O constante adernar do navio o tinha feito adormecer. E os sonhos eram repletos de monstros ferozes e sanguinários. Eles acompanhavam os seguidores da Ordem da Luz. Nenhum feiticeiro havia decidido intervir. E quanto a Cassie...
Richard acordou banhado de suor.
Tudo havia saído miseravelmente errado. O som do grito da mulher ecoava em seus ouvidos de forma alucinada. Abriu as pálpebras pesadas sem conseguir se localizar no primeiro momento. Aquele era o Gaia. Sozinho na cabine principal do navio, ele observou o luar prateado que iluminava a noite.
Esticou as lonas pernas se espreguiçando e alongando músculos como um felino teria feito. Cauteloso e atento. O olhar firme de um tom azul escuro- todos os homens da família exceto Michael tinham olhos daquela tonalidade - buscou o cinturão deixado à cabeceira. As pistolas longas de cano de prata estavam carregadas.
Era estranha a sensação de estar de volta ali. Era como se o tempo tivesse apagado os infelizes dois anos que tinham passado. Os olhos caíram sobre a mobília, impecavelmente organizada, exceto pelas roupas largadas no chão. Sob a mesa ainda estavam o astrolábio, cartas náuticas, esquadros e réguas. Ele estava com os músculos rígidos e doloridos. Fazia muito tempo desde que se ocupara de um cordame de navio.
Foi em vão que ele lutou contra o fluxo de lembranças.
Sempre soube que não haveria lugar para uma mulher na Armada Corsária. Foi decisão da Corte da Irmandade seu afastamento.
Você se arrisca sem necessidade. Parou para pensar no que Garro teria feito se pusesse as mãos em você?
Ela era filha de um comandante da Armada. Era um alvo fácil. Ele tinha inimigos. Temia pela segurança da mulher.
Cassie era temperamental, decidida e voluntariosa. Richard tinha convicção absoluta que atravessava o inferno. Tinha feito acordos e barganhas, tudo que estava ao seu alcance para proteger a mulher. Ela também era imprudente. Uma inconsequente. Manejava armas e pistolas. Pretendia assumir o timão do Revenge. Ele odiava mulheres independentes.
Ah, isso não é verdade, homem. Você sempre apreciou.
Richard balançou a cabeça. A voz grave do velho homem e cigano chegou-lhe aos ouvidos. Ele nunca tinha duvidado sobre o que falavam sobre o velho companheiro. O pai era um cigano, mas ainda assim corria em suas veias o sangue da magia. A mãe era uma feiticeira. O nascimento da criança tinha custado à vida da mãe. O homem era um vidente. Lia pensamentos.
Cenas horríveis invadiam sua mente. Cassie machucada e ferida. Violentada. Havia Garro e James.
-Ela está viva ainda? Consegue senti-la? – conseguiu perguntar com a garganta seca.
O silêncio caiu pesado. Desde que o Gaia tinha levantado âncoras, ele e o cigano discutiam. O velho jamais tinha aprovado seu relacionamento com a filha mais velho de Blackwill.
-Agora me tornei um oráculo? O que sou? – resmungou o homem, encolhendo os ombros.
Richard permaneceu quieto. Sentia o ar carregado de eletricidade; início de uma tempestade. E aquilo nunca era bom presságio.
-É meu amigo. – contradisse muito sério.
O velho cigano observou o rapaz. O olhar obstinado dele o fez sacudir a cabeça.
- Sabe tão bem quanto eu. O processo de transformação é doloroso. Quando se tem sorte e consegue sobreviver há sempre sequelas.
Ninguém jamais escapava da Ordem. Seus seguidores eram fanáticos guerreiros. Eles iam mais uma vez tentar restaurar o poder proibido.
-Ah, ela está viva, sim. - a resposta era relutante demais.
Foi um suspiro de alívio que escapou de Richard. Que ela estivesse bem, não importasse o que fosse preciso fazer. Ele a acharia. Daquela vez tudo seria diferente. Iria voltar com ela para o castelo. Nada mais de combates.
-Vai mesmo atrás dela?
-Mas é claro. – a voz era irritada. - Mesmo que tenha que enfrentar Jackwill.
O cigano suspirou pesaroso.
O Gaia se preparava para uma batalha. O homem tinha temperamento forte. E ia ter o apoio do Coral Negro. Ele não ia tolerar a violência que a mulher tinha sofrido. E não era só aquilo. Há alguns dias ele percebia. Havia concentração de energia. Uma concentração tão forte que seria capaz de restaurar as Peças de Quatro.
-Vai abandonar outra vez a Armada depois disso?
-E arriscar a vida de Cassie outra vez? – Richard não conseguia entender a relutância do velho.
