2. Estancando

Faca e sangue sobre as mãos. Coração palpitando, olhos vermelhos de tanto chorar. A garota olhava para mim com cara de espanto. Os olhos castanhos claros, mais vermelhos que os meus, olhavam o cadáver da senhora caída sobre o chão. Não sabia no que ela estava pensando sobre mim. Poderia estar me achando um louco, ou até mesmo fora de mim.

— Júlio… porque você fez isso? — A voz estava nitidamente trêmula.

— Eu já te falei. Jéssica, eu já contei tudo…

Sim, a garota que presenciou a cena se tratava de minha irmã.

A vergonha que sentia dela era o que estava me matando, vergonha pelo que fiz.

— Tem algo acontecendo… — disse, olhando em seu rosto.

— Eu sei, mas isso o que fez é demais. — disse, olhando sério para mim.

O choro continuava, as lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto, limpando delicadamente o sangue seco que estava impregnado em minha pele.

— Como iremos explicar isto à polícia?

Não estava acreditando que havia matado aquela senhora. Mas precisava me proteger, era eu ou ela.

— Já tentei ligar para a policia… Só esta dando ocupado. — Disse, rouco.

— Então o que faremos? Não podemos deixar um corpo aqui na cozinha.

A voz tensa de minha irmã deixava transparecer o que estava sentindo. Nojo adensado à adrenalina do momento.

— Vamos limpar tudo…

— Não temos tempo, temos que nos m****r daqui. — Falei desesperado.

— Calma, Júlio. Precisamos ter calma. Se explicarmos tudo à polícia… que foi por pura defesa, talvez deixem você livre.

— Eu não estou te entendendo.

— Deixe a polícia resolver tudo! — Disse ela.

— VOCÊ NÃO ESTA ME ENTENDENDO, AS LINHAS ESTÃO CONGESTIONADAS! VOCÊ ACHA QUE JÁ NÃO TENTEI LIGAR? EU NÃO QUERIA QUE ISSO ACONTECESSE! NÃO QUERIA, MAS ACONTECEU!

— PARA DE GRITAR COMIGO!

Neste exato instante, uma explosão de estremecer a terra nos pegou de surpresa. O medo nos fez levar as mãos aos ouvidos numa forma inútil de se proteger do desconhecido. Assim que percebemos que a explosão e os ruídos cessava percebemos que tudo ao nosso redor ficou as escuras. A minha explicação para o ocorrido era que um gerador deveria ter explodindo ou simplesmente toda a usina elétrica. Tudo estava tão estranho que tudo o que pensasse não fizesse sentido algum.

— O que está havendo? — Perguntei. 

— O que há de errado com este lugar?

Levantei-me com a incessante dor, e, com dificuldade, caminhei até o telefone sem fio. Tirei-o do gancho e o levei até o ouvido. Estava mudo. O apagão devia ter danificado a linha telefônica.

— Não está pegando? — Perguntou Jéssica, tentando iluminar o local com a luz fraca do celular.

— Mas que porra tá acontecendo?

— Eu não sei. Eu disse que tem algo de errado, mas você não acredita em mim.  — disse tentado esquecer tudo o que tinha acabado de acontecer. Tentei me acalmar respirado fundo sentindo a dor profunda latejar a baixo do pulmão. — Me passa o seu celular. — Pedi levando a mão a costela e sentido dificuldade de respirar devido a dor.

— Toma.

O iPhone preto de minha irmã estava quase sem bateria. Precisava ser rápido. Digitei pela segunda vez no dia o número da Larissa. Esperava que daquela vez não desligasse em minha cara que desse tempo de explicar o que estava acontecendo.

— Está chamando? — Perguntou, Jéssica tentando me avisar para não usar toda a bateria.

— Está sim. — Respondi com um aceno de cabeça.

— Larissa, Larissa, me escuta pelo amor de Deus!

— Júlio, é você? Graças a Deus! — Sua voz estava trêmula e ofegante.

