(Sala das Funcionárias – 9h25 da manhã)
Angel
Carolina não perdeu tempo.
— Essa será a sua mesa — ela disse, apontando para a pequena bancada encostada na parede. — Você vai organizar arquivos, fazer cópias e, se sobrar tempo, aprender a fazer café.
Sorri, docemente venenosa.
— Que sorte a minha, ter você como mentora.
Ela ignorou a provocação.
— Lucas gosta do café às 9h30 em ponto. Não atrase.
— Lucas, Lucas, Lucas — murmurei, fingindo interesse. — Ele deve ser ótimo em… tudo, não é?
Os olhos de Carolina estreitaram.
— Ele é profissional. Algo que você claramente não entende.
— Ah, Carol, me dá uma chance — Soltei, me inclinando para frente. — Quem sabe eu não aprendo algumas coisas… particulares com ele?
Ela ficou branca.
— Você é nojenta.
Missão Concluída.
Me sentei na cadeira improvisada com a leveza de quem está prestes a cometer um crime. Carolina já tinha voltado ao teclado, digitando como se estivesse redigindo um tratado de paz entre países hostis.
— Aqui — ela disse, virando-se com um sorriso ensaiado. — Preciso que você revise esse relatório antes de encaminharmos para o jurídico. Está tudo aí, mas só precisa organizar melhor e ajustar a formatação no modelo da empresa.
Ela colocou uma pasta sobre minha mesa com a delicadeza de quem oferece um presente. Um presente envenenado, claro. Peguei o material, tentando manter a postura.
— E qual é o modelo da empresa? Tem algum modelo, talvez um manual...?
— Claro, vou te encaminhar por e-mail.
Ela sorriu, voltou ao computador e fingiu que me enviava algo. Eu vi os dedos dela digitando e deletando antes de clicar em “enviar”.
Ótimo. Tentei não surtar. Abri a pasta, li os relatórios e tentei. Fiz o que parecia mais lógico.
Cinquenta minutos depois, entreguei pra ela. Carolina folheou o material com a expressão mais neutra do mundo e então suspirou, como se estivesse exausta.
— Angel… — ela começou, com um tom doce o suficiente pra enjoar —, isso está completamente fora do padrão. O jurídico nunca aceitaria esse tipo de formatação.
Olhei pra ela como se ela tivesse acabado de reclamar do alinhamento das nuvens no céu.
— Você não me mandou o modelo. Eu perguntei.
— Mandei sim.
Eu ri. Uma risada seca, curta, quase um latido.
Lucas apareceu na porta exatamente nesse momento.
— Algum problema?
— Nada — disse Carolina, antes que eu abrisse a boca. — A Angel está se familiarizando com os procedimentos. Tudo sob controle.
Ele me lançou um olhar rápido. Eu devia estar com uma expressão de quem queria esganar alguém com um grampeador.
— Angel? — ele perguntou, direto.
Eu engoli o que queria dizer e forcei um sorriso.
— Tudo sob controle. Exatamente como ela disse.
Lucas não comprou. Mas também não questionou. Voltou pra sala dele sem dizer mais nada. E eu percebi que Carolina jogava bem. Muito bem.
Pior: ela sabia exatamente como me fazer parecer o problema.
E isso, claro, era só o começo.
******
Duas horas depois, eu já estava convencida de que Carolina me odiava mais do que café frio.
Ela passava pela minha mesa de meia em meia hora para apontar erros inexistentes. Corrigia o tom de e-mails que eu nem tinha enviado. Fez questão de dizer que “a empresa preza por uma imagem profissional” quando eu ajeitei o cabelo com as mãos, como se isso fosse um crime de lesa-pátria.
A única pausa que tive foi pra tomar um café, algo que fiz questão de servir na caneca mais brega que encontrei no armário da copa. Voltei pra minha mesa com a caneca de purpurina em uma mão e um ímpeto homicida na outra.
Carolina estava ao telefone, com aquela voz doce que ela só usava com quem importava — o que claramente não me incluía. Fingiu não me ver quando passei por ela, mas eu senti o olhar nas costas, como se ela esperasse que eu tropeçasse só pra rir por dentro.
Voltei pro meu lugar e fingi trabalhar. Meus olhos alternavam entre a tela e a recepção. Eu não confiava nela. Nem um pouco.
E então, às 11h37, Carolina se levantou.
Ela ajeitou o blazer com um cuidado ensaiado, pegou uma pequena pasta e seguiu direto para a sala de Lucas. Bateu com dois toques curtos e entrou.
A porta se fechou atrás dela.
Fiquei paralisada por um instante. É agora, pensei.
Eu conhecia o tipo. O olhar enviesado que Carolina lançava quando Lucas passava. A forma como a voz dela suavizou sutilmente quando falava com ele. A maneira como ela me olhava como se eu fosse uma nota fora da partitura perfeita que ela tinha montado ali.
Ela queria que eu fosse embora. Queria meu fracasso. E, provavelmente, estava lá dentro nesse exato momento vendendo a ideia de que eu era um risco. Um fardo. Um erro.
Peguei a caneca com tanta força que quase quebrei a alça.
Vai reclamar de mim. Vai tentar me tirar daqui.
Cada minuto que ela passava naquela sala me corroía por dentro. Eu sabia que não devia me importar. Que nada daquilo era realmente “meu”. Mas havia algo naquele jogo silencioso que me deixava mais irritada do que eu queria admitir.
