Chegando ao bar, ponho meu avental e começo a trabalhar. Dona Guta surge da cozinha e me olha preocupada.
– Aconteceu alguma coisa, menina? – ela analisava meu rosto enquanto esperava a minha resposta.
– Nada demais, dona Guta. Só os problemas de sempre, sabe? A Luz anda mais curiosa que o normal e já não tenho mais ideias de como responder às suas perguntas.
– Tente conversar com ela, conte a verdade e oculte as partes dolorosas. – Olho para ela por alguns instantes e por fim lhe digo.
– Dona Guta, se eu for contar a história real para ela, só tem as partes tristes, entende? Como vou contar para a criança que o pai não a quis, que a mãe sofreu na gestação sozinha?
– Mas você também pode contar que a mãe não desistiu dela e mesmo sabendo que enfrentaria tudo sozinha, a quis. – Uma lágrima escapa pelos meus olhos e a limpo rapidamente.
– Menina! Desculpe essa velha intrometida. Eu não queria te fazer chorar. Vai lá na cozinha tomar café porque saco vazio não para em pé e daqui a pouco o movimento vai estar grande.
– A senhora não é e nunca foi intrometida, sempre vou agradecer por todos os conselhos que a senhora me deu e vou pensar no que fazer a respeito de Luz. Agora vou lá tomar um cafezinho para começar a ajudar a senhora. – Ela sorri para mim e me sinto grata pelos amigos que conquistei.
Assim que começamos o atendimento, o bar já enche. Aqui nem serve café da manhã, mas o povo vem para tomar uma “talagada” antes do trabalho. Por ser uma cidade pequena, muitos tem plantações e vendem seus produtos no mercadão, que é uma espécie de feira. No Rio de Janeiro, as feiras ao ar livre tinham dias específicos, já aqui, o mercadão funciona todos os dias até tarde. Sabe, uma das coisas boas aqui é que compramos tudo saudável sem aquelas quantidades de agrotóxicos.
A hora do almoço chega e a movimentação é grande, apesar de ter outros lugares que vendem comida, as pessoas gostam de vir aqui. Já conversei com dona Guta para ver se acrescentamos café da manhã e refeição noturna, na verdade, eu comentei com seu Zé que eles poderiam modificar o bar e transformar em um restaurante, mas eles dizem que já estão velhos e que não precisam de mais correria na vida.
Estava ajeitando uma mesa que acaba de ser desocupada quando dona Valentina chega para almoçar. Ela é uma senhorinha muito legal, o problema dela é só a língua quilométrica. Se alguém quer saber de alguma novidade, é só perguntar para ela. Eu costumo brincar dizendo que o FBI a está perdendo. Assim que trago o seu almoço, ela conta uma novidade.
– Cindy, acho que você não vai mais poder se banhar no rio da fazenda do Toinho.
– Por que, dona Valentina? – pergunto curiosa.
– Minha filha, você não está sabendo? Os filhos dele venderam a fazenda e parece que é pra gente de fora. Na verdade, é um homem e dizem que ele é bonito e não tem família.
– Larga a mão de ser uma velha fofoqueira! – seu João, que estava chegando, diz e deixa dona Valentina muito revoltada.
– Uma pessoa bem informada não é fofoqueira, seu velho rabugento. – Ela diz e nem se dá o trabalho de olhar para o seu João. Começo a rir com a cena e logo vou ao balcão pegar o licor de menta que seu João toma todos os dias antes do almoço, diz ele que é para abrir o apetite.
Dona Valentina pede mais um pouco de sal, mas sei que é pretexto para continuar com a fofoca e eu estava certa. Depois que a hora do almoço termina, vou para a cozinha lavar a louça suja e enquanto esfrego uma pilha de pratos, penso no que meus pais diriam se me vissem desse jeito: unha por fazer, a pena um pouco seca e as mãos com calos e picotes da faca. Imagino minha mãe aos berros dizendo: “Cindy Laura Campello, criamos você para ser uma princesa e não uma atendente de balcão em um bar de quinta categoria xexelento”. Balanço a cabeça para esquecer meus pais, o dinheiro modifica as pessoas. Minha avó, que Deus a tenha, dizia que meus pais não eram desse jeito, eles mudaram depois que ganharam o dinheiro.
Termino de lavar a louça e volto para o atendimento. Faço o possível para que dona Guta e seu Zé trabalhem o mínimo possível, eles sempre dizem que sou a filha que eles não tiveram. Eles têm três filhos, e nesses quase seis anos conheci dois, o Gustavo e o Henrique. O João Carlos, que todos chamam de Joca, mora no exterior e não aparece aqui, dizem que ele é metido. O Gustavo é casado e é um amor de pessoa, a esposa dele também é um doce e Nandinha, filha deles, é amiguinha da Luz e da Bia, eles moram na cidade vizinha e quando eles vêm aqui pra cidade as meninas fazem uma festança. Já o Henrique é solteiro e tem fama de “pegador”. Ele não é um cara ruim, mas se acha gostoso. Quando cheguei à cidade, ele estava de partida para São Paulo e até me convidou para passar uns dias com ele, mesmo eu dizendo que não estava afim. Ele insistiu e só desistiu quando contei que estava grávida. Ele não é uma má pessoa, mas esse seu jeito incomoda um pouco.
