Capítulo Um

Laura até queria ter um jeito mais filosófico e genial de dizer, mas não havia nada que cobrisse a imensidão que se mudar era além de: uma grande e fedida bosta.

Se mudar é uma puta sacanagem da vida, sobretudo quando ela acontece várias e várias vezes como se alguém estivesse com o dedo apertando o botão de repetir sem a menor prudência.

Laura tinha certeza que a vida no momento estava sentada em sua poltrona suprema acima de tudo no universo com o controle da televisão do mundo sintonizada no canal Ortiz, sem sombra de dúvidas rindo de sua irritação com aquele momento que havia adorado criar. Comeria pipoca com bastante manteiga por cima, lambendo os dedos nojentos antes de pegar refrigerante e beber um longo gole.

Não se surpreenderia se todo o universo estivesse rindo naquele instante, a observando como se estivesse em um cinema e ela fosse uma das atrizes principais de um filme de comédia.

“Como acabar com a vida de uma adolescente em menos de 5 segundos”, seria o nome do filme, porque levou exatamente quatro segundos para sua vida passar de relativamente feliz para uma merda total.

Esse foi o tempo que seu pai, o mais tranquilo da família, levou para dizer aos filhos “vamos nos mudar”, o que foi cerca de duzentos por cento mais curto que o tempo que os três jovens tomaram para conseguirem processar o que havia sido dito.

Então, os caçulas dispararam perguntas que os fizera comemorar a mudança em questão de minutos enquanto Laura encarava o pai como se ele fosse um alienígena levando toda sua alegria ao espaço em sua nave removedora de constantes.

Clara sequer estava perto quando o marido deu a notícia, já estava no que seria o novo lar da família organizando o que precisava ser organizado antes de voltar e ajudar Gabriel e os filhos com a mudança.

E Laura encarava o pai ainda em transe, se perguntando qual era o problema deles em ter essa necessidade de se mudar quando ela já estava se habituando e até começando a gostar do lugar.

Só podia ser para estragar sua vida, ela tinha quase certeza disso.

Gabriel evitava seu olhar a todo custo, deixaria para acalmar a filha quando Clara estivesse presente e a deixaria digerindo a notícia por algum tempo como se a estivesse cozinhando em banho-maria a fogo lento, mas a chama já havia acendido e Laura estava queimando em raiva.

Clara e Gabriel perceberam isso. Não gostavam quando o humor da filha estava tão ruim, mas isso vinha sendo bem mais frequente. Sempre havia aquele ar de sofrimento e raiva que ela visivelmente tentava engolir, mas acabava respingando e molhando todo mundo naquela casa.

As suas palavras...

Tomaram todo o cuidado do mundo em lidar com ela, seus esforços sendo notados a ponto de que Laura não reclamou e manteve-se em silêncio e olhares mortais os ouvindo prometer milhares de coisas como se isso fosse apagar o incêndio em seu interior.

Laura não queria ter que mudar de escola, ou mesmo de cidade. Não que fosse uma jovem extrovertida e cheia de amigos, mas nem mesmo tinha a oportunidade de tentar sem ser arrancada da nova realidade, o que fez com que um horror a criar laços se instalasse dentro dela.

No entanto, por mais que amasse a praia, a cidade grande, a escola com suas milhares de pessoas que jamais reparariam nela, sua família tinha uma necessidade bizarra de se mudar que sempre foi negada uma explicação, então, logicamente tinha que estar junto.

Males da adolescência.

Laura se perguntava o porquê de as pessoas não nascerem com direito a pensões vitalícias para poderem viver sozinhas quando quisessem, mesmo que fossem quebrar a cara.

Ok, ela também sabia que era ridículo, mas deve-se dar um desconto porque Laura estava completamente indignada com sua situação atual.

Aquela merda gigante!

Estava no carro com seus irmãos mais novos, Edward e Beatrice, os ouvindo discutir pela enésima vez sobre a música do carro e não pode evitar de direcionar um olhar entediado aos pais, que sorriam se divertindo com a confusão enquanto Laura praticamente gritava com o olhar: são seus filhos, os controlem! Mesmo que seja para enfiá-los em uma camisa de força ou enfiar esparadrapos em suas bocas!

Eles eram os pais mais maldosos que uma adolescente poderia ter. Não no sentido físico, porque os dois nunca maltrataram os filhos, mas no sentido de que se divertiam às custas de suas crias.

Gabriel e Clara olhavam pelo retrovisor como se a desgastante e repetitiva briga entre os caçulas fosse realmente divertida e Laura sabia com toda certeza do mundo que haviam apostado sobre alguma coisa relacionada ao assunto, porque era o tipo de coisa que faziam.

Eles levavam aquilo de se divertir com o sofrimento dos filhos realmente a sério.