— Você não imagina o que acabei de ver…

— Larissa, me escuta. Tem algo muito errado acontecendo… — Enquanto falava ao celular, minha irmã cobria o corpo da senhora com uma toalha de mesa branca.

O jeito como ela cobria me deixou ainda mais nervoso. Ela parecia finalmente acreditar em mim. Eu não a tinha matado porque simplesmente eu quis ela estava longe da e foi por pura defesa.

— Eu sei, eu sei. Depois que você me ligou, fui assistir TV. Assim que a liguei, vi o que considerei uma pegadinha do programa, mas não era. Uma faixa vermelha com os dizeres “código púrpura” estava na tela. Não sabia o que significava. Foi quando, mudando de canal, vi um jornalista falando de algum tipo de atentado, vi um bando de gente atacar as pessoas. Atacar umas às outras como animais…

— Eu matei uma pessoa. — disse, interrompendo-a sentido as duras palavras me fazer chorar.

— O quê?

— Ela de estava tentando  me morder... Foi por pura defesa... Eu tive que fazer... — Minha voz estava trêmula e a da Larissa também. Todos estávamos nervosos.

— O que está me dizendo, Júlio?

— Isto o que ouviu.

— Está de brincadeira comigo? Pois não tem graça.

— Não estou mentindo… — Como ele acreditaria em algo assim?

— Não estou mentindo. Sabe a senhora que te falei?

— Júlio, para com isso…

— Deixa para lá. — Ela não iria entender, também não iria ficar insistindo. — Pega a sua irmã e vem para cá precisamos ficar juntos.

— O quê?

— Larissa, você precisa vir.

Eu precisava dela perto de mim ela era minha amiga e saberia me consolar com o fato de ter matado alguém. Eu precisava dela naquele momento. Além do mais eu estava com um péssimo pressentimento de que se não ficássemos junto algo pior ocorreria.

— Não sei explicar, só vem…

O celular ficou mudo...

— Merda, a bateria acabou. — disse, tentando ligar o celular.

“Larissa, espero que venham para cá”, pensei, apertando o celular na mão. 

— Vamos até o meu quarto, deixei o celular na cama.

Enquanto subíamos, fui atingido por uma dor insuportável, me fazendo rolar escada a baixo. Minha irmã, que estava à minha frente, só notou a queda segundos depois.

— Júlio o que aconteceu? — Perguntou num tom de preocupação.

Com dificuldade, respondi:

— Minhas costelas estão me matando. — Respondi sentido minha visão ficar embaçada.


Larissa

— Depois da ligação

— Júlio… Júlio? — Chamei o nome dele em vão, a ligação havia caído.

Estava em uma pequena sala no momento do apagão.

Como havia dito para o Júlio, estava vendo uma matéria na TV. As imagens eram confusas, mas me deixaram assustada. Vi um bando de pessoas atacando uma às outras. Pude jurar que vi uma delas morder uma criança. Mas penso que foi coisa de minha cabeça.

— Larissa? — Chamou uma voz ao longe.

— O QUÊ? — Gritei de volta.

— Tem… Tem… Uma pessoa parada na frente de casa.

A voz feminina e familiar estava deveras preocupada.

— Deve ser a vizinha atrás do gato dela. — disse, tentando retornar a ligação para Júlio, mas parecia que estava desligado.

— Larissa?

— O que é, Lara?

Minha irmã costuma me deixa irritada facilmente. Ela tem sempre a mesma mania chata de ficar me chamando para tudo. Tirando isto, ela é uma irmã perfeita. Maluca mas perfeita.

— A pessoa está agindo de uma maneira estranha…

O que era estranho para ela? A vizinha estar procurando sua gata? Ou estar parada na frente de nossa casa? Sinceramente, não sabia.

— Como assim, “estranha”? — Perguntei, querendo ouvir a resposta que daria.

— Ela… Ela… — O choro foi acompanhado de um grito de puro ódio. — Está comendo a gata dela!

— Lara, se você estiver de brincadeira comigo, eu bato em você!