Trabalho até às nove horas da noite e assim que tranco tudo corro para pegar Luz na minha amiga. Chegando lá, Jô me conta que Luz fez um caminhão de perguntas sobre seu pai, seus avós e muitas outras coisas.
– Amiga, acho que tá na hora de você contar algo mais concreto para que ela entenda melhor. A Luz é uma menina esperta e sei que ela vai entender.
– Mas Jô, Luz só tem cinco anos, como explicar para ela que os avós não a quiseram? E o pai muito menos? Eu não posso magoá-la dessa forma.
– E vai ficar contando a história como se fosse um lindo conto de fadas até quando? Uma hora ela vai perceber que tem algo errado e vai começar intensificar as perguntas.
– Você pode ter razão, mas enquanto isso não acontece, vou deixar como está. – Ela segura minhas mãos e depois me abraça.
– Sei que é difícil amiga, mas pensa no assunto. Luz é uma menina muito especial, um serzinho cheio de luz e merece saber pelo menos a metade da verdade. – Eu sei que Jô está certa, mas ainda não é o momento para isso.
– Vou pensar no que será melhor para Ana Luz, mas por enquanto não conte nada além do que eu já contei para ela, tenho medo que sua cabecinha fique mexida e que ela se sinta culpada por tudo que aconteceu. – Minha amiga me dá mais um abraço e sinceramente não sei o que faria sem ela e Ricardo em minha vida.
Chamo minha baixinha para irmos para casa e no meio do caminho fico repassando a conversa que tive com minha amiga. Realmente preciso dar um jeito de contar à Luz a verdade, mas como fazer isso sem magoá-la? Me pergunto como estão os meus pais, como estão as pessoas que faziam parte da minha vida... se eu tivesse minhas redes sociais, poderia saber como estão. Jô me mostrou uma matéria recente dos meus pais onde eles citam que eu fui viver no sítio da família para me afastar dos holofotes, pensei que por ser filha deles, eles tentariam me encontrar e fazer contato, mas a verdade é que eles só ligam para o dinheiro e a fama. Talvez seja melhor assim, pois como eles não queriam que eu continuasse com a gravidez, seria capaz de destratarem minha filha e isso seria inadmissível.
Com muita dificuldade, carrego Luz e consigo abrir o portão e a porta. Vou para seu quarto e a deito na cama. Também exausta, vou ao banheiro e tomo um banho rápido. Logo após, vou para a sala onde me sento com uma garrafa de vinho e fico um tempo remoendo o passado. Definitivamente preciso parar de remoer o passado, estou prestes a fazer 28 anos e não posso ficar nesse estado.
Hoje é minha folga. Acordei bem cedo pois queria passar o dia com minha princesa, mas a nossa casa estava pedindo socorro e como Luz tem problemas respiratórios, pedi para Jô ficar com ela por alguns instantes enquanto dava um jeito na bagunça. Assim que vejo que consegui limpar tudo, pego minha princesa e fazemos um dia das garotas, onde eu faço hidratação em nossos cabelos, nossas unhas e assistimos filmes que sempre são da Barbie ou da Frozen e comemos um monte de besteira que a deixa super feliz. Sei que trabalho muito e não posso dar a ela toda atenção devida. O bom é que Luz, apesar da pouca idade, é muito compreensiva e sabe que não faço isso sem motivo, afinal, ser mãe e pai é trabalho em dobro, mas vale a pena ver o sorriso que ela me dirige nos momentos em que estamos sozinhas. Olho para ela e tenho uma ideia.– Princesa, que tal você e eu colhermos laranja? – os olhinhos dela se iluminam.– Podemos fazer um bolo mamãe?– Claro, meu amor.– Vamos fa
Chegamos a casa de Jô e assim que ela nos vê abre o portão.– Oi, tia Jô. Eu e minha mãe fizemos bolo pra todo mundo e ela guardou um grandão pra você.– Que bom, Chapeuzinho Vermelho. Tem uma lobinha vendo televisão que vai adorar te ver. – Minha amiga nem precisa terminar e minha pimenta já sai correndo para ver a amiga, me pergunto se elas não se cansam de passar tanto tempo juntas.– E aí amiga, como você está? Vejo que deu um jeito em você... gosto de te ver assim, sabia?– Obrigada, amiga. Hoje foi um dia perfeito, tirando a parte do que aconteceu no sítio do falecido seu Toninho. – Rapidamente sua curiosidade se aguça e sei que ela vai querer saber de tudo.– Deixa eu passar um café e aí você me conta tudo. – Ela corre para a cozinha para fazer café e eu vou para a sala ficar com as meninas, dar um beijinho na Bia e agradecer a ela por ter defendido minha filha.Jô aparece co
