Precisamos falar sobre nós
Precisamos falar sobre nós
Por: Srta. Arthemis
1 Captando um Frame...

Fitei minhas mãos, percebendo a pele um pouco mais pálida que o normal por causa do frio, soprei sobre elas, tentando aquecê-las, e vi minha respiração condensando no ar como uma suave neblina branca, era um trabalho inútil, afinal logo elas estariam frias novamente, mas não conseguia evitar de o fazer.  Ri com meus próprios pensamentos e fazendo, uma negativa para mim mesma, ergui os olhos em direção à avenida movimentada, a tempo de me deparar com uma cena curiosa.

Um rapaz corria apressado alguns metros à minha frente. Era jovem, como um estudante do ensino médio, tinha cabelos loiros lisos que escorriam por sua testa e chamativos lábios avermelhados que tremiam levemente enquanto ofegava pela corrida. Para onde quer que estivesse indo, estava com pressa o suficiente para atrapalhar-se entre segurar seus livros e ou o cachecol esvoaçante.

Ergui a câmera diante dos meus olhos, enfocando aquela imagem intrigante e capturei uma fotografia – um frame da vida de alguém que desconheço –, e que certamente não faria diferença alguma em sua vida, mesmo sendo tão importante para mim.

Em minha mente, rapidamente formou-se a ideia de que se tratava de um estudante saindo do cursinho noturno, atrasado para pegar o último trem da estação. Era uma hipótese pertinente, mas poderia não ser o caso, e talvez eu nunca soubesse o que de fato estava acontecendo, restando-me apenas as suposições.

O frio parecia estar se estendendo aquele inverno, cobrindo os telhados das casas de neve que, sendo tão branca, contrastava com as decorações coloridas e brilhantes das festas de fim de ano, tornando as ruas um lugar interessante para encontrar novas histórias a serem desvendas por aqueles de olhos curiosos.

“Estou congelando...” Pensei comigo mesma, percebendo que estava extrapolando os limites do quanto meu corpo aguentava o frio, dei uma última olhada na imagem na tela da câmera digital, e sorri, satisfeita com o resultado produtivo da minha noite de pesquisa.

Caminhei tropegamente pelas ruas desertas, evitando um pouco os becos sombrios e trilhei pelo caminho de paralelepípedos em direção ao pequeno apartamento que havia alugado alguns meses antes. Fitei a fachada pintada em tinta branca comum, a única sem decoração natalina – nunca me importei muito com isso –, e depois de revirar minha bolsa procurando pelas chaves, irrompi pela porta antiga de madeira que rangia como a de uma casa mal assombrada.

Dentro do hall de entrada, retirei o pesado casaco cor de verde musgo e tateei a parede, procurando pelo interruptor de luz. Nesse momento, meus olhos recaíram sobre um gatinho de pelos absurdamente negros, Midnight, que aproximava-se miando como se dissesse “bem-vinda de volta, mamãe”, me agachei, aconchegando-o no colo e senti sua cabecinha peluda e quente esfregando-se em meu rosto.

Poucas coisas eram tão reconfortantes como ser recebida daquela forma.

Por mais que ele não pudesse falar, seus grandes olhos de brilho dourado, diziam muito mais do que poderia ser expressado em palavras, estas que muitas vezes, não conseguiam condensar a totalidades dos sentimentos. Ao longo dos anos, a solidão me ensinou muitas coisas, e uma delas era a apreciar emoções sinceras como aquela.

Quando o wi-fi conectou ao meu celular, ouvi o som característico de diversas mensagens chegando uma seguida da outra, a maioria era relacionado a faculdade, mensagens de grupos de pesquisa e coisas assim, porém, uma delas – mais precisamente um longo áudio de quase cinco minutos –, era da minha mãe.

Não sabe como fico preocupada por estar tão longe, e nem ao menos está trabalhando... – Ela reclamava entre suspiros desconsolados, mas sua voz demonstrava uma irritação contida. – Não entendo a finalidade desse comportamento, porque você é tão insensível, Azaria?

Era evidente o quanto estava insatisfeita com minha situação de “desempregada”, e por mais que me incomodasse profundamente seus comentários, eu tinha consciência de que se devia a sua preocupação materna em me ver no caminho certo, mesmo que isso significasse repetitivas discussões sempre que conversávamos.

Eu era a filha “sem futuro”, mesmo não usando drogas ou algo do gênero.

