Seu pai diria que estava louco. E só poderia estar mesmo levando aquela garota consigo, para ficar instalada em sua fazenda. Provavelmente a tinha salvado; a julgar pela violência com que tinham tentado arrombar a porta, com certeza não queriam apenas sentar, tomar um café e conversar. Queriam pegá-la, talvez para chantagear Rodolfo. Pediriam dinheiro? Talvez. Poderiam até não fazer mal à moça, mas ele não acreditava muito nisso.
Diante desse cenário, como poderia ficar de braços cruzados? Se Rodolfo estava com problemas, impossibilitado de ajudar, era seu dever proteger a mulher que ele deixara para trás. Era isso que um homem honrado faria.
Até porque não era a primeira vez que agia dessa forma. Estava cansado de limpar as merdas que seu irmão deixava pelo caminho, porque infelizmente não conseguia tirar da cabeça que Rodolfo tinha feito algo de errado para ter alguém no seu encalço, chegando ao ponto de querer usar sua mulher como isca.
Ou era isso ou pior: Será que a garota era o pivô de toda aquela confusão?
Era difícil acreditar, especialmente enquanto olhava para ela ao seu lado, dormindo serenamente, como se estivesse no limite da exaustão.
Rodrigo não queria ficar olhando para ela. Não queria se apegar ou criar qualquer vínculo além daquele senso de proteção. Mas era inevitável. Preferia, então, acreditar que estava apenas checando se estava bem, respirando ou agitada.
O fato de ela ser bonita complicava muito as coisas. Mulheres bonitas tinham uma certa tendência a acreditar que gestos cavalheirescos ou heróicos tinham a ver com libido. Isso acontecia muito com ele, e não queria ser acusado de qualquer coisa por aquela patricinha, por mais que não pudesse negar que era muito linda. Ou melhor, exatamente o tipo de mulher por quem ele se sentia atraído...
Mas, apesar disso, Rodrigo sabia que ela combinava muito mais com Rodolfo do que com ele. Era sofisticada, gostava do melhor que a vida poderia oferecer, e ele, sem dúvida, estava longe de ser o melhor. Não que isso importasse para qualquer coisa, pois toda atração que sentia por ela limitava-se ao fato de que se tratava de uma mulher bonita. Como muitas. Nada de especial. Principalmente porque ele caía de quatro por personalidades, sentimentos e atitudes, não por algo que o tempo iria apagar facilmente.
Já estavam chegando em Barra do Piraí, a quarenta minutos de Valença, quando Gisele acordou. Ela emitiu alguns sons antes de finalmente abrir os olhos, e quando o fez, mostrou-se um pouco desorientada a princípio. Depois, olhou pela janela e percebeu que o tempo estava nublado, escuro, o que tornava a paisagem um pouco mais sombria do que o normal.
— Para onde está me levando? — ela perguntou em um rompante, com uma expressão que dizia facilmente que estava apavorada.
— Acho que cheguei a te dizer o que Rodolfo me pediu. Ele queria que eu a levasse para a minha fazenda, em Valença. É um lugar seguro.
― Seguro? E quem me garante que é seguro ficar com você? Eu nem te conheço! ― Lá estava ela em desespero novamente. O problema do desespero era que facilmente podia levar uma pessoa a cometer burrices. E foi exatamente o que aconteceu. ― Pare o carro. Não vou com você.
Os olhos vidrados indicavam que ela estava em choque. Tudo bem, não era para menos se levassem em consideração a reviravolta que sua rotina calma e pacata sofreu. Acordara tarde que nem uma dondoca em uma cobertura milionária, para depois descobrir que o noivo estava em perigo e que ela poderia estar também. No final das contas, só lhe restara um ogro caipira de guarda-costas. Não era um panorama dos mais satisfatórios.
Exatamente por isso, Rodrigo achou melhor não dar atenção. Era um bem que fazia a si mesmo e a ela. Se começassem a discutir, a convivência que seria forçada dali em diante beiraria o insuportável.
― PARE O CARRO! ― gritou ela. ― PARE OU VOU ME JOGAR COM ELE EM MOVIMENTO.