E no fundo, o que mais me incomodava era não saber o que ele ia responder.
Onze minutos.
Foi o tempo que ela ficou lá dentro.
Carolina saiu da sala de Lucas com a expressão de quem não sorri, mas vence. A postura ereta, a pasta contra o peito como um troféu. Não me olhou. Passou direto. E isso disse mais do que qualquer palavra.
Ela sabia que eu ia perceber. Era parte do show.
Minha garganta secou. A mão apertou a caneca com força de novo. Era como se o chão tivesse começado a inclinar devagar, e só eu estivesse sentindo.
Minutos depois, veio o aviso:
— Lucas quer falar com você.
Virei lentamente, levantando da cadeira com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse fazer tudo desmoronar mais rápido.
Mas se Carolina pensava que iria me vencer tão facilmente, ela estava muito enganada. Ela não tem ideia do quanto eu posso ser persistente quando eu quero. E no momento eu quero provar que posso fazer isso!
Com determinação, segurei a meçaneta da porta do escritório de Lucas e entrei. Sem bater.
(Escritório de Lucas, 11h50)LucasO uísque queimava na garganta, mas nem o álcool de 18 anos conseguiu apagar o que estava prestes a acontecer. Angel. Na minha equipe. Todos os dias. A mão fechou com força em volta do copo. No reflexo do vidro da janela do escritório, meu rosto estava tenso, a mandíbula cerrada, os olhos escuros como a noite paulistana lá fora. E os problemas já começaram. Carolina tinha acabado de sair da minha sala, após discorrer sobre os vários motivos pelos quais Angel não poderia continuar auxiliando em seu trabalho."Ela vai destruir você", a voz da minha avó ecoou na memória, como sempre ecoava quando Angel estava por perto. "Menino, você é um Silva. Eles são Figueirdos. Nunca se esqueça disso." Mas como esquecer? Como ignorar aquela mulher quando ela estava em todo lugar? Nos corredores da mansão com seus vestidos que desafiavam a decência, nas festas da família com seus olhares desafiadores, nos meus sonhos mais secretos com aquela boca que sabia co
(Bar noturno, centro de São Paulo – Sexta-feira, 23h47)AngelA música alta martelava meus ouvidos, e o tequila derramado escorria pelo meu pulso, misturando-se ao suor. Eu não sabia mais quantos shots tinha tomado, só sabia que cada um deles afogava um pedaço daquela verdade que me envenena por dentro.— Sobe, Angel! — gritou Marcela, rindo enquanto batia palmas.Eu já tava em cima da mesa antes de pensar duas vezes. Aliás, pensar duas vezes não era algo que eu vinha fazendo muito ultimamente. Nem uma vez, pra ser sincera.A mesa de madeira tremia sob meus saltos altos, e eu balancei os quadris, deixando o vestido curtíssimo subir ainda mais. Alguns homens ao redor assobiavam, outros levantavam copos em minha direção. — Isso, garota! Solta essa energia represada! — incentivou Joana, filmando tudo com o celular, claro.Eu girava, ria, e esquecia. Esqueci que minha mãe tinha morrido sem me contar quem era meu pai de verdade. Esquecia que meu pai, ou o homem que me criou como filha, ma
(Mansão dos Figueiredo – 00h37) AngelO som dos meus saltos no mármore da entrada ecoou como tiros no silêncio da mansão, enquanto Lucas fechava a porta atrás de nós. Mas não se adiantou. Ficou ali, como um soldado aguardando ordens, enquanto eu engolia saliva grossa de álcool e arrependimento. — Na biblioteca. — ele murmurou, os olhos escuros fixos no corredor. — Os dois. Merda. Minhas pernas tremeram. Os dois significavam pai e avó. Juntos. E se estavam na biblioteca — o cômodo mais solene da casa —, era porque aquilo não era uma conversa. Era um tribunal. Avancei devagar, sentindo o olhar de Lucas queimando minhas costas. Cada passo era uma tortura. Quando cheguei à porta entornada de carvalho, quase virei e corri. Mas então ouvi a voz da minha avó, firme e cortante como uma lâmina: — Entre. A biblioteca estava iluminada apenas pela lareira e um abajur de mesa. Leonardo Figueiredo, aquele que até alguns dias acreditou ser meu pai, estava sentado numa poltrona de couro
(No carro – 8h15 da manhã) AngelO Jaguar preto deslizava pelas ruas de São Paulo, mas minha atenção não estava na paisagem. Estava nas mãos dele.Lucas dirigia com apenas uma mão no volante, os dedos longos e firmes, as veias levemente saltadas sob a pele. Mãos fortes. Mãos que sabiam dominar. Como seria sentir essas mãos em outros lugares? A imagem invadiu minha mente sem permissão: seus dedos deslizando pela minha cintura, apertando minha pele, segurando-me com aquela mesma firmeza com que ele segurava o volante…— Você está bem?A voz dele me arrancou do devaneio. — O quê?— Você está corada. — Ele olhou para mim, o cenho levemente franzido. — Se vai vomitar, avisa antes. Não quero que estrague o couro do carro. — Que cavalheiro! — soltei, me encostando no banco. — Não se preocupe, seu carro está seguro. Não vou vomitar. Só estou pensando em como suas mãos fariam coisas muito piores em mim. Ele não respondeu, mas os dedos dele se apertaram no volante. Ele tinha percebi