Às vezes, deitada no tapete da sala, fitando o teto depois de beber algumas taças de vinho, pensava sobre suas palavras e ria sozinha, lembrando do discurso memorizado: “sem trabalho, sem casa própria, sem marido, como quer que não me preocupe?”. Era sempre a mesma coisa, mas já havia deixado de me magoar com isso, ou pelo menos era o que tentava dizer a mim mesma.

E justamente por isso, não havia voltado para casa para comemorar as festas pelo segundo ano consecutivo desde que me mudei para Nova York, estava muito mais satisfeita em ficar sozinha. Em meus pensamentos egoístas, parecia mais efetivo, ficar distante e sentirmos saudades, a ter que conviver no mesmo teto observando de perto os defeitos uma da outra.

Porque minha mãe não conseguia entender que o que tenho é um trabalho?

Ser escritora sempre havia sido meu sonho. Quando criança, a família dividia-se entre achar uma graça e a outra parte, retrucava sobre a dificuldade em seguir uma carreira como aquela, principalmente por parte das minhas irmãs e tias. Então, parei de falar sobre, e quando me questionavam, respondia que iria cursar algo relacionado a licenciatura, talvez pedagogia.

No fim das contas, acabei fazendo isso mesmo, e quando terminei, comecei a trabalhar em uma escola primária, mas não deu nada certo, sendo este um dos motivos para rapidamente ter me matriculado em um curso voltado às artes. A expressão de espanto em seus rostos ao saber da terceira graduação era impagável, tão abismados que não conseguiam disfarçar, era como se estivesse escrito por todo seus rostos o quanto achavam absurdo, minha mãe sendo a única que teve coragem de perguntar: “porque não faz uma pós-graduação?”

Era nesses momentos que mais eu ria, questionando-me o que eles sabiam sobre a minha vida para sugerir algo tão avidamente, mas apenas concordava para não gastar saliva tentando explicar.

Isso até dois anos atrás quando liguei o fod*-se!

Quando meu sonho se realizou, fiquei imensamente feliz, mas logo percebi que as coisas não eram tão simples quanto eu gostaria. Não tinha fama – romances açucarados pareciam ter caído de moda –, e não precisei de muito tempo para entender que precisava criar uma identidade própria para o que eu escrevia.

Um dia, quando estava quase desistindo e prestes a aceitar um emprego relacionado a venda dos alimentos agrários que eram produzidos na fazenda da nossa família, abri a página do blog onde escrevia, deparando-me com uma única mensagem sugestiva, porém, que ao longo dos meses, começou a sempre se fazer presente. Era como se tentasse me animar.

No fim, acabei me acostumando a ter aquele leitor costumeiro por perto.

Então, depois de algum tempo, seus comentários foram me dando ideias, e antes que percebesse, já havia estendido meus textos para variadas áreas, ganhando alguns mais leitores fiéis. Não ganhava muito, isso era uma realidade, mas conseguia viver confortavelmente, fazendo alguns trabalhos freelancer quando precisava de dinheiro, e ao que parecia, estava indo bem.

 Às vezes, eram atividades cansativas, mais psicologicamente na verdade, porém, que rendiam experiencias engraçadas para contar em rodas de conversa ou mesmo, passiveis de ser introduzidas na coletânea de contos.

Fui tirada dos meus devaneios quando meus olhos se encontraram aos do gatinho que havia se apossado da minha casa, me “adotando”, e que claramente esperava sua comida, desamarrei os cadarços dos sapatos pretos de cano alto, substituindo-os por confortáveis pantufas, e em seguida, coloquei ração em seu pratinho.

Ainda estava com frio então, tomei um banho e vesti roupas quentes, como não estava com sono, joguei-me no sofá, acompanhada de uma garrafinha de vinho morno, planejando dormir ali mesmo enquanto assistia alguma coisa na televisão a cabo, mergulhada na semiescuridão do cômodo.

 Um ar gélido tomou meus pés e mãos fazendo-me encolher levemente, era um fenômeno inexplicável, que acontecia pelo menos duas vezes por dia, mesmo não havendo janelas ou portas abertas, bebi mais um pouco do líquido morno, tentando aquecer minha garganta, mas a sensação de inquietação não se alterou.

