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Flores pro Altar

Graças a um presente do Deus da Fortuna, deixado sobre o portal do seu templo no outro dia, Shu foi capaz de descer o morro pra fazer compras no centro comercial da cidade. 

— Shu, você também precisa comprar comida. — Kitsune alertou, percebendo que já estavam há muito tempo numa casa de vinhos.

— Tudo bem, tudo bem. — Shu abanou a mão pra ele, ainda distraído com o rótulo da garrafa que estava segurando. — Cerveja também alimenta.

"Mas nós não compramos cerveja", pensou, olhando para a sacola com um licor de ameixa que estava segurando. 

— Oh, esse deve ser bom, é importado de Portugal... Kitsune? — Shu olhou pros lados. — Ué...— Vendo que a raposa tinha sumido, ele pagou pelos vinhos que queria e saiu da loja, mas não precisou nem procurar, já que o rapaz de cabelos prateados vinha em sua direção com latas de cerveja numa sacola e doces em outra. — Você é rápido no gatilho, hein? — Sorriu. — Foi bom te trazer comigo.

— Eu viria de qualquer jeito. — Kitsune deu de ombros, pegando as sacolas de vinho das suas mãos. — Mais alguma coisa, ou já podemos voltar? 

— Uhm... Acho que sim. Podemos deixar pra comprar roupas outro dia, né? — Pensava que as vestes tradicionais chamariam muita atenção, mas ninguém parecia particularmente impressionado, até porque haviam pessoas vestidas de todo jeito por ali, então não era um item indispensável. — As coisas estão bem diferente desde a última vez que desci aqui. — Comentou, seguindo atrás dos passos largos do mais alto. 

— Você acha? — Kitsune olhou pro lado por um instante, como que conferindo. — Pra mim é sempre a mesma coisa. 

"É verdade...a quanto tempo será que ele está aqui...?" Pensou, juntando os braços sob as mangas da túnica. "Pra ter passado de fantasma pra demônio...e ser tão forte como dizem... Umas eras, talvez?", Maneou a cabeça pro lado, raciocinando. "E ele disse que sabe sobre mim, e ficou apegado ao templo… se ele foi meu devoto em vida, então por que virou um fantasma?", Franziu o cenho. "Seria muito deselegante perguntar isso a ele? Ou então..." 

— Shu.

— Ah?! 

— Você vai tropeçar se continuar encarando minha nuca enquanto anda.

— A- ah, eu... Uah!

Dito e feito, ele tropeçou e cairia com tudo na calçada, não fosse por Kitsune ter colocado o braço à frente do seu torso. 

— Você está bem?

— Ah... — Estranho, aquela situação, parecia até... — Ahã... Obrigado. 

Kitsune sorriu, e antes que o Deus pudesse se recompor ele passou um braço pelas suas pernas, o pegando no colo facilmente, mesmo com as sacolas nas mãos. 

— Né... — Shu deitou a cabeça no seu ombro, se aproveitando da sua largura. — Você é muito gentil comigo. 

— Não quer saber por quê? 

— Me responderia se eu perguntasse? 

— Hu. — Ele riu, voltando a olhar pra frente enquanto andava. — Não, não diria. — O Deus tão leve nos seus braços, tanto que o fato o entristeceu. — Pelo menos não assim tão facilmente. 

— O que eu devo fazer então? — Shu apertou-lhe a barra da túnica perto da clavícula, sem nenhum motivo em particular. — Devo me esforçar mais?

— Deve me fazer seu familiar. 

— Você quer isso?

— Quero. 

Piscou os olhos brevemente, sem entender. Por que ele iria querer ser seu familiar, assim por vontade própria? Ainda mais um demônio… era um caso tão difícil de acontecer. 

— Eu... Não tenho poderes pra isso. — Se explicou. — Além do mais...

— Se alguém for ao templo... — Kitsune sugeriu, já pisando nas pedras que davam caminho morro acima. — Vai te dar poder suficiente pra isso?

— Por que você disse isso como se fosse ameaçar alguém a entrar no templo? — Shu riu, fazendo Kitsune sorrir também. 