Puta que pariu, mas ela sabia ser inconveniente. E rápida, pois Rodrigo parou o carro no acostamento o suficiente para dar uma boa lição de moral, sem precisar prestar atenção na estrada à sua frente, mas em apenas uma fração de segundo ela abriu a porta e saiu correndo.
O que era uma estupidez e tanto. E olha que ele podia jurar que ela não tinha cara de burra. Por um instante, ele pensou se não seria melhor que ela ficasse ali mesmo, vagando que nem um louca pela estrada escura, afinal, ele não tinha nenhuma responsabilidade sobre ela. Porém mais uma vez a porcaria da sua consciência maldita pesou. Então, ele saltou e foi atrás dela.
Ainda bem que era maior e mais veloz, conseguindo alcançá-la em poucos segundos.
― Escuta aqui, garota... eu estou sendo legal com você, mas não me faça perder a paciência! ― Ele falava entredentes, completamente alterado. ― Você tem duas opções nesse momento, e eu acho que uma delas é muito mais atraente do que a outra. Pode voltar para o carro comigo, para um lugar seguro, ou pode ficar aqui na estrada, a uma hora dessas, até pegar uma carona com um tarado que vai te estuprar, matar e jogar seus restos penhasco abaixo.
Conforme a segurava pelos braços, Rodrigo começou a senti-la enrijecer e estremecer. Sabia que tinha sido duro, afinal, ela já estava assustada, mas era assim que sabia lidar com aquele tipo de reação. Não estava muito acostumado com pessoas como ela, com sentimentos muito sensíveis. Lidava melhor com os peões da fazenda, com os fornecedores e compradores de cavalos. E mulheres menos delicadas.
— Como vou saber onde estou segura? Está tudo acontecendo tão rápido... E se não estivessem querendo me fazer mal? Será que não entendemos errado?
— Prefere pagar para ver? Pela forma como estavam tentando entrar à força no seu apartamento, com certeza não queriam ser seus amigos. — Ela suspirou, vendo-se derrotada. Por isso, ele acrescentou: ― Está segura comigo ― ele abrandou o tom de voz, fazendo-a soar como uma carícia aos ouvidos de Gisele. ― Não tenho como provar isso, mas posso te dar minha palavra que enquanto estiver sob meus cuidados não vou deixar que nada nem ninguém te machuque.
Gisele olhou bem fundo em seus olhos muito escuros, tentando ler a mensagem que eles transmitiam em silêncio. Não o conhecia, não fazia ideia de como iria escapar do labirinto onde a tinham jogado sem que nem desse permissão, mas precisava se agarrar a alguma coisa; e não havia nada mais firme à sua frente do que aquele homem.
Ainda um pouco fora de si, colocou as mãos na frente do rosto, cobrindo os olhos, e desabou. De vez. Rodrigo a amparou com mais força, evitando que ela caísse no chão duro e sujo da estrada. Não era muito bom consolando pessoas, mas ela cabia perfeitamente em seu abraço, então, somente a deixou ali, permitindo que usasse seu ombro para depositar suas lágrimas, mágoas e confusões, ao menos por um tempo.
Não que não estivesse com pressa. Na verdade, estava arriscando muita coisa lhe concedendo aquele tempo, principalmente porque não sabia qual eram as intenções de quem queria mal a Rodolfo. Se tivesse um pingo de juízo na cabeça, ele a jogaria no carro, nem que precisasse usar a força bruta para isso, e a levaria logo para Pentagna, para a fazenda.
― Sei que precisa desabafar, mas precisamos seguir. Pode ser perigoso ficar aqui.
Rodrigo pensou que ela iria espernear e agir de forma irritante novamente, mas surprendeu-se. Gisele apenas assentiu com a cabeça, obediente e silenciosa, acompanhando-o, quando ele passou o braço ao redor de seus ombros para guiá-la de volta até o carro.
***
A fazenda Vale do Sol era o maior orgulho da família Baroni. Ao menos a parte da família que tinha permanecido daquele lado do Rio de Janeiro. A produção de queijo branco, que levava o mesmo nome da propriedade, e a comercialização de cavalos de porte grande eram as maiores fontes de renda e proporcionavam uma vida bastante confortável, mas também muito trabalho e orgulho. Rodrigo sabia que cada pedacinho daquela terra tinha sido construído com o esforço de seus antepassados, e que o suor de seu pai e finado avô estavam enterrados debaixo daquele solo. O mínimo que poderia fazer era honrá-los dando o seu máximo para que a fazenda prosperasse cada vez mais.