-É uma vida longe de combates e desafios que almeja?Ah, com certeza absoluta. Nada mais dessas malditas Peças amaldiçoadas. Tudo o que importava para ele era a segurança de Cassie. Talvez filhos...-Sabe que inferno foram esses meses?O cigano não ouvia. Observava a lenta mudança no temperamento do homem. Rick nunca demonstrara o dom da transformação. Seu controle era férreo ao recusar as antigas tradições. No entanto seu controle estava bem precário. A fúria natural incitava seus instintos básicos. Aquilo poderia se tornar promissor. Ele seria um aliado forte na batalha.-Pois então sugiro que se apresse.-O que...Ela ainda está viva. A sombra da morte ainda é forte em seu caminho. Ela nada tem a perder em seus combates. Isso ás vezes pode ser um problema.Richard mirou o velho incrédulo. Suas vis&oti
O taberneiro tinha reforçado a segurança da prisioneira com ordens categóricas. Ninguém deveria entrar naquela cela a não ser criadas que preparariam a jovem odalisca com roupas transparentes para os leilões orientais. Só o pensamento era capaz de deixar Garro excitado, só que a covardia era mais forte. Não tinha interesse algum em morrer por causa de uma mulher. Richard Morgan não era um oponente com o qual ele apreciaria cruzar espadas. A vingança era doce. Tão logo a mulher fosse comprada e conduzida para qualquer um daqueles haréns, Richard nunca mais a resgataria. Richard Morgan poderia estar furioso. Ele nunca correria o risco com a vida daquela garota. Não depois de ter descoberto que a infernal garota que todos acreditavam estar morta estava viva. E isso era uma pequena precaução no caso dos planos não saírem bem. O navio de Pirata Sangren
Aquele homem continuava intratável como sempre. Talvez menos tolerante. Só que a intenção de Garro não era negociar. As ordens de James eram para que os irmãos Morgans estivessem ocupados com o paradeiro de Faith. E ainda havia a questão do dinheiro. Aqueles olhos de ametista eram raros. Valeriam uma fortuna considerável entre os orientais. -Olhe, seja razoável. - o taberneiro defendia-se muito apressado. - Não toquei em sua mulher. Sou um homem de palavra. Richard rosnou, franzindo a testa ao enfrentar o homem assombrado por lembranças. Tinham revirado tudo: taberna, prisão e todo oporão sem nada encontrar. Meneou a cabeça irredutível. -Onde Garro? – rugiu implacável. - Onde está Cassie? Garro suava profusamente. - Ela... ela está viva. Juro a você! - ele falava aos tropeções. A declaraç&at
Meses antes...Richard Morgan O’HARA abaixou a luneta e observou a pequena escuna de longe.O Estrela do Amanhã atacava a embarcação. Podia sentir no ar pesado o cheiro de pólvora. Ele observava os combates armados na tentativa dos tripulantes, que transportavam o contrabando, salvarem a preciosa carga. Uma carga que ele poderia muito bem imaginar o destino: Chabone.No último instante sua mente foi invadida pela recordação de uma pele impecavelmente suave, cabelos ondulantes e rebeldes e lábios tentadores que pareciam como rosas.O cheiro de sangue, pólvora e mar dera lugar a outro: delicado, i
Ele podia sentir a expectativa da batalha aquecer seu sangue. Havia esperado tanto aquele momento. Como comandante passaria mais tempo em terra firme. Teria tempo suficiente para o que mais havia desejado naquele último ano.Iria encontrar aquela garota. Não sonhara com outra coisa naqueles meses. Agora que parecia perto de seu objetivo tudo era irreal.Aquela mulher seria dele. Não daria ouvidas as brincadeiras dos irmãos. A mão involuntariamente tocou o bolso do gibão. Com o lenço bordado. Cassie. Ele a encontraria, nem que fosse preciso fareja-la.Richard Morgan olhou ao redor. Os corsários estavam felizes e sorridentes com a expectativa d
- Não foi o que combinamos. Nosso trato jamais incluir entregar a mulher a um caçador de recompensas. - O homem quase gritava à beira da fúria.O nobre que o encarava ainda vestia as roupas de viagem e fez pouco caso.Thalagar odiava aquele homem. O próprio capitão não era tão diferente dele assim. Ah, maldito fosse Philip Morgan! Na busca pelo poder alguns sacrifícios eram exigidos e tolerados. Tinta trinta e dois anos e era o capitão do Estrela do Amanhã. A vida havia oferecido tudo o que um jovem ambicioso poderia almejar: uma carreira privilegiada e poder. Aliás, quase tudo. Ultimamente o velho Will, seu tio mirava o
Thalagar cerrou os punhos. Não respondeu. Teria que conquistar a confiança de Kassuim... Inferno! Aquilo ia ser difícil depois de tudo. E quanto aos lobos... Se ele fosse descoberto, não seria apenas exilado. Aquilo seria considerado traição. Iriam condena-lo a morte. Talvez...- Vamos. Tudo está sobre controle. Deixe os acontecimentos tomarem saiu rumo. Voltaremos a nos encontrar em Garrone.Thalagar pretendia protestar. Era arriscado para ele. Coçou a testa desanimado. Apenas assentiu.A primeira explosão que atingiu a escuna não chegou a atingir o porão de pólvora, mas avaliou seriame
O capitão revirou os olhos mais insatisfeitos ainda. Não conseguia ver o garoto com as chamas altas que ardiam no convés. Aquilo parecia um inferno. Ele pouco se lembrava daquele garoto durante as reuniões da Armada.Faith ainda passava parte do ano em terra firme no castelo de Escarlate, mas aquele garoto... Ah, ele havia praticamente crescido a bordo do navio. Havia os comentários, era claro. O menino tinha pavio curto, encrenqueiro e era um excelente espadachim. Nunca desistia de uma luta.Um novo estrondo ensurdecedor ecoou. O cheiro ácido de pólvora e enxofre enchia o ar. Outra vez a figura esmirrada amparava golpes da mesma forma que ataca e aquilo era com certeza uma rapineira. Rick estava pasmo. Ele próprio era conhecido por sua perícia com espadas, mas aquele garoto... Seus reflexos e agilidade... Poderia até mesmo ser um lobo, pois não pareciam humanos. Ele poderia se igualar com desen