— Se me pedir farei isso, mas não é do que estou falando. — Ele fez um sinal com a cabeça, então Shu prestou atenção à frente: era uma criança, correndo pelo caminho de pedra acima, mas parando aqui e ali pra colher flores que ia adicionado a um pequeno buquê na mãozinha fechada. O deus ficou observando enquanto subiam, e já podendo ver o templo pediu a Kitsune pra descer. 

— Saudações, pequenino. — Cumprimentou, indo até a criança, parada à frente do portal antigo, meio relutante. 

— Ah! — Ela se virou pra olhar. — O senhor é monge desse templo?

— Sou sim. — Disse, se agachando à sua frente. — E você? Veio rezar aqui?

— Uah!... — Ela pareceu um tanto impressionada com seus olhos castanhos claros, tão cintilantes quanto seus cabelos dourados. — Ah!...Na verdade... — Balançou a cabeça, recobrando a concentração para respondê-lo. — Eu não sabia que tinha um templo aqui, porque esse morro é mal assombrado! 

— Mesmo? — Olhou de soslaio pra Kitsune, parado de pé alguns passos atrás. 

— Mas hoje o ar aqui perto não parecia tão pesado, e eu vi flores bonitas... — Ergueu o buquezinho. — Vou levar pra minha avó, ela está no hospital. 

— Ela está muito doente?

— Não sei. — Negou com a cabeça. — Ela nunca me responde quando eu pergunto, mas gosto de ir lá ver ela. 

— Você é um bom menino... — Shu afagou-lhe a cabeça. — Veja, o Deus deste templo é o Deus da boa sorte. — Então apontou para a entrada do templo. — Se rezar para ele, então bons ventos vão favorecer sua avó. 

— Sério?! — Ele arregalou os olhinhos, virando a cabeça pra olhar. — E se eu deixar as flores pra ele?

— É ainda melhor, mas você não precisa fazer isso... São pra sua avó, não é? 

— Tudo bem, posso colher mais depois. — Ele disse, já correndo disparado pelo pátio do templo e entrando. 

— Né, Kitsune... — Shu se levantou, sorrindo. — Você é muito perceptivo, sabe...

— "Bonito", "gentil", "perceptivo"... — Kitsune andou até ele, baixando a cabeça até o queixo quase tocar-lhe o ombro e os lábios o seu ouvido. — Se continuar me elogiando assim... — Sussurrou. —... eu vou ficar insaciável.

Shu cobriu a orelha, completamente corado: Kitsune estava começando a deixá-lo com medo, e certamente não pelo mesmo motivo que o garoto havia rotulado aquele morro de mal assombrado.

— Se sentindo melhor?

— Uhm. — Shu estava arrumando as pequenas flores silvestres que o menino trouxera, uma a uma, num vaso antigo deixado no altar do templo, depois que ele já tinha ido embora. — Bem melhor.

— Isso é bom. — Kitsune se sentou no chão ao seu lado, apoiando no único tapete de tatami dois copos e uma garrafa de vinho aberta. 

— A oração de uma criança é muito mais forte que a de um adulto, né... — Pôs a última florzinha no vaso, o analisando antes de afastar pro lado. — Sorte minha ter sido ela a primeira a rezar depois de tantos anos. 

— Graças do Deus da boa sorte. — Kitsune serviu um pouco de vinho pra ele, passando-lhe o copo. — Podemos comemorar, então? 

— Sim, podemos. — Sorriu, pegando o copo. — Muito obrigado, né, Konkon.

— “Konkon”?

— Ah… desculpe. — Tomou um gole discreto da bebida escura: vinho seco, perfeito para uma comemoração austera. — Não posso te chamar assim?

— Pode… — Ele sorriu de canto. — Eu gostei, é bem íntimo.

— Ah ha... — Shu coçou a nuca. — Você acha?

— Acho. — Ele aproximou o tronco, se apoiando com uma mão pouco atrás dele, como havia feito um dia antes. — A propósito... será que agora... — Passou a ponta do dedo comprido pela extensão do seu pescoço até a clavícula. — Você não está em condições de me fazer seu familiar?

— A- ah... sobre... sobre isso... — Tentou desconversar, disfarçando o arrepio que sentiu com o toque. Sinceramente... a pele humana tinha de ser tão sensível assim? — Eu... — desviou o olhar, mas a raposa trouxe seu queixo de volta com o indicador dobrado sob ele. 