O único problema: ele achava que aquele nome não combinava muito bem com a cota de escuridão que já tinham enfrentado. O Vale do Sol andava um pouco obscuro, principalmente nos últimos dias.
Outra coisa que Rodrigo sabia era que muitos ― como por exemplo a mulher ao seu lado ― prefeririam viver em castelos, cercados por criados, luxo e dinheiro. Podiam chamá-lo de caipira ou até de hipócrita, mas não trocava sua casa por nenhuma outra. Não quando aquele pequeno espaço no mundo era o único que ele conhecia como lar, onde podia ser apenas ele mesmo. Ao invés de ostentação, preferia viver rodeado por vacas e cavalos. Eles o compreendiam melhor.
Enquanto ainda manobrava o carro para estacionar, deu uma olhada de esguelha para Gisele. Aquela garota deveria estar acostumada com mansões e coberturas, portanto, uma fazenda daquele tamanho com certeza não a impressionaria. No entanto, quando olhou para ela, sentiu o coração apertar. O olhar de Gisele estava perdido em um ponto aleatório, como se ela não estivesse prestando atenção em nada.
― Chegamos ― ele avisou enquanto estacionava o carro, percebendo o quão aérea ela estava.
Gisele não respondeu nada, apenas desafivelou o cinto de segurança e abriu a porta, saltando.
Sentia-se como um zumbi, caminhando em direção a uma casa que nem conhecia, mas que parecia a opção mais segura. Ao menos naquele momento. Rodrigo falava com ela coisas como sobre se sentir à vontade, sobre ser uma situação temporária, até que as coisas normalizassem, que Rodolfo desse algum sinal de vida, mas Gisele não conseguia prestar atenção em muita coisa. Não que não quisesse, que não valorizasse o que ele tinha feito por ela, mas parecia que tinha um plug desconectado em sua cabeça que dificultava seus pensamentos, tornava-os desconexos e tragava sua atenção para um limbo esquecido dentro de sua cabeça.
— Como vamos ter notícias de Rodolfo? Como vamos ajudá-lo?
— Tenho um amigo na polícia. Ele é bom. Muito bom, na verdade. Vou pedir que investigue e descubra o que está acontecendo.
— E se quiserem dinheiro? Provavelmente vão tentar entrar em contato comigo, já que ele não tem mais ninguém além... — ela interrompeu a si mesma. Estava prestes a dizer que ele não tinha família além dela, mas corrigiu-se. — Desculpe. Acho que preciso me acostumar com o fato de ter um cunhado e um sogro.
— Eu entendo. Sem problemas. Vou pedir para o meu amigo ficar de olho nisso também. Como eles também estavam atrás de você, é possível que entrem em contato com alguém da empresa ou algum advogado.
Ela fez que sim com a cabeça, parecendo triste e exausta.
― Tem algum quarto onde eu possa descansar? Não sei se vou conseguir dormir enquanto não tiver notícias, mas só preciso fechar um poucos os olhos e me esticar.
― Claro ― ele respondeu e logo alterou a voz para chamar uma das funcionárias da fazenda para ajudá-la. Ela não tardou a aparecer. Era uma moça jovem, que não deveria ter mais de dezoito anos. ― Jose, ajude a senhorita Gisele com o quarto de hóspedes e com uma roupa limpa.
Sem compreender quem era aquela moça, Jose simplesmente obedeceu seu patrão e conduziu Gisele pelas escadas até um dos quartos vazios. Não havia nada preparado para ela, mas teria que servir.
Rodrigo, cheio de pesar, observou as duas caminharem lentamente, no ritmo de Gisele, que já parecia não aguentar mais o peso do próprio corpo.
― Rodrigo, você trouxe a noiva do seu irmão para cá? O que aconteceu?
Rodrigo estava muito pensativo para perceber a presença de seu pai antes que ele dissesse qualquer coisa. Sua voz, porém, que soou extremamente inexperada, tinha um tom reprovador.
— Como você sabe que eu a trouxe?
— Ouvi você chamando Jose e pedindo que acomodasse uma Gisele. É o nome da noiva do seu irmão, não é? O que está tramando, Rodrigo?
