A placa indicando os limites de Miraculous Clearing já havia ficado para trás a alguns quilômetros, mas agora que ela estava tão perto, já não sabia se seguia em frente ou desistia. Atrás da montanha que ela agora subia em sua moto através da rodovia estadual, estava a cidade que um dia foi sua casa, e tinha sido obrigada a abandonar.
Há oito anos, quando ainda era apenas uma criança de dez anos, ela foi levada da cidade por sua mãe, que decidiu separar-se de seu pai, para aceitar a proposta de ser curadora de um famoso museu em Londres. Não podia culpar seus pais pela separação, pois ambos eram apaixonados pelas respectivas profissões, mas nunca os perdoou por fazê-la escolher com quem ficaria.
Ela amava muito os dois, desde que a adotaram, e ela optou por ficar com a mãe, por julgar que o pai seria mais forte e capaz de superar.
Parando no topo da montanha, pôde contemplar a cidade, iluminada pelas lâmpadas elétricas e por alguns focos de incêndio. Ainda era uma bela cidade, mesmo em meio ao caos que se instalou desde que o sol decidiu não aparecer essa manhã.
Há três anos, quando os sonhos começaram, ela não fazia ideia de que se tornariam reais. Tudo era um grande déjà vu, desde que passou da placa informando que entrou nos limites da cidade, até aquele quadro bizarro e lindo da cidade a crepitar em chamas e imersa nas trevas de um dia sem sol.
A princípio, pensou estar louca e chegou até a fazer algumas consultas com psicólogos, mas as visões aumentaram e passaram a acontecer mesmo quando acordada, então quando previu o acidente que vitimou a mãe horas antes de acontecer, teve a confirmação de que era real.
No início, ela chegou a culpar-se pela morte da mãe. Achava que se tivesse se concentrado e acreditado em seus dons, poderia ter evitado o acidente, mas com o passar do tempo evoluiu em conhecimento e a cada manhã, acordava sabendo mais e mais coisas sobre tudo e todos, e aprendeu que nem tudo pode ser mudado. Existem forças maiores que controlam os acontecimentos, mas essas forças deixariam a terra em breve, e as suas visões a estavam preparando para esse momento.
As visões geralmente apareciam pouco tempo antes de acontecerem de fato, mas os sonhos recorrentes sobre Miraculous Clearing tinham dia e hora para se cumprirem e o momento da chegada dela também. Porém não tinham instrução nenhuma do que ela devia fazer ali, só que devia estar lá naquele dia e hora exata.
— Vamos lá Nick — disse para si mesma, querendo encorajar-se a seguir em frente. —, nem sempre dá pra saber o que nos espera, mesmo sendo algum tipo de vidente.
Colocando o capacete e subindo em sua moto, ela seguiu rumo à cidade, tendo em mente os lugares que deveria ir, e as pessoas que precisava encontrar.
Eram sete horas da manhã e algumas famílias começavam a deixar a cidade em seus carros, rumo a qualquer lugar longe dessa loucura. O que eles não sabiam, é que não tinham para onde fugir. Ao mínimo sinal de crise, o ser humano enlouquece, buscando a autopreservação e não precisava de poderes psíquicos para saber que a situação só ia piorar.
Ela seguiu na contramão do fluxo de carros, sob o olhar curioso de quem estava dentro deles, mas aquele êxodo não era problema dela. Ela precisava encontrar algumas pessoas e estar em alguns lugares, mesmo sem saber o que tinha que fazer exatamente.
Nick continuou seu caminho. Em sua cabeça a rota parecia estar traçada como em um G.P.S., então ela apenas seguiu a intuição, rua por rua até passar em frente a um grande prédio com uma portaria abandonada pelos seguranças, mas com câmeras de vigilância ativas e com sensor de movimento, que mesmo sem motivos para evitar, preferiu fazê-lo, então seguiu pela rua e parou a sua motocicleta a uma quadra dali.
Voltando a pé, ela se esgueirou até os fundos do prédio e com facilidade pulou o muro e seguiu nos pontos cegos das câmeras, com a destreza de quem parecia conhecer bem o local. Por uma porta lateral ela acessou uma espécie de almoxarifado, que não tinha funcionário algum e passando por mais uma porta, entrou no laboratório.
O lugar era grande e bem iluminado, mas também estava vazio. Ela atravessou os corredores cheios de uniformes e crachás espalhados pelo chão, ainda evitando as câmeras, até chegar a uma sala específica, e entrar.