Pelo canto do olho, notei um pequeno vulto parado a alguns passos de mim, uma sombra humanoide que parecia me fitar, mesmo não possuindo rosto, silenciosa e com a qual já havia me acostumado. Quando a vi pela primeira vez, achei que estava tendo alucinações por causa de uma noite de bebedeiras, e ao perceber que realmente tratava-se de um espectro que um dia havia sido humano, quase infartei de medo.

Contudo, com o tempo, aquele ser, que por algum motivo imaginava ser uma mulher, tornou-se mais curioso do que assustador. E depois de dois anos, tínhamos uma relação de respeito, ela não mexia em minhas coisas, e eu não mexia com ela.

Olhei para a garrafa em minhas mãos, quase pela metade e fiquei surpresa, sempre bebia em demasia quando tratava-se de bebidas doces, era preocupante, estava perdendo o controle. Pensar nisso me deixou deprimida novamente, as experiencias bêbada eram notadamente cômicas, esquecia das complicações diárias, mas com o passar do tempo, começava a não ver mais sentido em coisas como aquela, ainda mais quando me via tão perto dos trinta anos.

Tentei me distrair daqueles pensamentos melancólicos, passando pelos canais enquanto procurava por algo que não estivesse relacionado ao natal, não aguentava mais ver renas ou pessoas vestidas de vermelho. Quis beber algumas pílulas de calmantes, mas me refreei rapidamente, questionando-me que loucuras estava planejando fazer.

Dentre todas as loucuras que tinha feito, misturar bebida alcoólica e remédios, era o mais importante ponto de limite para nunca ultrapassar.

Lembrei-me da fotografia que havia capturado anteriormente, coloquei a garrafa no chão, e segui em direção ao meu quarto. Sentei-me diante da escrivaninha, conectei o cartão de memória da câmera ao computador e a imprimi, juntando-a as outras que havia tirado nos últimos meses.

Nem sempre as “histórias” capturadas nos frames me ajudavam no desenvolvimento das narrativas, mas sempre as guardava, deixando para usar em algum outro momento oportuno posteriormente.

Joguei a cabeça para trás, e novamente as palavras da minha mãe retornaram à minha mente, ela queria que eu voltasse para casa, ao menos nos feriados, mas recusava-se a aceitar meu novo modo de vida, e isso eu não podia aguentar. Seria o mesmo que não estar verdadeiramente viva, e sendo honesta, ela ficaria ainda mais decepcionada quando visse o que fiz com a aparência que ela tanto se agradava.

Antes da mudança, havia mantido meus cabelos castanhos longos e ondulados, não usava piercings ou sequer bebia alcóolicos, e parando para pensar, estava fingindo ser alguém que não era apenas para vê-la feliz. Talvez, os comentários das outras moças da nossa comunidade, chamando-me de “sonsa”, não fossem tão falsos quanto eram maldosos.

“Preciso mostrar que não necessito do seu apoio...” Murmurei para mim mesma sentindo a melancolia transformar-se em irritação, peguei o celular, abrindo o aplicativo da minha conta bancária e percebi que não tinha muito dinheiro, surpreendendo-me novamente.

Balancei a cabeça fazendo uma negativa e mordi o lábio inferior, pensando naquela coincidência azarada, pelo visto teria que arranjar algum trabalho. Mas não daria o “braço a torcer”, revirei nas gavetas, encontrando alguns dos anúncios que havia apontado com marca texto, e decidi que logo iria dar uma olhada em alguma daquelas vagas de meio período.

            O vulto passou por mim novamente enquanto retornava à sala para desligar a televisão, parecia mais “solida” naquele momento e lentamente ganhava alguma forma, mas que ainda era um pouco indecifrável aos meus olhos cansados. Peguei a garrafa do chão, derramando o resto do conteúdo na pia da cozinha e apaguei as luzes, para em seguida colocar a garrafa no lixeiro.

            Olhei para trás, percebendo que minha “colega de quarto” fantasmagórica havia desaparecido e olhei para a garrafa vazia ainda em minhas mãos, notando uma coincidência que me fez arquear uma sobrancelha em curiosidade: ela sempre aparecia quando eu estava bebendo.

“– Qual o significado disso?” Questionei para mim mesma.

            A verdade era que, por mais que já estivesse acostumada à sua presença, ainda não tinha segurança em tentar me comunicar com ela, e inconscientemente, sentia que era uma forma de manter aquela sensação de distanciamento, uma forma de mantê-la apenas como uma ilusão da minha mente.

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