O cheiro de desinfetante e pó de giz ainda pairava no ar quando Sarah me convenceu a voltar para a loja. Aceitei o convite com um misto de alívio e apreensão. A solidão da minha casa havia se tornado um monstro silencioso, devorando meus dias em um mar de pensamentos obscuros. Mas voltar ao trabalho? Era como mergulhar de volta em um mar agitado, depois de ter me refugiado na praia calma e silenciosa da minha própria companhia.A loja estava um caos, como eu esperava. Caixas desorganizadas, prateleiras empoeiradas, um verdadeiro campo de batalha pós-guerra. Comecei a arrumar tudo, quase que em um transe, a cada caixa organizada, a cada prateleira limpa, sentia um pequeno alívio, como se estivesse limpando também a poeira da minha própria alma. Sarah observava, um sorriso irônico nos lábios. “Você tem um talento oculto, Clara”, disse ela, “nunca imaginei que você tivesse jeito para isso.” A aprovação dela, inesperada e sincera, me aqueceu mais do que o sorvete gelado que comp
O expediente terminou e, juntas, Sarah e eu nos sentamos em um banco da praça, papo vai, papo vem. Contei-lhe sobre o sonho, mas sua reação foi… neutra. Nenhuma expressão de espanto, nenhuma exclamação. A semente da dúvida brotou em meu peito. __será um presságio?__"Presságio do quê, Sarah?", perguntei, a voz quase um sussurro. Seus olhos, escuros e penetrantes, encontraram os meus. __"Talvez de que você precise mesmo manter distância de Ethan."Mudamos de assunto, mas como imãs repelidos e atraídos ao mesmo tempo, a conversa sempre voltava para ele. Era como se um fio invisível nos prendesse a esse tema incômodo. __"Tudo começou depois que cheguei a essa vila e conheci Ethan...", confessei, a amargura da constatação me sufocando.A brisa suave da tarde não conseguia dissipar a névoa de apreensão que me envolvia. O sonho, vago e perturbador, ecoava em minha mente. As palavras de Sarah, embora ditas com delicadeza, soavam como um prenúncio. Será que estava mesmo destinada a
Mantive o incidente em segredo, enterrando o medo e a dúvida no fundo do meu coração. Contar para Sarah seria inútil; ela se preocuparia, e isso era a última coisa que eu queria. Talvez, pensei, tenha sido apenas impressão, um produto da minha imaginação fértil, sobrecarregada por eventos recentes. Ultimamente, minha mente parecia trabalhar em tempo extra, criando cenários fantasiosos e apavorantes. A única coisa que compartilhei com Sarah foi o encontro com Lucas, o beijo.__"Ah, que bom, amiga!", ela exclamou, os olhos brilhando de alegria.__ "Ele é um cara bacana, é disso que você precisa." Suas palavras, cheias de entusiasmo, foram um bálsamo para a minha alma, um alívio temporário para a angústia que me corroía por dentro. Mas a imagem dos olhos vermelhos, brilhantes na escuridão, continuava a me assombrar, uma sombra persistente que se recusava a desaparecer. A dúvida persistia, um nó apertado no meu estômago. Será que eu estava realmente enlouquecendo? Ou havia algo de
Após um dia exaustivo de trabalho, voltei à minha investigação sobre Ethan e sua família. O livro antigo, com sua capa desbotada e páginas amareladas pelo tempo, estava aberto sobre minha mesa, esperando que eu prosseguisse com a decifração de seus segredos. A árvore genealógica, cuidadosamente desenhada, se estendia por gerações, seus ramos entrelaçados, revelando conexões e laços familiares. O que me chamou a atenção, quase que imediatamente, foi a repetição constante do nome "Ethan". Gerações atrás, lá estava Ethan; mais adiante, outro Ethan; e assim sucessivamente, como se o nome fosse uma tradição familiar, uma herança passada de pai para filho. No entanto, foi a página seguinte que me deixou sem fôlego, o coração disparado no peito, como se um pássaro estivesse lutando para escapar da gaiola. E ali, na página seguinte, algo extraordinário: uma fotografia antiga. Uma mulher jovem, de beleza singular e um sorriso enigmático, olhava diretamente para a câmera. Era a mãe de Ethan
Não era uma pessoa religiosa. A fé, para mim, sempre fora uma abstração distante, um conceito aprendido nos livros de história mais do que vivenciado no coração. Mas naquele domingo, algo me impulsionou a cruzar o limiar da pequena igreja de São Miguel, no vilarejo. Talvez fosse a promessa de um refúgio silencioso, um antídoto para a inquietação que me habitava.Assisti à missa, um ritual que me era estranho, mas que, de alguma forma, me acalmou. Paguei o dízimo, um gesto quase mecânico, guiado por um impulso que eu mesma não conseguia decifrar. Ao término da celebração, permaneci sentada nos bancos de madeira escura, sozinha, envolvida pelo silêncio respeitoso e pelo aroma persistente de incenso e mirra. Era um cheiro antigo, carregado de história, que impregnava o ar e me envolvia como um abraço suave.O padre, um homem de rosto enrugado e olhos gentis, percebeu minha presença solitária. Aproximou-se, sentando-se ao meu lado. A voz dele, baixa e compassada, quebrou o silêncio.