Na sala, viu mais alguns uniformes pelo chão, e vasculhando o bolso de um deles, pegou um smartphone, que desbloqueou facilmente, e selecionando um contato escreveu uma mensagem, a enviou e colocou o aparelho novamente onde o pegou, mas enquanto fazia isso, olhou diretamente para uma câmera que estava virada exatamente para onde estava e não pôde ser evitada, ou ela não quis evitar. Depois de completar a tarefa, Nick fez todo o caminho de volta até sua moto.
Atravessando a cidade, mais um déjà vu a fez parar. Estava em frente a uma casa grande e em sua mente se materializou sua próxima ação. Encostando a motocicleta, caminhou até o fundo da construção e subiu em uma árvore que crescia até a altura de uma janela sem cortinas. Olhando para dentro, ela pode ver um quarto típico de adolescente, com livros, discos, uma cama onde dormia um jovem, e uma mesa de cabeceira, com um óculos e um celular, tudo como ela já havia visto antes.
— Gabriel, acorde!— ela sussurrou, e mesmo àquela distância, o jovem pareceu escutar, pois acordou de sobressalto, mas sem dizer mais nada, ela desceu da árvore e seguiu novamente seu caminho.
Agora ela deixou a motocicleta no jardim central da cidade, e atravessando a rua abriu a porta da garagem de uma casa que parecia ter sido abandonada. Em um painel na parede ela pegou as chaves que pela logomarca que tinha no chaveiro, eram do Chevrolet que estava lá, mas antes de entrar no veículo, abriu uma gaveta e pegou uma folha de papel e uma caneta pincel vermelha, para só então entrar no veículo, o ligar e sair novamente para as ruas.
Seguiu agora de carro por algumas quadras e estacionou. À sua frente, sem perceber sua presença, homens mascarados invadiram o quintal de uma casa, e começaram a pichar as paredes com ofensas em tinta vermelha. Após terminarem as pichações, os vândalos começaram a retirar pedras de um saco que um deles carregava, e a arremessá-las contra os vidros da casa.
Rapidamente, ela abriu o porta-luvas e pegando o papel escreveu algo com o pincel vermelho, e saiu do carro seguindo para os fundos da casa, onde viu que os vândalos apedrejavam também uma janela do segundo andar e que, quando cessaram o ataque, saíram apressados, então ela pegou uma pedra das que eles deixaram para trás, e embrulhando-a no papel que havia escrito a frase minutos antes, a arremessou também contra a vidraça do mesmo quarto.
— Só mais uma parada agora, e poderei descansar um pouco. — disse, olhando seu rosto no espelho, visivelmente cansado — Estou mesmo precisando!
Seguindo para o centro da cidade, passou pela Igreja da Consolação Divina, e pensou na ironia que aquele nome representava.
— O mundo ruindo, e Deus está sabe-se lá onde e fazendo sabe-se lá o que.
Contornando a praça, seguiu para a rua de trás, onde estacionou o carro e retirando a chave da ignição, a guardou no porta-luvas e abandonou o veículo, seguindo a pé de volta para o Jardim Central, onde deixou a sua moto.
Gabriel guiou Raguel até a sala de monitoramento. Ele nunca se interessou pela profissão do pai, mas, simpático como era, nunca recusou um convite para visitar o laboratório e conhecia bem suas dependências. Sempre fora mais inclinado para a matemática da mãe que para a química do pai, mas nunca disse nada, para não correr o risco de magoá-lo.O doutor Rashford, era conhecido mundialmente por seu trabalho com química quântica, e se tornou notável por suas descobertas nos campos da Química Nuclear, Astroquímica, Sonoquímica e Hidrodinâmica quântica, e era procurado por físicos do mundo todo para ministrar palestras e seminários.Miraculous Clearing era um campo muito fértil de grandes mentes, e havia exportado para o mundo muitos “gênios” em diversas áreas di
Mikael passou apressadamente pela entrada do hospital carregando seu pai nos braços. A mancha crescente e úmida na faixa improvisada mostrava que a hemorragia aumentava e ele precisava urgente de auxílio médico.A recepção e os corredores estavam vazios. Cadeiras, vasos de planta e papéis revirados e espalhados por todos os lados, davam a impressão de que um furacão ou algo parecido tinha passado por ali.— Alguém me ajude! — o jovem gritou desesperado, e desesperou-se ainda mais por receber em retorno apenas o eco de sua voz pelos corredores desertos.Colocando o pastor cuidadosamente no chão, ele retirou sua jaqueta suja de sangue e improvisou uma almofada, onde pousou a cabeç
Estava sendo doloroso para ela rever em câmera lenta o momento em que a mãe estava sendo consumida por aquela luz, mas precisava saber o que tinha acontecido de fato.As figuras humanóides que viram ao pausar a imagem no momento exato do ataque assemelhavam-se mais a anjos que a ETs. Será então que o que houve foi um arrebatamento e não uma abdução?Haviam muitas perguntas sem respostas ainda e ela estava grata por ter Gabriel ao seu lado. Apesar de conhecê-lo há tão pouco tempo, ela sentia que tinham uma ligação. Sem contar que ele era uma graça. Ela desviou a atenção do vídeo e de todo o resto por um instante, e se viu viajando no jovem, que por sua vez estava concentrado em encontrar mais indícios sobre o que estava acontecendo.