Mas não estava. O choro de minha irmã me fez ir diretamente ao seu encontro. O corpo miúdo dela estava encolhido sobre um sofá. Ela balançava para lá e para cá, como se estivesse fora de si. Ela estava abismada com algo. Nunca tinha visto ela daquela forma.

—Lara o que você tem?

Sem dizer uma única palavra, apontou seu fino dedo em direção à janela.

Olhei imediatamente para o lado de fora, mesmo com a escuridão ao redor pude ver o que deixou minha irmã naquele estado. Uma mulher, a vizinha da casa da frente estava agachada no nosso quintal, como se estivesse procurando algo sobre o chão. No momento, não havia notado nada de errado, pois sua longa camisola impedia a visão. Foi quando algo saiu rolando de baixo de suas pernas. A cabeça decapitada de um gato branco era visível. A cena me abalou. A vizinha tinha enlouquecido como as pessoas que vi na televisão. Ela estava comendo o gato.

— Merda… — Tirei os olhos da janela e voltei a atenção à minha irmã.

— Lara, precisamos sair daqui…

Será que o tal “código púrpura”  estava mesmo em vigor na cidade? Não sabia o que fazer. A última frase de Júlio invadiu minha mente. Precisava ir até a sua casa e ficarmos juntos até essa merda toda acabar.

— Lara, levanta… Precisamos ir à casa do Júlio.

****

— EU NÃO QUERO IR! — Gritava Lara envolta em seus próprios braços.

— Lara, precisamos ir à casa do Júlio… — Falei, tentando parecer amorosa.

— NÃO EU NÃO VOU! — Falou aos berros.

— VAMOS! —

— NÃO! — Os berros exagerados dela me fizeram ficar sem paciência.

— NÃO? — disse, olhando para ela.

— NÃO! — Puxei-a pelo braço, coloquei-a sobre o ombro e tentei levá-la à força.

Neste momento, algo aconteceu. A vizinha que devorava sua gata se jogou contra a janela nos fazendo saltar com o susto.

— LARISSA, VAMOS PARA A CASA DO JÚLIO! — falou Lara num soluço.

A imagem de minha irmã seria cômica, se não fosse pela vizinha que se jogava cada vez mais contra a janela. Sua face sem vida estava ensanguentada, havia em seu pescoço uma espécie de mordida. Mas nada era mais assustador do que estava tentando fazer. Ela tentava morder o vidro se machucando cada vez mais. Ela parecia louca e fora de si como se seu dever era apenas nos abocanhar ou tentar nos alcançar. 

— LARISSA, VAMOS!

— JÁ VOU, BUDEGA!

Queria ver a vizinha mais de perto.

Caminhei até a janela e a encarei. Seus olhos brancos feito leite me encaravam como câmeras. Sua fúria me deixou assustada. Era como olhar para um poço sem vida alguma. Ela não era mais humana, disso tinha certeza, aliás quem estripa um indefeso gatinho. Só de lembrar a cena o nojo ódio me invade. Se não fosse pelo medo de ser atacada como o gato eu com toda a certeza acabaria dando umas boas pauladas em sua cara, mas não tinha tempo para isso. Ela já estava conseguindo quebrar a vidraça e se esticando cada vez mais em minha direção. Eu precisava ter cautela ao sair de casa. Precisava sair sem ser vista por ela ou eu e minha irmã estaríamos fritas. Ainda bem que nosso carro estava fora da garagem era só entrar e partir até a casa do Júlio. O caminho seria longo mas com o medo que estava sentido e a adrenalina sobre meu corpo chegaria menos de quinze minutos. Eu tinha em mente que se tudo o que a reportagem na televisão dizia fosse verdade poderíamos ter problemas futuros com esses seres sanguinários.

— LARISSA! — Chamou mais uma vez.

— VAMOS, VAMOS LOGO! — disse, ainda olhando para a janela. — ANTES QUE ESTA MALDITA NOS ATAQUE!