As coisas só pioravam no vilarejo. O urso, que deveria ter sido capturado, continuava à solta, e o desespero se instalou ainda mais quando dois xerifes desapareceram. Dias depois, parte deles foi encontrada, mas as notícias eram aterradoras. O vazio que se formou na comunidade era ensurdecedor; não havia risadas, não havia conversas animadas. As pessoas, agora apavoradas, passavam os dias trancadas em casa, murmurando orações em busca de proteção.Sarah, preocupada com minha segurança, propôs que eu fosse ficar com ela. Mas recusei. Preferi ficar sozinha em meu lar, doce lar, um refúgio que, embora agora parecesse vulnerável, ainda era o único lugar que me proporcionava uma sensação de controle.Sentada na janela do meu quarto, olhei para a floresta, grande e imponente, as árvores parecendo sussurrar segredos que eu não conseguia entender. A beleza do cenário era ofuscada pela sombra do medo. Onde estaria o urso? E Ethan? A pergunta me atormentava. Será que ele e sua família estavam a
Os dias seguintes foram marcados pela apreensão. Evitava sair de casa, mantendo-me presa em meu refúgio, observando o mundo lá fora através da janela. A floresta, antes um lugar de beleza e mistério, agora era sinônimo de perigo, e a cada ruído, a cada sombra que se movia, meu coração disparava. O medo do urso era real, mas o medo do homem loiro, e agora também o da própria Sarah, me deixava em um estado constante de alerta.A cada ligação, a cada mensagem, esperava por alguma explicação, por alguma pista que me ajudasse a entender o comportamento estranho de Sarah. Mas nada. Ela continuava evasiva, suas respostas curtas e enigmáticas, alimentavam minhas suspeitas. A sensação de que ela me escondia algo importante era cada vez mais forte, um peso na consciência que me impedia de relaxar.Um dia, resolvi arriscar. Precisei ir até a mercearia, e apesar do medo, me forcei a sair. O vilarejo continuava silencioso, assombrado pelo medo. As pessoas se moviam como sombras, os rostos ma
O pânico me petrificou. A adrenalina, antes minha aliada, agora me paralisava, deixando apenas a pulsação frenética do meu coração como trilha sonora do meu terror. O ar faltava nos pulmões, a boca seca, um nó na garganta me silenciava. Meus olhos, arregalados, absorviam a escuridão opressora da floresta, o silêncio ensurdecedor quebrado apenas pelo estrondo do meu próprio sangue nas têmporas. O medo, frio e viscoso, me envolvia como um manto, sufocando qualquer resquício de esperança. Era o fim. Eu ia morrer ali, destroçada, longe de Nova York, num vilarejo perdido, devorada por uma criatura sobrenatural que eu jamais imaginara existir. Então, uma voz, familiar até no inferno: __ “Não toque nela, Dion.” Ethan. Ali, sem camisa, pronto para o ataque. A visão dele, naquele cenário de pesadelo, foi um raio de esperança na escuridão. __“Ethan…” sussurrei, minha voz fraca e rouca. Ele nem me olhou, seus olhos fixos na fera que rosnava, presas afiadas à mostra. “Volte para casa, Dion.