(Bar noturno, centro de São Paulo – Sexta-feira, 23h47)
Angel
A música alta martelava meus ouvidos, e o tequila derramado escorria pelo meu pulso, misturando-se ao suor. Eu não sabia mais quantos shots tinha tomado, só sabia que cada um deles afogava um pedaço daquela verdade que me envenena por dentro.
— Sobe, Angel! — gritou Marcela, rindo enquanto batia palmas.
Eu já tava em cima da mesa antes de pensar duas vezes. Aliás, pensar duas vezes não era algo que eu vinha fazendo muito ultimamente. Nem uma vez, pra ser sincera.
A mesa de madeira tremia sob meus saltos altos, e eu balancei os quadris, deixando o vestido curtíssimo subir ainda mais. Alguns homens ao redor assobiavam, outros levantavam copos em minha direção.
— Isso, garota! Solta essa energia represada! — incentivou Joana, filmando tudo com o celular, claro.
Eu girava, ria, e esquecia. Esqueci que minha mãe tinha morrido sem me contar quem era meu pai de verdade. Esquecia que meu pai, ou o homem que me criou como filha, mal conseguia olhar nos meus olhos desde que descobriu tudo.
Era libertador. Por uns minutos, pelo menos. Até que o clima mudou.
O ar ficou pesado, e as risadas ao meu redor se calaram. Alguém tinha aberto caminho no meio da multidão com autoridade. Não precisei olhar para saber quem era.
— Chega.
A voz dele era baixa, firme, e cheia daquela irritação contida que eu adorava provocar.
Virei devagar, desafiante, e lá estava Lucas.
Terno preto impecável, mesmo às onze da noite. Postura de quem nunca relaxou um segundo na vida. E aquele olhar escuro, perigoso, grudado em mim como se eu fosse um problema que ele tinha que resolver.
Eu continuei dançando. Porque sou teimosa. E porque a raiva me fazia querer provocar qualquer um que representasse a velha ordem que me sufocava.
— Desce. Agora.
Ri, jogando o cabelo para trás.
— Não tô atrapalhando ninguém, Lucas. Vai cuidar da sua vida.
Ele não se moveu. Só apertou o queixo, e eu vi o músculo da mandíbula dele tensionar. Sinal de perigo.
Minhas amigas tentaram interferir.
— Ela tá bem, nós levamos ela pra casa— Joana disse, mas Lucas nem olhou para elas.
— Vocês deviam ter impedido ela de subir nessa mesa.
O tom não deixava espaço para discussão. Elas recuaram. Ele nem olhou pra ela. Os olhos estavam em mim. Focados. Quentes. Irritados.
— Você não tem escolha, Angel. Ou você desce, ou eu te tiro.
Foi aí que eu fiz o que não devia: virei o copo de uma vez, levantei os braços e gritei:
— EU TÔ ÓTIMA!
Ele não respondeu. Só agiu.
Veio até a mesa, me segurou firmemente pela cintura e me puxou pra baixo num movimento só. Não foi agressivo, mas também não foi gentil. Foi... inegociável. E meu corpo reconheceu isso. De um jeito que eu detestava admitir.
— Solta! — gritei, me debatendo, mas ele já estava me arrastando para a saída.
— Você está bêbada. E amanhã vai odiar os vídeos que vão circular de você dançando em cima da mesa como uma adolescente.
— Tô pouco me fodendo!
Ele parou de repente, me virando para encarar ele de frente. Seus dedos apertaram meu braço, não o suficiente para doer, mas para eu não fugir.
— Pois devia. Porque enquanto você faz escândalo, seu pai está em casa, preocupado.
A menção do meu pai — aquele homem que me criou, que me amou, mesmo sem eu ser sangue do seu sangue — me acertou como um soco.
Por um segundo, quase cedi. Quase deixei ele me levar.
Mas então a raiva voltou.
— Você é um maldito mandão — murmurei, tropeçando nos próprios pés enquanto ele me segurava.
— E você está bêbada — ele rebateu, levando minha bolsa com uma das mãos e me apoiando com a outra. — E completamente fora de si.
— Você não manda em mim, sabia?
— Não. Mas alguém precisa cuidar de você. Já que você mesma não faz isso.