— Pelo amor de Deus, pai! O que acha que eu fiz? Que a sequestrei para chantagear Rodolfo? — Como Chico não respondeu nada, Rodrigo bufou. Precisava explicar o motivo da presença de Gisele ali, afinal, o pai era o verdadeiro dono da fazenda, mas sabia que isso lhe traria uma imensa preocupação. — Ela está aqui a pedido de Rodolfo.
— O quê? Não estou entendendo.
— Parece que meu irmão está enrascado com alguma coisa. Tinha umas pessoas a persegui-lo, e ele me pediu que cuidasse de Gisele. Acho que ela também foi ameaçada.
Chico levou a mão à cabeça, completamente desnorteado com a notícia.
— Seu irmão está em perigo? Como assim? O que aconteceu? Precisamos ajudá-lo!
— Pai! — Rodrigo colocou a mão no ombro do pai, torcendo para que ele fosse forte o suficiente para aguentar aquelas notícias. — Vou ajudá-lo. Vou entrar em contato com o Sérgio, pedir que investigue o que aconteceu, porque eu não sei. Ele não teve tempo de me explicar. Precisei sair correndo com Gisele do apartamento, pois estavam tentando arrombar a porta.
Depois de tirar a mão das têmporas, o velho colocou a mão no coração. Rodrigo o segurou e o fez sentar-se no banco do carona do carro, para que não caísse duro no chão.
— Meu filho! Meu Deus!
— Calma, pai. Vai ficar tudo bem. Pode ser que queiram dinheiro. Os advogados de Rodolfo vão resolver tudo, mas enquanto isso, precisamos cuidar da moça. Foi o que ele me pediu.
— É claro. Ela é bem vinda aqui pelo tempo que quiser ficar — ele falou com firmeza, tentando fazer com que soasse verdadeiro, mas sentiu a própria voz vacilar.
Chico Baroni tinha aprendido que na vida não se deveria julgar ninguém à primeira vista, mas tinha medo da proximidade daquela mulher, a noiva de Rodolfo. Pessoas com muito dinheiro tendiam a não ter muito medo de magoar os outros, simplesmente faziam o que queriam e ponto final. Costumavam achar que o dinheiro era capaz de comprar tudo. E com essas ideias feriam corações. Seria muito fácil Rodrigo se apegar a ela e acabar se decepcionando.
― Pai, não é por quanto tempo ela quiser. Infelizmente ela vai ter que ficar por quanto tempo for preciso.
Chico balançou a cabeça em negativa, como se reprovasse a ideia.
― Vai prender a garota aqui contra a vontade dela? ― comentou, mas logo se arrependeu. ― Esquece o que eu disse. Aja como achar necessário. Não vou me meter.
― Obrigado.
Com isso, finalizando a conversa, Chico se retirou, deixando Rodrigo muito pensativo. De um lado tinha certeza que tinha feito a coisa certa. De outro, ainda sentia-se em dúvida. O que aconteceria dali em diante?
***
Já havia amanhecido quando Gisele abriu os olhos pela primeira vez. Meu Deus! Será que tinha dormido tanto? Lembrava de ter se deitado por volta das sete, mas agora já eram oito da manhã. Estava jogada por sobre a cama, com as mesmas roupas com que tinha chegado naquela casa.
Casa?
Por um momento, sentindo-se desorientada, olhou ao seu redor e não conseguiu reconhecer o local onde estava. Um pavor instalou-se dentro de si e fez seu peito arder em suas entranhas. Mas foi uma sensação momentânea, porque logo se lembrou de tudo. Não que a sensação resultante dessas memórias fosse muito melhor.
As lembranças a atingiram como um raio. Lembrava-se de Rodrigo em sua casa, do desconforto em tê-lo consigo, da ligação de Rodolfo, das batidas violentas na porta, da fuga...
Era estranho perceber que suas memórias fechavam um ciclo. Começavam com a raiva por Rodrigo, por desejar mais do que tudo que ele desaparecesse da sua frente, e terminaram com ele sendo sua única chance, como o provedor de um sentimento de segurança.