Edward estava no canto de uma das janelas, atrás do motorista, tanto por ter alegado seu direito como segundo mais velho e único menino, quanto por Beatrice ter planejado que se estivesse em desvantagem — uma vez que Laura ocupou o lugar do lado da outra janela — poderia exigir o controle sobre as músicas que tocavam.

Pobre caçula enganada.

No momento, ela e o irmão se estapeavam em meio a discussão.

Tentando ignorar a confusão ao lado, Laura buscou se distrair com as músicas que ecoavam de seus fones de ouvido enquanto sua cabeça pendia até encostar na janela e seu olhar se direcionava para a paisagem como se a desafiasse a ser qualquer outra coisa além da que imaginava que seria, criando um clipe otimista para o caso de estarem se mudando para o calor do litoral, uma música latina ecoando em um espanhol sedutor enquanto quase se sentia feliz com a possibilidade em seu videoclipe.

Gemeu assim que viu os pinheiros criando o cenário ao redor, os cercando como um monstro devorador de homens e dignidades no pior cenário possível que poderia se desenvolver.

— Mãe! — protestou com um choramingo, arrancando os fones de ouvido porque a música alegre já não combinava com seu humor, sonhos e esperanças, e voltando-se para os pais.

Eles haviam prometido que não morariam no meio do mato e ali estavam!

Laura detestava esse tipo de ambiente. Não importava o quando o verde fosse lindo e o ar fosse de contos de fadas com Branca de Neve e os Sete Anões dançando e cantando no jardim enquanto belos animaizinhos eram atraídos pela voz maravilhosa e faziam toda a tarefa doméstica enquanto ela podia aproveitar a vida ao ar livre como se o tempo não passasse.

Quem dera fosse assim e não essa porcaria toda.

Aquela droga de ambiente era úmido, frio, abafado, deixava seu cabelo frisado, fazia sua pele ficar ainda mais pálida e possuía todo tipo de bicho que era possível imaginar.

E os bichos amavam Laura Ortiz.

Não que ela os detestasse, mas era particularmente inconveniente que vivessem a cercando, cutucando, subindo em seu colo sem permissão...

— Não vamos morar no meio do mato, Laur — sua mãe garantiu — apenas estamos um pouco mais... próximos da natureza. É isso.

Gabriel não conseguiu segurar e riu baixo da desculpa da mulher enquanto Laura lançava um olhar incrédulo, os olhos cinzentos refletindo o ambiente a volta queimando em sua direção.

Sério? Era isso que ela tinha para dizer a adolescente mal humorada no banco atrás do seu que ela chamava de filha?

E Clara parecia tranquila demais, quase como se realmente acreditasse no que havia dito.

Qual era o problema daqueles dois?

— Isso, traduzindo, quer dizer que vamos mesmo morar no meio do mato — a garota resmungou, a expressão fechada tomando de conta de seu rosto vermelho de raiva enquanto jogava inutilmente os cabelos para trás porque eles sempre voltavam para sua cara e Laura sempre acabava irritada com isso — eu nunca posso confiar no que dizem. Vocês me enganaram!

— Nós não te enganamos — Clara disse a ela, ainda serena demais para a situação, mas muito próxima do incômodo porque não era muito legal a pressão que sentiam quando a filha falava naquele tom.

— Enganaram sim! — Laura acusou, os olhos ardendo por como se sentia traída.

— Não, querida...

— Me poupe — a cortou, apertando as mãos em punho por pura irritação.

— Laura — Gabriel a repreendeu.

Edward e Beatrice pausaram a própria discussão e observaram em silêncio. Adoravam quando a irmã era repreendida, porque em geral os pais a deixavam se queixar e responder com toda a mal educação do mundo quando estava irritada.

Aquilo não era justo, uma vez que os dois eram repreendidos por muito menos.

— Não, papai, vocês prometeram!

Beatrice revirou os olhos em seu lugar por como a mais velha parecia uma pirralha mimada, mas nada disse.

— Laura, se acalme, não é essa coisa horrível que você está imaginando — Clara resmungou — cruzes, parece que estou levando você para a forca!

— Definitivamente está! — retrucou sem a menor pausa para pensar, como a adolescente em fase de revolta que era.

— Laura, é apenas uma casa em uma cidade pequena — explicou para a filha, que revirou os olhos.

— Eu odeio cidades pequenas — o lembrou, irritada — é sinônimo de mato, frio e bichos.

E pessoas que se conhecem a vida inteira achando que a presença dela é um entretenimento por ser novidade. E nada de mar. Nada de roupas leves e sentir a brisa aliviando o ardor de seu rosto pelo calor que a corava.

— Pare de reclamar, Laura! — Clara a repreendeu, suspirando — sabe que vive doente quando está na cidade grande.

— Eu não me importo — a adolescente teimou — eu odeio esse lugar!

— Não pode odiar um lugar onde ainda nem chegou — Clara disse, continuando antes que a filha tivesse a chance de contestar — e também não pode odiar um lugar assim que pôr os pés nele. Leva um pouco mais de tempo, querida.