Jéssica

— Curativos! —

O barulho da queda  de meu irmão me deixou assustada. A princípio, pensei que devia ser alguém à procura da senhora morta, mas não era nada disso. Meu irmão havia desmoronado de escada a baixo, uma altura considerada grave. Se seu estado já era complicado, agora piorará.

Após ter desmaiado, corri até meu quarto sentido o desespero percorrer meu corpo, retirei um quite médico que estava dentro de uma das gavetas de meu guarda-roupas e novamente corri até o local da queda.

A pequena caixa vermelha balançava junto a meu corpo. A cruz branca na lateral esquerda da caixa fora mal colada com fita crepe no começo do semestre, antes do corte que tivera em meu dedo. Sem luz tudo parecia uma armadilha, mesmo com o quite precisava de luz para que pudessem higienizar os ferimentos, não podia simplesmente fazer tudo as cegas.

— Maldita hora que essa merda resolve acabar. — Falei tentando me acalmar em meio a tremedeira e a suor frio que já percorria todo meu corpo. Precisava de uma lanterna. Tinha uma na garagem, eu sei disso, pois pela manhã quando retirei o carro  eu a vi em uma das estantes. Era simples, só precisava ir até lá e pegá-la, depois era só eu voltar e cuidar de meu irmão. Fui novamente até a cozinha onde havia o corpo sem vida da senhora coberto por um forro de mesa branco que encontrei em uma das gavetas e tentei me acalmar. Estava tudo escuro e precisava me manter calma ou eu mesmo acabaria tropeçando e me espatifando no chão. Aí teríamos dois feridos ao invés de um só. Tudo estava em silêncio. Era um silêncio que jamais tinha ouvido antes. Tudo estava calmo de mais.

Corri até a porta que já estava escancarada. Assim que botei meu corpo para fora notei que tudo estava as escuras e silencioso. O frio gélido vindo da praia parecia querer nos avisar que algo não ia bem. As ruas ao redor estavam sem movimento, estava atenta a tudo há tudo ao redor. Mesmo parecendo frágil e indefesa eu sabia muito bem me defender. Estava preparada para quem quer que aparecesse. Caminhei me encostando às paredes que encontrei pelo caminho, até chegar a garagem. Tudo parecia uma verdadeira zona desconhecida mesmo sabendo que visitava aquele cômodo duas vezes ao dia. A escuridão brinca com nossos sentidos e isso acaba fazendo com que o coração acelere ainda mas. Cinco minutos depois encontrei rapidamente a estante, e, logo em seguida, a bendita lanterna. Com as mãos suadas, testei-a. Por sorte, estava carregada.

Voltei rapidamente para casa. Tudo estava do mesmo jeito que havia deixado.

Meu irmão continuava desacordado sobre o frio chão frio. Retirei de dentro do quite médico uma tesoura. Minhas mãos tremiam. Não por medo, e sim pelo fato de estar fazendo uma tarefa perigosa, pois, qualquer deslize que desse, poderia acabar ferindo ainda mais o meu irmão. Usei a tesoura para cortar a camiseta polo verde que usava. O sangue seco a fez ficar dura, dificultando ainda mais o meu trabalho. O barulho da lâmina em contato com o pano era deveras estranho. Após recortar a camiseta, peguei a lanterna e iluminei a sua barriga.

— Merda… — disse, ao ver o estado em que ela se encontrava.

Abaixo do umbigo, era visível um estranho roxeado que se estendia até as duas últimas costelas. Tanto esquerda, quanto direita. Com um grande pedaço de algodão, higienizei o local. Logo após, retirei de dentro do quite médico um rolo de ataduras, o mesmo que os médicos usam para enfaixar braços quebrados.

Foram trinta minutos de trabalho. Após este tempo, as costelas de meu irmão estava totalmente atadas. Os cortes superficiais que a queda causara estavam higienizados. Sua respiração estava ofegante, mas parecia melhor do que antes. Coloquei a mão sobre sua testa e percebi que estava com febre.

— Preciso levá-lo ao hospital.


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