(Mansão dos Figueiredo – 00h37)
Angel
O som dos meus saltos no mármore da entrada ecoou como tiros no silêncio da mansão, enquanto Lucas fechava a porta atrás de nós. Mas não se adiantou. Ficou ali, como um soldado aguardando ordens, enquanto eu engolia saliva grossa de álcool e arrependimento.
— Na biblioteca. — ele murmurou, os olhos escuros fixos no corredor. — Os dois.
Merda.
Minhas pernas tremeram. Os dois significavam pai e avó. Juntos. E se estavam na biblioteca — o cômodo mais solene da casa —, era porque aquilo não era uma conversa. Era um tribunal.
Avancei devagar, sentindo o olhar de Lucas queimando minhas costas. Cada passo era uma tortura. Quando cheguei à porta entornada de carvalho, quase virei e corri. Mas então ouvi a voz da minha avó, firme e cortante como uma lâmina:
— Entre.
A biblioteca estava iluminada apenas pela lareira e um abajur de mesa. Leonardo Figueiredo, aquele que até alguns dias acreditou ser meu pai, estava sentado numa poltrona de couro, os ombros curvados, as mãos entrelaçadas no colo. Ele não levantou os olhos quando eu entrei.
Já minha avó, Dona Iolanda Figueiredo, estava em pé, de costas retas, com o vestido de seda cinza impecável mesmo àquela hora. O celular dela estava sobre a mesa, com a tela ainda acesa. Era um vídeo. Meu vídeo.
— Feliz da vida, não é, Angelina? — ela começou, a voz doce como veneno. Ela sabia o quanto eu odiava ser chamada pelo meu nome de batismo — Enquanto seu pai passa a noite preocupado, você está fazendo papel de garota de programa em cima de mesas.
Meu corpo inteiro queimava de raiva.
— Eu não…
— Silêncio! — o grito dela cortou o ar. Nunca tinha visto minha avó perder a compostura. Até hoje. — Você acha que pode destruir o nome dessa família e sair impune?
Meu pai finalmente levantou o rosto. E o que eu vi lá me partiu ao meio: não era raiva. Era decepção.
— Angel… — a voz dele saiu rouca, e eu percebi que ele estava segurando as lágrimas. — O que foi que eu fiz pra você me humilhar assim?**
Algo dentro de mim desmoronou.
— Pai, não… não foi por você… — a minha voz falhou.
Como explicar que eu estava tentando destruir a parte de mim que não era dele?
Foi então que Lucas, que tinha ficado na porta, deu um passo à frente.
— Ela estava bêbada, senhor. Não sabia o que fazia.
Minha avó virou-se para ele, os olhos estreitos.
— E você, Lucas? Você sabia o que fazia quando deixou ela sair de casa assim?
Ele não baixou os olhos.
— Não sou guarda-costas dela.
— Não, não é. — ela concordou, sorrindo de um jeito que me deu calafrios. — Mas é o braço direito dessa família. Está sendo preparado para ocupar o lugar de Leonardo. E eu espero mais de você.
Lucas cerrou o queixo, mas não respondeu.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Até que meu pai se levantou, devagar, como se cada movimento doísse. Ele veio até mim, parou a um palmo de distância, e então (para meu choque) colocou as mãos no meu rosto.
— Eu te amo, filha. — ele disse, simples assim. — Mas você está me matando.
E então, sem mais uma palavra, ele saiu da biblioteca, deixando para trás o cheiro do seu whisky favorito e o peso de uma dor que eu nunca quis causar.
Minha avó pegou o celular e, passando por mim, parou só para sussurrar:
— Amanhã, às sete da manhã, meu escritório. Se você atrasar, eu vou cortar seu cartão, seu acesso à conta e seu sobrenome.
Quando a porta se fechou atrás dela, eu finalmente desabei.
Mas antes que minhas pernas cedessem, Lucas estava lá, seu braço firme em volta da minha cintura, segurando-me em pé.
— Por que você fez isso? — eu gritei, batendo no peito dele, minhas lágrimas misturando-se ao rímel. — Por que me trouxe aqui?
Ele me puxou para perto, sua boca perto do meu ouvido, e sussurrou a única coisa que poderia me destruir de vez:
— Porque você sabe que merece mais do que ser só mais uma vagabunda em cima de uma mesa.
E então ele me soltou e saiu, deixando-me sozinha na biblioteca, com nada além do crepitar do fogo e do eco das palavras dele na minha pele.
(Quarto de Angel – 7h45 da manhã)
A luz do amanhecer entrou como uma facada pelos pesados cortinados do meu quarto. A cabeça latejava, a boca estava amarga, e o estômago em revolta. Mas o pior de tudo? A lembrança nítida da noite anterior. A decepção no olhar do meu pai, a frieza da minha avó, e as mãos firmes de Lucas me segurando quando eu quase desmoronei.
Merda.
Engoli em seco e forcei-me a sair da cama, ignorando a onda de náusea. Não tinha escolha. Iolanda Figueiredo não esperava. Ela exigia. E se eu quisesse manter meu sobrenome, meu cartão, e o mínimo de dignidade que me restava, precisava me arrasar em menos de quinze minutos.
Vesti um tailleur preto impecável (a única coisa que combinava com o meu humor), passei um batom vermelho (para disfarçar a palidez) e prendi o cabelo num coque apertado (para parecer que estava no controle).
Estava terminando os últimos detalhes quando três batidas firmes ecoaram na minha porta.
— Angel, abre. Não temos tempo.
A voz dele.
Meu coração deu um salto estúpido. Por quê? Por que aquele homem me afetava tanto, mesmo quando eu queria odiá-lo?