Ao mesmo tempo... Ele a tinha levado até ali, como um pedido de Rodolfo. Rodrigo dissera que não havia outra opção naquele momento, que ela ficaria segura na fazenda... Mas não era completamente verdade. Ele poderia tê-la levado à polícia, poderia ter procurado sua família para pedir ajuda e...
Meu Deus! Tinha deixado tudo para trás: roupas, notebook, celular... Rodrigo tinha se aproveitado de seu momento de fragilidade, e ela não tinha nem sequer pensado. Estava incomunicável. O que pensaria sua família? Que tinha sido morta? Sequestrada? Se soubessem o que tinha acontecido com Rodolfo, com certeza pensariam o pior.
Bem, a verdade era que ela sentia um aperto no peito ao pensar que talvez sua mãe nem se preocupasse tanto, talvez nem sentisse sua ausência.
Mas não era hora de pensar nisso, muito menos de culpar qualquer pessoa por tudo que estava acontecendo. Precisava pensar de forma racional e não como a garota mimada que todos pensavam que ela era. Não podia negar o fato de que, fosse como fosse, Rodrigo a tinha salvado, então, seu papel naquela manhã deveria ser agradecer-lhe, agir de forma cordial e pedir que a levasse de volta para casa. Queria poder alertar a polícia, que seria capaz de protegê-la, e tentar fazer com que encontrassem Rodolfo, levando-o são e salvo para casa.
Era uma decisão sensata. Não era?
Sendo assim, saiu do quarto e a primeira pessoa que viu foi a criada que a tinha ajudado no dia anterior. Não lembrava o nome dela, uma vez que não conseguira prestar atenção em nada na noite anterior, principalmente depois que chegara na fazenda.
― Oi, você pode me dizer onde está o Rodrigo? ― Aproximou-se da jovenzinha, e esta sorriu simpática.
― Ele está no estábulo, moça. Se quiser posso te levar até lá.
― Não precisa. Vou gostar de caminhar um pouco.
E não deveria ser muito difícil encontrar um estábulo, ou era? Devia ser algo bem grande para caberem tantos cavalos.
Sendo assim, Gisele começou a caminhar pela fazenda, sentindo-se um pouco insegura. Aquilo era um mundo completamente novo para ela. Entendia de joias, moda, arranha-céus, saltos altos, mas não compreendia nada sobre cavalos, plantações, ordenhas... E, na verdade, nem compreendia como alguém poderia viver uma vida inteira em um lugar como aquele. Era bonito, não podia negar. A vastidão de verde, o cheiro de terra molhada, o ar puro, a comida fresquinha, o contato com os animais e a natureza...
É, talvez Gisele até conseguisse compreender a necessidade das pessoas em viverem vidas simples em fazendas, mas ela, com certeza, não era uma delas. Sentia falta dos barulhos da cidade grande, das buzinas, dos shoppings, as vitrines, as baladas... Não conseguiria viver em uma cidade pequena. Definitivamente.
De fato não foi difícil encontrar o estábulo, embora a fazenda fosse bem grande. Consequentemente não foi difícil encontrar Rodrigo. Na verdade, ela o avistou de longe, porque ele estava do lado de fora, recolhendo alguns sacos pesados de uma van e levando-os para dentro.
Por mais que tivesse passado boa parte do dia anterior com ele, sentira-se tão absorvida pelo fato de ele e Rodolfo não se darem bem — e depois pelo choque do perigo —, que nem sequer reparara em sua aparência. Não que estivesse menos preocupada ou assustada, mas era apenas uma questão de oportunidade. O homem estava ali, na sua frente, alvo de sua observação. Não havia nada para impedir uma análise mais profunda.
Debaixo do sol daquela manhã, Rodrigo era a própria imagem da virilidade. Vestia um jeans surrado, que moldava seu corpo com perfeição, acompanhado da típica camisa de flanela xadrez, que Gisele poderia considerar a coisa mais cafona do universo, se não estivesse com todos os botões abertos, revelando o tórax mais musculoso que já tinha visto fora das telas de cinema.
Rodrigo tinha um porte intimidador, e até mesmo seu rosto tinha traços rudes, mas estava longe de ser feio. Pelo contrário, era bonito como um verdadeiro homem másculo deveria ser. Possuía traços desenhados, lábios carnudos, olhos amendoados e um nariz quase perfeito, se não fosse levemente torto, combinando com a cicatriz branca que dividia sua sobrancelha esquerda em duas partes.