A forma como ele disse aquilo... doeu mais do que eu queria admitir. E me afetou mais do que eu esperava. E antes que eu pudesse responder, ele me jogou sobre o ombro como um saco de batatas e carregou minha bunda bêbada e rebelde direto para o carro.
E o pior?
Eu odiei o quanto aquilo me deu tesão. Até que ele me largou sobre o banco do carro, dando volta no veículo e sentando-se no banco do motorista.
Após dar a partida e se misturar ao trânsito tranquilo daquela hora da noite, o silêncio dentro do carro se tornou pesado, cortado apenas pelo som da respiração irritada de Lucas, enquanto ele dirigia com uma mão só, os dedos firmes no volante de couro, a outra apoiada na janela, os nósculos brancos de tanto apertar.
Eu sabia que ele estava fervendo por dentro. E isso, pelo menos, me dava algum tipo de satisfação.
— Vai me dizer alguma coisa ou vai ficar a viagem toda fazendo esse ar de juiz? — provoquei, virando o rosto para ele.
Lucas nem pestanejou.
— Não tenho nada pra dizer que você vá ouvir.
Lucas não se deixava influenciar por minhas palavras e aquilo não era surpresa. Fechei os olhos, tentando controlar a onda de amargura que tomou conta do meu ser. Ou talvez fosse o enjoo causado pela bebida em excesso.
— Você sempre foi assim? — perguntei, sem abrir os olhos. — Todo certinho, todo "eu resolvo tudo", todo... chato?
— E você sempre foi tão irresponsável? Ou isso é recente?
Abri um olho. Vi o maxilar dele travado.
— A irresponsável foi a minha mãe, você sabe — disparei, veneno puro. — Mas que bom que sobrou pra mim pagar a conta.
Silêncio.
Mais silêncio.
Pouco depois, viramos a esquina da mansão. A fachada clássica, impecável, iluminada como se fosse um cenário de filme. A casa da minha avó. A prisão com serviço de quarto.
Os seguranças acenaram, reconhecendo o carro de Lucas imediatamente, e em segundos estávamos subindo a alameda de pedras, cercada por jardins impecáveis.
A casa estava iluminada. Alguém estava acordado.
Meu coração acelerou.
— Meu pai tá acordado? — perguntei, a voz um pouco mais fina do que eu gostaria.
Lucas desligou o motor e finalmente me encarou.
— Ele sempre espera por você, Angel.
Era um golpe baixo. Eu sabia que meu pai ficava acordado nas noites que eu saía, mesmo que nunca dissesse nada. Mesmo depois de tudo, depois de saber que eu não era realmente dele, ele ainda se preocupava.
Apertei os punhos.
— Não me faz passar por essa.
Lucas soltou um riso seco.
— Você devia ter pensado nisso antes de subir naquela mesa.
Lucas saiu do carro, contornou o capô e abriu a porta do meu lado. Claro que abriu. Sempre o cavalheiro. Sempre no controle.
— Vamos. Antes que eu decida carregar você de novo.
Olhei para a escadaria de mármore que levava à porta principal. Alguém tinha deixado a luz da entrada acesa. Era um convite. Ou uma armadilha.
Respirei fundo e saí do carro, minhas pernas ainda trêmulas, o vestido enrugado, o batom borrado. Eu devia ser um desastre.
Lucas fechou a porta com um tunk e veio até mim, mas dessa vez não me tocou. Apenas ficou ali, ao meu lado, e então a lembrança da mesa no bar voltou na mesma hora. A firmeza. A facilidade com que ele me segurava. O cheiro dele.
Subi as escadas com ele ao lado. Cada passo mais leve, como se a bebida estivesse perdendo força e dando lugar a outra coisa.
Chegamos na porta do meu quarto.
— Pode ir — falei, virando de costas. — Missão cumprida. A delinquente está em segurança.
— Angel...
Virei de volta. Ele tava me olhando como se quisesse dizer algo e não conseguia. Como se estivesse cansado de mim, mas preso comigo ao mesmo tempo.
— Você tá se machucando — ele disse. Simples assim. Sem drama.
— Eu tô sobrevivendo — corrigi, quase sorrindo. — Cada um faz do jeito que dá.
Sem esperar por resposta, caminhei pelo hall , não pronta, mas disposta a enfrentar o que quer que estivesse me esperando lá dentro.