Estávamos conversando sobre a minha tarde louca quando avistamos dois pequenos furacões chamadas Bia e Luz entrando quase derrubando Rick no chão.– Luz, você vai machucar o seu tio. – Advirto minha pequena e ela pede desculpa muito envergonhada.– Para de ser chata Cindy, a menina está brincando com o dindo dela. Não é, minhas pequenas?Luz abre um sorriso e abraça o tio. Depois Bia se joga nos braços do pai e Luz fica observando a interação de pai e filha e sei muito bem no que ela está pensando. Nesse momento, uma lágrima escorre e eu tento limpar antes que ela perceba. Sei que ela gostaria de ter seu pai por perto e sei como isso é impossível, afinal, David deve estar casado e não vou procurá-lo. Ele nos rejeitou uma vez, nada impede ele de renegar a paternidade de Luz.– Amiga, tá tudo bem? –
Já se passaram dez dias desde que assumi o bar enquanto os donos estão em outro estado e hoje estou em uma correria sem tamanho, ainda mais que acrescentei café da manhã e lanches variados ao bar e a freguesia aumentou ao ponto de ter que por mesas para o lado de fora do bar.Ontem Logan veio aqui e tomou café, elogiou muito a comida e me deixou uma gorjeta bem generosa. Ele ficou me olhando e eu me senti estranha e logo fui me ocupar de servir os outros clientes, mas a sensação de ser observada por ele continuou. Talvez eu esteja louca.Estava atendendo uns clientes quando ouço gritinhos animados que logo me deixa feliz.– Mamãe, mamãe, olha!! O meu dente caiu!! – vejo minha filhinha banguelinha mostrando o dentinho em uma toalhinha.– Desculpa Cindy, mas Luz não parou quieta até eu trazê-la aqui para te mostrar o dentinho. – Dou um sorriso p
Já se passou um mês e meio e nada de dona Guta e seu Zé voltarem, só não fico tão preocupada porque eles me ligam quase todos os dias. Hoje eles me disseram que iriam estender as férias mais um pouco. Logan apareceu novamente. Na verdade, tem se tornado um hábito tê-lo aqui todos os dias, pelo menos duas vezes ao dia.Às vezes ele não come nada, apenas pede um café e fica conversando comigo, depois vai embora e deixa uma boa gorjeta. Já falei com ele sobre isso, mas ele diz que faz em qualquer lugar.Dona Branca chega e faz um pedido grande.– Hoje a senhora vai querer cinco marmitas?– Minha filha, meu netinhos vieram me visitar sem avisar e estou na correria, nunca vi um bando de crianças comerem tanto. E meu outro filho chegou também e não têm nada preparado e eles estão reclamando de fome.– Nossa, d
Fecho o bar e vou à casa de Rogéria, mãe de Viviane. Chamo no portão e logo a menina aparece.– Oi, tia.– Oi, meu amor, sua mãe está em casa?– Tá, sim. Pera que vou chamar ela. Mãe!! A tia Cindy tá aqui.Não demora muito Rogéria aparece com aquele sorriso falso de sempre.– Oi, meu bem, como você está? – tenho vontade de revirar os olhos, mas não os faço.– Vou muito bem, Rogéria. Preciso conversar com você.– Tem que ser bem rapidinho, estou com a manicure me esperando.– O que me traz aqui é o comportamento da Viviane. Ela tem dito coisas nada agradáveis para Luz e isso a tem magoado muito. Gostaria que conversasse com ela.– Mas o que ela disse? Minha filha é sempre muito verdadeira.– Há verdades que
(Anos antes na casa dos Campellos).A mãe de Cindy arruma a casa e prepara a comida para a chegada do esposo, que está no trabalho. No trabalho, o esposo pensa o quanto gostaria de dar uma vida melhor para a esposa e a filha que irá nascer em breve.Ele chega em casa cansado e vê a sua humilde casa muito bem arrumada, a comida pronta e perfumando o pequeno lugar e se sente abençoado por ter aquilo. A esposa, muito feliz por sua chegada, o beija apaixonadamente e ele por sua vez, a abraça e diz que a ama. Se agacha e, pondo a mão na ventre protuberante da esposa, fala com sua filha que, assim que ouve a voz do pai, começa a dar piruetas de alegrias.– Meu amor, eu gostaria de dar uma vida melhor para vocês duas, uma casa maior onde nossa filha pudesse ter seu próprio quarto.– Não esquenta com isso, Sérgio. A nossa f
– Mamãe, estamos para ir onde? – Luz, como sempre, curiosa.– Vamos sair com o Logan, mas ele não me disse onde.– Eba! O tio Logan é legal, eu gosto dele. – Luz é uma menina que gosta de todas as pessoas. Ela é exatamente como eu antes de tudo que me aconteceu.Ouço buzinas e sou transportada para o passado, acorda Cindy Laura.– Vamos, Luz. – Pego a bolsa e um lanchinho para a minha pimenta. Ao sair de casa, vejo Logan com um sorriso.– As minhas meninas estão lindas. – Ele abre a porta de trás para que eu acomode minha pequena, assim que vejo ela segura, sento-me no banco da frente.– E então, para onde vamos? – pergunto curiosa e ele me olha e dá uma piscadela.– Vamos a um lugar que vocês