Ah, e havia um chapéu. Claro que não podia faltar um chapéu.
O trabalho braçal que realizava, carregando sacos com quilos e quilos do que parecia ser ração de cavalo como se não pesassem nada, proporcionava suor à sua testa, mas ele sequer parecia ofegante.
Ela simplesmente esperou que ele terminasse aquele ritual para se aproximar. Assim que começou a caminhar, na direção dele, Rodrigo avistou-a, fixando seus olhos nela com muita intensidade, franzindo o cenho, apenas esperando o próximo passo.
Desse momento em diante, tudo pareceu acontecer em câmera lenta. Ele tirou o chapéu, como que para cumprimentá-la, com um gesto cortês e quase antiquado, quase se rendendo à imagem que via, revelando uma cabeleira negra, longa, com cachos rebeldes, que tocavam seus ombros de tão longos. Para um homem, é claro.
― Bom dia ― ele saudou com certa relutância, sem saber como ela iria reagir.
― Bom dia. ― Gisele tentou sorrir, embora não estivesse muito feliz naquele momento. Havia muitos pensamentos confusos em sua mente, por isso, não sabia como agir com aquele homem.
― Você está bem? ― ele perguntou, aproximando-se um pouco mais, quase completando os passos para ficarem o mais próximo possível, ainda mantendo uma distância segura.
― Estou, na medida do possível ― respondeu com relutância. ― Olha, acho que não fui justa com você. Salvou minha vida, e eu nem sequer agradeci.
— Não sabemos se salvei sua vida. Foi uma situação extrema, acho que nenhum de nós dois estava raciocinando direito. — Ele deu de ombros, despreocupado.
― Seja como for... obrigada. Você nem me conhece. Não precisava ter feito tanto esforço por mim.
Rodrigo apenas assentiu com a cabeça, não dando muita importância a seu ato heróico. Além disso, esperou, pois algo lhe dizia que Gisele ainda tinha algo a dizer, mas parecia não saber como começar o assunto.
― Você nem precisa se incomodar em me levar de volta. Se me emprestar um telefone, posso ligar para que alguém da empresa do meu padrasto venha me buscar.
― Você só pode estar louca. ― Sem dar muita atenção ao que ela dizia, Rodrigo voltou a seu trabalho.
― Louca? Porque quero voltar para casa?
― Não. Louca porque quer voltar ao perigo.
— Você não sabe o que vai acontecer daqui em diante. De repente o pior já passou. Quem sabe Rodolfo já não entrou em contato, pode já estar tudo bem.
— É nisso que você quer acreditar?
Touché. Sim, era uma esperança boba. Tanto que ela nem sequer respondeu.
— Não sei se vão tentar novamente, mas pareciam bem incisivos ontem quando tentaram arrombar a sua porta. Já conversei com meu amigo policial, e ele está começando a investigar, tenho certeza que teremos respostas em breve, mas por enquanto, até onde eu sei, você ainda é um alvo.
Como podia ser tão teimosa, tão desobediente? Não que ele achasse que devia dominar ou controlar mulheres, não era tão antiquado a esse ponto, mas se estava falando algo que visivelmente era para o bem dela, para mantê-la segura, por que simplesmente não aceitava?
― Olha, garota, eu te entendo. Essa coisa de querer voltar para casa. Eu sinto o tempo todo quando me afasto daqui. Ninguém é tão apegado às suas coisas quanto eu, por isso, tudo que eu queria era poder acatar o seu pedido, mas não vou fazer isso. Não quando meu irmão pediu que a trouxesse para cá e a mantivesse em segurança. Foi uma promessa, então, só ele pode me liberar dela.
Ele falava baixo, de forma calma, sem se alterar, mas era fácil ver que estava um pouco irritado. Ela conseguia enxergar nuvens escuras em seus olhos, que poderiam explodir em tempestades a qualquer momento. Rodrigo era selvagem, mas parecia tentar a todo custo manter uma postura equilibrada, talvez por ela ser mulher e respeitá-la ou porque ainda não a conhecia direito ao ponto de poder agir com sua própria natureza.
― Não é uma escolha sua ― Gisele falou entredentes, começando a sentir-se irritada. Quem aquele homem pensava que era para lhe dar ordens?