Raphael se sentiu revigorado após dormir algumas horas e agora o sol já se punha novamente. Ele levantou-se e seguiu até o quarto onde o Pastor Higgins estava se recuperando da cirurgia.Da porta, viu que Mikael olhava atento para a tela de um notebook que haviam encontrado em uma das salas. Ficou um tempo parado ali, observando e pensando nas circunstâncias em que seus caminhos se cruzaram. Enquanto cuidava do pastor, ele havia notado alguns olhares, mas preferiu ignorar. Mikael não parecia ser gay, e se fosse, com certeza Raphael saberia. Ali, sem ser notado, ele podia admirá-lo sem ser deselegante ou inconveniente. Já havia reparado pelo seu porte físico, que era um atleta e, que possivelmente, tinha músculos bem definidos em sua pele negra.— Pare com is
Nick olhou ao redor, e estranhou ao ver onde estava. O quarto estava exatamente como era quando tinha seus dez anos e ainda morava com seu pai em Miraculous Clearing. Cada boneca, cada bichinho de pelúcia, seus livros nas prateleiras, seu laptop rosa com adesivos de unicórnio e todos os móveis, estavam exatamente como deixava naquela época. Examinou o quarto minuciosamente com o olhar e até começou a tatear alguns objetos, como se desconfiasse que não fossem reais, até que uma rajada de vento entrou pelo vão debaixo da porta, deixando-a curiosa.Ela caminhou até a porta e a abriu, mas se conteve ao ver que a porta dava para o exterior e que o quarto onde estava se encontrava no topo de um prédio que parecia ser o da prefeitura, pois ficava no centro da cidade e era o prédio mais alto dali. Arriscou mais um passo, e ficou bem na beirada,
Gabriel sentiu o terror congelar-lhe os órgãos internos ao ouvir o que o detetive Simpson lhe disse.— Quem será aquela garota então?— ele perguntou a si mesmo — Será que foi ela que fez aquilo?Tratou de afastar esse pensamento da cabeça. Era absurdo pensar que uma garotinha de dez anos conseguiria fazer uma brutalidade daquelas com dois adultos, ainda mais um deles sendo um delegado treinado.Percebeu que Raguel não estava mais na sala e voltando a sala de espera da delegacia a encontrou estática olhando para o local onde haviam deixado a garotinha sentada, ao entrarem na delegacia.— Você viu par
Mikael programou o GPS com as coordenadas que o professor Vecchio deixou no email e deu a partida. Ao seu lado como um copiloto, Raphael segurava o aparelho celular com o cronômetro continuando a contagem de tempo iniciada por Louise assim que ligou o oxigênio do professor.— Quanto tempo ainda temos? — Mikael perguntou, sem tirar os olhos da pista — São cinquenta quilômetros até lá, na rota mais curta.— Temos pouco mais de uma hora — Raphael respondeu, enquanto colocava o cinto de segurança —, tempo de sobra, se nada nos atrapalhar.Seguiram para a avenida principal, em direção à zona sul da cidade. Era de se imaginar que o professor Jeremias Vecchio, sendo um historiador, ant
Raguel permaneceu em posição defensiva por mais alguns instantes, talvez imaginando que a criatura pudesse aparecer e atacar novamente, mas acabou por constatar que, aquela chama verde que surgiu de repente e respondia a seus comandos, havia a destruído por completo. Sentia uma corrente elétrica percorrendo todo seu corpo e todos os seus sentidos estavam mais aguçados. Não entendia de onde veio esta força, mas ela os salvou, então devia apenas ser grata.Levando uma mão às costas por sobre o ombro direito, ela sentiu o quanto essa chama, que brotava de sua pele como se fosse um novo membro do seu corpo, era densa e repetiu esse processo do lado esquerdo, constatando que eram um par, como se fossem uma espécie de asas. Concentrou-se em movimentá-las e viu que elas se dobravam ou se esticavam conforme a sua vontade.