assim, manteve-se firme, autoritária, caminhando pelo prédio com seus saltos ecoando pelos corredores, anunciando sua aproximação.Ester, por sua vez, mal pregou os olhos durante a noite. A dúvida corroía sua mente. Ainda dava tempo de desistir? Ou deveria enfrentar Laura de frente, conquistar o respeito dela e provar que não seria facilmente dobrada? Com o pensamento oscilando entre medo e desafio, levantou-se cedo, afogando-se em café para manter-se alerta. Aproveitou o tempo extra para limpar sua mesa no antigo setor e levar suas coisas para a nova estação de trabalho, estrategicamente posicionada bem em frente à sala de Laura.Ao chegar, encontrou um pequeno post-it amarelo colado ao telefone. As pa
Júlia descobriu que Ester havia aceitado a “promoção” por acaso.Ela precisava de alguém para cobrir uma demanda urgente e, por hábito, foi direto até a mesa da garota no setor administrativo. Mas o espaço estava vazio. Nenhum sinal dos objetos pessoais de Ester, nenhuma xícara de café esquecida ao lado do monitor, nenhuma bolsa jogada sobre a cadeira.Só então se lembrou dos rumores que tinham começado a circular pela empresa na última semana.Ester tinha mudado de setor.Não qualquer setor.O setor de qualidade.O setor que agora era da Laura.Júlia cruzou os braços e sorriu de canto, uma satisfação irônica crescendo dentro dela.“Interessante.”Depois de garantir que outra pessoa assumisse sua demanda, seguiu para o setor de qualidade e, de longe, observou Ester trabalhando. A nova mesa estava organizada, cada coisa em seu lugar. A postura de Ester era firme, tentando se encaixar naquele ambiente como se pertencesse a ele.Júlia não precisava chegar perto para sentir a tensão no ar
Ricardo já estava acostumado a ser invisível.Trabalhando com TI, ninguém se importava o suficiente com sua presença, até que algo parava de funcionar. Era sempre assim. E, sinceramente, ele preferia dessa forma.A matriz da empresa era diferente da unidade onde trabalhava antes.Os corredores eram movimentados, as conversas pareciam carregadas de algo mais do que simples rotinas de trabalho. Como se sempre houvesse uma disputa silenciosa acontecendo.E ele estava ali apenas para garantir que os sistemas funcionassem.No primeiro dia, passou boa parte do tempo no departamento de TI, conhecendo os processos internos, verificando chamados pendentes. Nada fora do comum.No segundo dia, começaram os pedidos.- Ricardo, meu e-mail bloqueou.- Ricardo, o sistema caiu, não consigo acessar os relatórios.- Ricardo, esqueci minha senha de novo.Era sempre a mesma coisa.Com paciência, ele foi resolvendo um problema de cada vez. Alguns eram fáceis, outros exigiam um pouco mais de investigação,
Bruno ainda estava pensativo sobre a reunião, sobre a pequena derrota que sofreu. Sentia o gosto amargo de ter sido colocado no lugar, de ter perdido o controle da situação.Mas, antes de tomar qualquer decisão precipitada, uma daquelas que ele sabia que se arrependeria depois, pegou o celular e, digitou uma mensagem para Ester."Oi. Eu não queria ser tão protetor com você, mas algo dentro de mim passa à frente da minha razão, e eu não sei como negar ou reprimir isso..."Respirou fundo antes de enviar.O que estava tentando dizer, afinal?Ele sabia que estava exagerando. Sabia que a forma como reagiu à nova posição de Ester não tinha sido justa. Mas, mais do que isso, sabia que havia algo nele que não conseguia aceitar a ideia de vê-la tão próxima de Laura.No setor de qualidade, Ester estava concentrada em mais uma pilha de papéis quando sentiu o celular vibrar sobre a mesa. Pegou-o sem muita pressa, mas ao ver o nome de Bruno na tela, hesitou por um segundo antes de desbloquear a te