― Não, a escolha é de Rodolfo. Se ele confiou em mim para protegê-la, isso é o que farei. Então, me ouça e faça o que eu digo.
Gisele respirou fundo, colocou a mão na cintura, quase que procurando se estabilizar, e desviou os olhos dos dele, focando-os no horizonte à sua frente, buscando serenidade para lidar com aquela situação. O sol incendiava o céu e as nuvens, quase combinando com a sensação poderosa que se manifestava em seu coração. Sentia um misto de raiva e gratidão que a confundia, não poderia agir com teimosia sabendo que aquele homem tinha razão.
— Tudo bem, paciência. Já que vou ficar aqui, vou precisar de roupas.
— Isso eu posso resolver. Mais alguma coisa?
— Preciso avisar à minha família que estou bem. ― Rodrigo teve vontade de rir ao perceber que ela não tinha a menor intenção de pedir qualquer coisa. Era quase uma ordem.
— Também já pedi que meu amigo os informe que você não está em perigo.
— Mas eu quero falar com eles! Minha mãe, meu padrasto! Ficou louco? Não pode me proibir de falar com eles! O que é isso aqui? Um cárcere privado?
— Claro que não. Mas prefiro que eles não saibam onde você está. Isso pode colocá-los em perigo, já que não sabemos a gravidade do que está acontecendo. Podem ter telefones grampeados, ser chantageados... Mas fique tranquila. A esta hora já devem saber que você está bem. Eu prometo.
Ele fazia muitas promessas. E parecia capaz e disposto a cumprir todas elas. Apesar disso, Gisele não conseguia se livrar daquela peculiar sensação de acreditar que havia algo de muito estranho em relação a ele. Rodrigo era como o anoitecer em um deserto: misterioso, belo, envolto em uma aura de perigo e sedução. E também um pouco de melancolia. Uma melancolia que era praticamente aparente em sua face, que escapava de seus poros, assim como o suor que molhava seu rosto depois de um trabalho pesado. Mas ela não estava disposta a afundar na areia movediça; não quando seu coração ainda estava de luto, não quando sentia-se tão frágil e assustada. Aceitaria sua proteção e nada mais que ele pudesse vir a lhe oferecer.
Mas a verdade, o que realmente a preocupava, é que ela não fazia ideia do que aconteceria dali para frente. Nem em relação a si mesma.
Não havia nada para fazer. Gisele não era uma mulher que se entediava fácil, até porque estava sempre atarefada, cheia de reuniões sociais e profissionais que preenchiam quase todas as suas noites, e ainda havia Rodolfo para entretê-la quando precisava de carinho e atenção. Naquela casa que não lhe pertencia, entretanto, passava o dia inteiro olhando para o teto e tentando não pensar demais. Cada pensamento que surgia em sua mente parecia uma faca afiada espalhando dor por cada partezinha escondida em seu corpo. De acordo com o relógio sobre o criado-mudo, já passava das sete da noite, o que significava que aquele tinha sido o dia mais improdutivo de toda sua existência. Precis
Rodrigo não queria se preocupar, não queria estar pensando no irmão com pesar e nem com vontade de quebrar a casa inteira só de imaginar que alguém poderia estar machucando-o ou pior. Não, não podia pensar no pior. Embora ele nem soubesse o que era o pior. Não temia a morte. E achava que nenhum ser humano deveria temê-la, afinal, ela era muito mais fácil do que a vida. Ah, essa sim o assustava. Intrigava-lhe a forma como as pessoas escolhiam viver suas vidas, como deixavam que coisas banais se tornassem importantes demais quando deveriam ser apenas problemas passageiros. E os seres humanos também matavam outros seres humanos. Que era exatamente o que Rodrigo não compreendia
Rodrigo tinha uma especial afeição especial pelo mato. Na verdade, era uma outra forma de dizer que gostava demais de seu cantinho para se afastar dele por muito tempo. Tanto que todas as vezes que precisava ir ao Rio de Janeiro para resolver qualquer problema com fornecedores ou compradores, sentia como se estivesse recebendo um convite VIP para o inferno. Em sua mente, todos os tipos de reclamação surgiam: calor demais, frio demais, poluição, pessoas mal educadas, preços exorbitantes, motoristas loucos, trânsito caótico e violência desmedida. Parecia um velho ranzinza. E talvez não estivesse muito longe disso, afinal. O mais longe de casa que conseguia ir era até o centro de Valença. E em poucos minutos já sentia vontade de correr para sua fazenda. Não tinha jeito mesmo.&nb