— Vai na frente. Não preciso de babá — respondi, enquanto passava corretivo nas olheiras com o desespero de quem não queria dar o braço a torcer.
— Ordens da dona Iolanda. “Acompanhe minha neta até o prédio e certifique-se de que ela entre com dignidade.” Suas palavras, não minhas.
Abri a porta com força. Terno cinza, postura militar, e aquele olhar que parecia ver através de todas as minhas mentiras. O tipo de homem que deveria ser ilegal às segundas-feiras de manhã. Seu queixo estava levemente cerrado, um claro sinal de que já estava perdendo a paciência.
— Certifique-se de que eu entre com dignidade? Você está de brincadeira comigo.
— Só estou cumprindo ordens. Anda logo.
Revirei os olhos, peguei a bolsa e passei por ele empurrando o ombro de leve. Era infantil. Eu sabia. Mas era o que dava pra fazer.
— Você está gostando disso, não é? — provoquei. — Finalmente tem uma desculpa para me controlar.
— Se eu quisesse te controlar, Angel, já teria feito de outros jeitos.
A voz baixa dele me atingiu como um choque. O que ele queria dizer com isso?
Antes que eu pudesse responder, ele me ultrapassou no corredor.
— Vamos. Não quero chegar atrasado.
(No carro – 8h15 da manhã) AngelO Jaguar preto deslizava pelas ruas de São Paulo, mas minha atenção não estava na paisagem. Estava nas mãos dele.Lucas dirigia com apenas uma mão no volante, os dedos longos e firmes, as veias levemente saltadas sob a pele. Mãos fortes. Mãos que sabiam dominar. Como seria sentir essas mãos em outros lugares? A imagem invadiu minha mente sem permissão: seus dedos deslizando pela minha cintura, apertando minha pele, segurando-me com aquela mesma firmeza com que ele segurava o volante…— Você está bem?A voz dele me arrancou do devaneio. — O quê?— Você está corada. — Ele olhou para mim, o cenho levemente franzido. — Se vai vomitar, avisa antes. Não quero que estrague o couro do carro. — Que cavalheiro! — soltei, me encostando no banco. — Não se preocupe, seu carro está seguro. Não vou vomitar. Só estou pensando em como suas mãos fariam coisas muito piores em mim. Ele não respondeu, mas os dedos dele se apertaram no volante. Ele tinha percebi
(Sala das Funcionárias – 9h25 da manhã) AngelCarolina não perdeu tempo. — Essa será a sua mesa — ela disse, apontando para a pequena bancada encostada na parede. — Você vai organizar arquivos, fazer cópias e, se sobrar tempo, aprender a fazer café. Sorri, docemente venenosa. — Que sorte a minha, ter você como mentora. Ela ignorou a provocação. — Lucas gosta do café às 9h30 em ponto. Não atrase. — Lucas, Lucas, Lucas — murmurei, fingindo interesse. — Ele deve ser ótimo em… tudo, não é?Os olhos de Carolina estreitaram. — Ele é profissional. Algo que você claramente não entende. — Ah, Carol, me dá uma chance — Soltei, me inclinando para frente. — Quem sabe eu não aprendo algumas coisas… particulares com ele?Ela ficou branca. — Você é nojenta.Missão Concluída. Me sentei na cadeira improvisada com a leveza de quem está prestes a cometer um crime. Carolina já tinha voltado ao teclado, digitando como se estivesse redigindo um tratado de paz entre países hostis.— Aqui —
(Escritório de Lucas, 11h50)LucasO uísque queimava na garganta, mas nem o álcool de 18 anos conseguiu apagar o que estava prestes a acontecer. Angel. Na minha equipe. Todos os dias. A mão fechou com força em volta do copo. No reflexo do vidro da janela do escritório, meu rosto estava tenso, a mandíbula cerrada, os olhos escuros como a noite paulistana lá fora. E os problemas já começaram. Carolina tinha acabado de sair da minha sala, após discorrer sobre os vários motivos pelos quais Angel não poderia continuar auxiliando em seu trabalho."Ela vai destruir você", a voz da minha avó ecoou na memória, como sempre ecoava quando Angel estava por perto. "Menino, você é um Silva. Eles são Figueirdos. Nunca se esqueça disso." Mas como esquecer? Como ignorar aquela mulher quando ela estava em todo lugar? Nos corredores da mansão com seus vestidos que desafiavam a decência, nas festas da família com seus olhares desafiadores, nos meus sonhos mais secretos com aquela boca que sabia co
(Bar noturno, centro de São Paulo – Sexta-feira, 23h47)AngelA música alta martelava meus ouvidos, e o tequila derramado escorria pelo meu pulso, misturando-se ao suor. Eu não sabia mais quantos shots tinha tomado, só sabia que cada um deles afogava um pedaço daquela verdade que me envenena por dentro.— Sobe, Angel! — gritou Marcela, rindo enquanto batia palmas.Eu já tava em cima da mesa antes de pensar duas vezes. Aliás, pensar duas vezes não era algo que eu vinha fazendo muito ultimamente. Nem uma vez, pra ser sincera.A mesa de madeira tremia sob meus saltos altos, e eu balancei os quadris, deixando o vestido curtíssimo subir ainda mais. Alguns homens ao redor assobiavam, outros levantavam copos em minha direção. — Isso, garota! Solta essa energia represada! — incentivou Joana, filmando tudo com o celular, claro.Eu girava, ria, e esquecia. Esqueci que minha mãe tinha morrido sem me contar quem era meu pai de verdade. Esquecia que meu pai, ou o homem que me criou como filha, ma