Júlia perambulava pelo prédio como se não tivesse obrigações, como se o trabalho fosse apenas um detalhe irrelevante em seu dia.A verdade? Boa parte das pessoas se perguntava como ela ainda mantinha o emprego.Mas Júlia sabia exatamente o que estava fazendo.Ela sempre soube.E agora, enquanto cruzava o corredor do RH com passos silenciosos, seu olhar estava fixo num único objetivo.Ao contrário de outros setores, onde fazia questão de ser notada, ali ela movia-se com discrição. Passou pela mesa de Letícia, vazia, como previa. Provavelmente estava em alguma reunião, o que lhe dava tempo suficiente para o que queria.Parou diante da porta do supervisor do RH e bateu três vezes.Batidas pausadas. Conhecidas.Uma voz rouca respondeu do outro lado.- Entre.Júlia abriu a porta e deslizou para dentro, fechando-a atrás de si com um clique suave.- Oi, amor - disse, um sorriso jogado nos lábios. - Estava com saudades.O homem atrás da mesa ergueu os olhos do computador, e um sorriso lento s
Ester voltou para o escritório no carro de Bruno, mas saiu antes que ele pudesse estacionar no prédio. Precisava de um momento para si, para recompor a expressão antes de atravessar aqueles corredores e encarar o que quer que estivesse à sua espera.Ainda sentia o gosto do beijo dele nos lábios.E o peso da decisão nos ombros.Já estava quase se acostumando com essa sensação, o arrependimento silencioso que vinha depois de cada escolha impulsiva. Mas saber que teria que encarar Laura pelo resto da tarde fazia tudo parecer ainda pior.Ao chegar à sua mesa, tentou se concentrar, mas o telefone tocou antes mesmo que pudesse abrir um único documento.O visor mostrava o ramal de Laura.Ester fechou os olhos por um segundo antes de atender.- Sim?Ela tentou soar neutra, mas sabia que seu tom entregava algo. Algo errado.E Laura, percebeu.- Na minha sala. Agora.A ordem veio rápida, firme, sem espaço para discussão.A ligação foi encerrada antes que Ester pudesse responder.Ela suspirou, p
Ester caminhou de volta à sua mesa sem realmente enxergar o que estava ao seu redor. Seu coração ainda batia rápido demais, o corpo carregava a tensão do que havia acontecido na sala de Laura.As palavras dela ainda ecoavam em sua mente."O que aconteceu hoje?"Ester apertou os lábios, sentindo o peso daquele olhar que parecia atravessá-la sem esforço. O pior de tudo era saber que Laura não tinha feito uma acusação direta. Não precisava. Apenas insinuava, pressionava, deixava no ar a dúvida que fazia tudo se embaralhar dentro dela.Sentou-se e respirou fundo, tentando se concentrar nos documentos à sua frente. Mas suas mãos estavam trêmulas.Ela se sentia exposta.- Precisa de um minuto?A voz veio de um ponto próximo, e Ester ergueu os olhos rapidamente, surpresa.Ricardo estava ali, encostado de leve na lateral da mesa, com uma expressão neutra, mas com os olhos atentos demais para alguém que apenas passava por ali.- O quê?Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como se estudasse sua
Júlia já sabia há tempos que informação era poder na GT Corporation.Não importava se era um simples boato ou um fato concreto. No final, tudo podia ser usado da maneira certa para conseguir o que queria. Uma frase fora de contexto, um olhar mal interpretado, uma aproximação inesperada... Qualquer detalhe poderia se transformar em vantagem, se usado com inteligência.E, naquele momento, ela tinha em mãos algo que valia ouro.De onde estava, recostada contra a bancada da copa, no canto da sala, quase escondida, observava Ester e Ricardo sentados próximos, em uma conversa que claramente ultrapassava o simples profissionalismo.Ester estava visivelmente tensa, os ombros rígidos, os dedos inquietos sobre a mesa, a expressão carregada de algo que Júlia não via com frequência nela. Insegurança? Preocupação? Um segredo não dito?Mas Ricardo...Ricardo parecia saber exatamente como fazê-la falar.Ele mantinha a postura relaxada, um dos braços apoiado casualmente na mesa, o corpo levemente inc