― Ainda bem que eu não enxergo para não ver o baita estrago que você vai fazer nesse chão de tanto andar de um lado para o outro. Era uma piadinha. Rodrigo podia ouvir o sarcasmo entranhado em cada letra da frase que ouviu. Em qualquer outra ocasião teria entrado na brincadeira, pois era raro ter o pai tão brincalhão, especialmente falando de sua deficiência com humor. Deveria ser algo para se comemorar, para ser enxergado como uma pequena vitória, mas ele não estava muito animado naquele momento. Apesar disso, preferiu não comentar nada. Tentando se acalmar, Rodrigo fialmente se sentou ao lado do pai, que sentiu sua presença e colocou a mão caleijada sobre a perna do filho, dando dois tapinhas camaradas para acalmá-lo.&nbs
Gisele estava esperando uma espelunca qualquer. Um bar daqueles bem xexelentos, com música sertaneja de raíz tocando, bêbados por todos os lados, mesa de sinuca e cheiro de urina. Mas já deveria imaginar que Rodrigo jamais a levaria para um lugar como esses. Era cavalheiro demais para isso. E levemente esquentado também, ainda mais com aquela firme ideia de protegê-la. Acabaria arrumando encrenca, com certeza. Quando ele parou o carro na frente de um depósito de bebidas e pediu que ela esperasse no carro, Gisele não compreendeu quais eram seus planos em um primeiro momento. Nem mesmo quando o viu colocando um engradado de cerveja e mais algumas garrafas de vodka na caçamba da picape. Ela só foi entender o que ele tinha em mente quando chegaram à fazenda. Por um mo
Gisele sentia como se estivesse flutuando em um mar turvo. Afogava-se, mas nem sequer tentava lutar para se salvar, apenas aceitava seu destino. A consciência ia e vinha, em um ritmo vertiginoso, mas ela permanecia inerte, presa à escuridão. Ouvia vozes ao redor a chamá-la. Sabia que tentavam reanimá-la, que deveria estar deixando todos muito preocupados, mas só queria ser um pouco egoísta e permanecer fora de si por mais um tempo. Se acordasse e se deparasse novamente com a vida real, acabaria se lembrando das imagens que vira pouco antes de perder os sentidos. E não queria lembrar. Não queria pensar que estava rolando na grama e beijando outro homem enquanto Rodolfo era torturado e passava por maus lençóis. Já tinha decidido que não o amava tanto quanto pensara, mas o correto seria conversar e tentar encontrar a melhor
Protegida nos braços do homem por quem — agora sabia — estava perdidamente apaixonada, Gisele refletia. Tentava buscar em sua mente algum resquício de arrependimento pelo que tinha acabado de acontecer, mas estava tão em êxtase, que mal conseguia esconder. E não queria. Fazia tempo demais que não sorria daquela forma tão plena, que se sentia uma boba, uma adolescente. Tanto que começou a gargalhar sem nenhum motivo. Rodrigo, que estivera com os olhos fechados até então, abriu-os e estreitou os braços ao redor dela, também sorrindo e sendo contagiada. — Do que está rindo? — ele indagou curioso.&nbs
Rodrigo dirigia em silêncio, com os dedos firmemente presos ao volante. Segurava-o com tanta força que os nós de seus dedos chegavam a ficar brancos. Gisele, ao seu lado, também estava calada, preocupada. Era como se aquela estrada à frente fosse um corredor da morte, a julgar pela morbidez de suas expressões. A cada quilômetro que avançavam, Rodrigo dava uma olhada nela, quase com a esperança de que mudasse de ideia e pedisse, assustada, que ele desse meia volta e retornasse para Valença, para a fazenda onde ele sabia que poderia mantê-la segura. A partir do momento que cruzassem a entrada para o Rio de Janeiro, não poderia prometer mais nada. O tempo, inclusive, combinava com seus humores. O dia estava cinzento, cheio de nuve