— O quê? — O olhou fixamente, seus belos olhos amendoados deixando o Deus extasiado. — Se o problema é o que você disse antes... sobre "não nos conhecermos"... — Disse, com bastante ênfase e até certo remorso. — Então você pode ficar à vontade pra me conhecer, aqui e agora.

— E- e- espera! — Nem soube como reagir quando Kitsune pegou seu pulso livre de repente, espalmando ele mesmo sua mão no seu peito por dentro da túnica. — Nã- não foi isso que eu quis dizer com... — Engoliu em seco; Kitsune era quente... e seu coração estava batendo forte. — Co- com conhecer...

— Não? — Aproximou ainda mais o rosto, apertando de leve os dedos que fechavam completamente em torno do seu pulso. — Mas seu corpo está me dizendo que é exatamente assim que você quer me conhecer.

— Me- meu corpo? — Claro, estava gaguejando, estava corando, estava arrepiando e estava tremendo, tanto que se não fosse por ter deixado o copo de vinho no chão o teria derramado inteiro. — I- isso não é justo! — Tomou coragem pra recolher sua mão e se encolher um pouco. — E- eu ainda não me re-acostumei com essa forma, e além disso você é muito...

— "Muito..."? 

— Muito... — Não, não, não podia falar, se não seria definitivamente atacado. — Aham!... De- de qualquer forma... — Limpou a garganta. — Não é só por isso que não quero te fazer familiar. 

— O que mais seria? — Kitsune continuava se aproximando dele, insistente. 

— Te fazer meu familiar seria...seria te prender a mim, e eu não quero isso… você é livre, e como Deus minha obrigação é ajudar, não me aproveitar de você! Não quero te fazer meu servo!

— Não precisa me fazer necessariamente servo, se não quiser pedir isso de mim no contrato. 

— Mas é um contrato de familiar, o que eu mais eu lhe pediria?

— Para eu ser seu amante.   

— Me- meu… — Shu estava começando a se sentir tonto, e nem tinha tomado mais de um gole do vinho seco. — Po-por que você quer tanto isso? — Tentou recuar ao que a raposa se aproximou ainda mais, acabando com as costas no chão. — Fantasmas só aceitam por redenção e demônios sempre se recusam a ser familiares, então por que você...

— Demônios sempre se recusam porque Deuses sempre insistem. — Se debruçou sobre o deus no chão, com uma mão de cada lado dos seus ombros. — Você sabe o porquê, não sabe? 

— Se- sei... — Shu escondeu o rosto vermelho num braço. — ...porque demônios são extremamente fortes, e através do contrato seu poder seria compartilhado.

— Então eu respondi sua pergunta? — Pegou seu braço pelo pulso, aproximando sua mão do rosto e lhe beijando a palma devotamente. — Mh?

— Kitsune… — Escondeu o rosto na outra mão, sentindo os olhos marejados. — E-eu… — Pensava estar velho demais para aquilo, mas seu coração estava incrivelmente disparado com o contato dos lábios quentes na sua pele. — Vo-você não precisa se sacrificar por mim assim, certo?... — Ele o olhou por trás dos seus dedos no seu rosto, seus olhos escuros brilhando. — ...se eu guardar essa força que recebi hoje, posso negociar quando vierem daqui há alguns dias, então não se preocupe, sim? Te ter aqui comigo é uma benção, não vou deixar que te levem assim...né?

— Uhm. — Ele concordou, meio relutante, mas concordou, soltando-lhe a mão e deitando a cabeça no seu colo.  

— Isso, isso, bom menino. — Afagou-lhe os cabelos prateados. 

— Você é teimoso. — Reclamou.

— E você muito apaixonado. — Retrucou. — Foram esses sentimentos que te fizeram ficar… Konkon?

— Você… — Disse baixinho, depois de um tempo. — Realmente não se lembra, não é?

— Mh? — Afastou-lhe os fios perto da testa, mas eles voltaram a cair por tão lisos que eram. — De quê, exatamente?

Mas Kitsune não o respondeu: já estava dormindo.

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