(Mansão dos Figueiredo – 00h37) AngelO som dos meus saltos no mármore da entrada ecoou como tiros no silêncio da mansão, enquanto Lucas fechava a porta atrás de nós. Mas não se adiantou. Ficou ali, como um soldado aguardando ordens, enquanto eu engolia saliva grossa de álcool e arrependimento. — Na biblioteca. — ele murmurou, os olhos escuros fixos no corredor. — Os dois. Merda. Minhas pernas tremeram. Os dois significavam pai e avó. Juntos. E se estavam na biblioteca — o cômodo mais solene da casa —, era porque aquilo não era uma conversa. Era um tribunal. Avancei devagar, sentindo o olhar de Lucas queimando minhas costas. Cada passo era uma tortura. Quando cheguei à porta entornada de carvalho, quase virei e corri. Mas então ouvi a voz da minha avó, firme e cortante como uma lâmina: — Entre. A biblioteca estava iluminada apenas pela lareira e um abajur de mesa. Leonardo Figueiredo, aquele que até alguns dias acreditou ser meu pai, estava sentado numa poltrona de couro
(No carro – 8h15 da manhã) AngelO Jaguar preto deslizava pelas ruas de São Paulo, mas minha atenção não estava na paisagem. Estava nas mãos dele.Lucas dirigia com apenas uma mão no volante, os dedos longos e firmes, as veias levemente saltadas sob a pele. Mãos fortes. Mãos que sabiam dominar. Como seria sentir essas mãos em outros lugares? A imagem invadiu minha mente sem permissão: seus dedos deslizando pela minha cintura, apertando minha pele, segurando-me com aquela mesma firmeza com que ele segurava o volante…— Você está bem?A voz dele me arrancou do devaneio. — O quê?— Você está corada. — Ele olhou para mim, o cenho levemente franzido. — Se vai vomitar, avisa antes. Não quero que estrague o couro do carro. — Que cavalheiro! — soltei, me encostando no banco. — Não se preocupe, seu carro está seguro. Não vou vomitar. Só estou pensando em como suas mãos fariam coisas muito piores em mim. Ele não respondeu, mas os dedos dele se apertaram no volante. Ele tinha percebi
(Sala das Funcionárias – 9h25 da manhã) AngelCarolina não perdeu tempo. — Essa será a sua mesa — ela disse, apontando para a pequena bancada encostada na parede. — Você vai organizar arquivos, fazer cópias e, se sobrar tempo, aprender a fazer café. Sorri, docemente venenosa. — Que sorte a minha, ter você como mentora. Ela ignorou a provocação. — Lucas gosta do café às 9h30 em ponto. Não atrase. — Lucas, Lucas, Lucas — murmurei, fingindo interesse. — Ele deve ser ótimo em… tudo, não é?Os olhos de Carolina estreitaram. — Ele é profissional. Algo que você claramente não entende. — Ah, Carol, me dá uma chance — Soltei, me inclinando para frente. — Quem sabe eu não aprendo algumas coisas… particulares com ele?Ela ficou branca. — Você é nojenta.Missão Concluída. Me sentei na cadeira improvisada com a leveza de quem está prestes a cometer um crime. Carolina já tinha voltado ao teclado, digitando como se estivesse redigindo um tratado de paz entre países hostis.— Aqui —
(Escritório de Lucas, 11h50)LucasO uísque queimava na garganta, mas nem o álcool de 18 anos conseguiu apagar o que estava prestes a acontecer. Angel. Na minha equipe. Todos os dias. A mão fechou com força em volta do copo. No reflexo do vidro da janela do escritório, meu rosto estava tenso, a mandíbula cerrada, os olhos escuros como a noite paulistana lá fora. E os problemas já começaram. Carolina tinha acabado de sair da minha sala, após discorrer sobre os vários motivos pelos quais Angel não poderia continuar auxiliando em seu trabalho."Ela vai destruir você", a voz da minha avó ecoou na memória, como sempre ecoava quando Angel estava por perto. "Menino, você é um Silva. Eles são Figueirdos. Nunca se esqueça disso." Mas como esquecer? Como ignorar aquela mulher quando ela estava em todo lugar? Nos corredores da mansão com seus vestidos que desafiavam a decência, nas festas da família com seus olhares desafiadores, nos meus sonhos mais secretos com aquela boca que sabia co