A garota revirou os olhos e bufou, visivelmente irritada.

Claro que podia odiar aquele lugar desde ali. Já o odiava antes mesmo de saber de sua existência simplesmente pelo tipo de lugar que era.

— Dê uma chance, querida — Gabriel pediu, a olhando rapidamente pelo retrovisor.

Seus olhos desarmaram Laura, mesmo que só tivesse encontrado com os dela por um segundo.

Ele sempre foi o melhor em lidar com a filha, uma presença menos impositora em que ela parecia menos desafiada e mais voltada ao respeito por sua posição e sabedoria. E suas palavras não pareciam estar sem a provocando.

— Ok — a garota resmungou, cruzando os braços e fixando o olhar na janela ao lado, onde os pinheiros já os cercavam quase completamente.

Ótimo, seriam completamente sugados por aquele ambiente horrível.

Beatrice e Edward voltaram a discutir ao seu lado, mas Laura evitava prestar atenção ou no humor atual acabaria os matando, portanto, se enfiou em seus fones de ouvido novamente e se recostou contra o banco como se fosse um sorvete derretido, as músicas soando em um volume mais alto que o saudável apenas para abafar sua irritação com o mundo exterior.

A briga de seus irmãos era ridícula, aquele lugar era ridículo, aquela mudança era ridícula, seus pais estavam sendo ridículos, sua vida era ridícula.

Queria tanto voltar para sua casa de verdade. Seu quarto, seu quintal de grama bem aparada onde podia se esparramar e fotografar o céu em seus diversos momentos do dia enquanto curtia o sol esquentando e corando sua pele.

Não demorou para que chegassem a nova casa, simples, sem cercas, porém ladeada pela paisagem estonteantemente verde.

Pinheiros de todos os tamanhos ao fundo mais distante, arbustos, árvores desconhecidas insignificantes, roseis e, ok, haviam gardênias, suas flores favoritas.

Sim, ela podia admitir que a imagem era bonita, mas ainda era a droga de um lugar novo com coisas indesejáveis onde ela seria infeliz por um tempo até afundar mais quando anunciassem uma nova mudança.

Laura lutou para não choramingar ao se lembrar que haviam saído da cidade, do calor, da praia, do sol ardente a cada hora do dia com aquela brisa gostosa brincando com seus cabelos rebeldes e aquele céu estonteantemente azul, para aquilo.

Desceram do carro assim que pararam na garagem modesta da casa de madeira que um dia possivelmente tinha sido impecavelmente branca, mas que estava respingada pela terra em indícios de que ali chovia muito, comum a cidades pequenas e cercadas de mata.

Laura praticamente arrastou seus coturnos até a entrada, tentando não reclamar enquanto se aproximava da varanda simples com um balanço de cobre acolchoado em uma das pontas.

Àquela altura, seus irmãos já estavam dividindo os quartos, isso significava que ficaria com o pior de todos, mas ela não se importava, afinal não seria um quarto que transformaria aquele lugar em algo menos desagradável.

Ela entrou, olhando através da sala e constatando que era simples e confortável.

Havia um conjunto de sofás aparentemente macios e uma poltrona que não combinava, mas que estavam dispostos em uma formação que sugeria momentos em família extremamente agradáveis em frente a televisão ou da lareira, fosse encolhidos nos sofás, fosse esticados no tapete aparentemente macio.

Mais adiante, estava a mesa redonda de madeira com alguns lugares extras para as visitas que Laura, com todo seu pavor por vínculos que sempre se quebravam, esperava nunca receber.

Depois, vinha a cozinha extremamente branca, separada do resto da casa por um clássico balcão de pedra preta com alguns bancos altos a disposição.

Entre a sala e o canto da mesa de jantar estava a escada que levava aos quartos.

A casa era boa. Laura gostava de espaços confortáveis com cara cliché de lar.

— Isso não é justo! — ouviu Beatrice reclamar enquanto descia a escada junto ao irmão, ambos emburrados.

Clara e Gabriel riram, indicando que estavam esperando por aquelas reações, que provavelmente vinha de alguma brincadeira que fizeram com os filhos.

Não seria a primeira vez.

Laura ergueu os olhos preguiçosamente para onde estavam os pais, alinhados no canto próximo a escada a frente dos caçulas irritados. Estavam tão sorridentes que quase era palpável o quanto se divertiam com aquilo.

— O que eu perdi? — a filha mais velha perguntou, franzindo o cenho.

— Os quartos estão trancados — Edward resmungou, lançando um olhar feio aos pais.

— Ah... — Laura murmurou, desinteressada.

Aquilo realmente significava que Clara e Gabriel haviam escolhido e organizado o ambiente como disseram ter feito, então não poderiam escolher seus quartos, o que era basicamente uma novidade entre o grupo.

Eles amavam fazer os filhos de trouxa, dava para notar em seus sorrisos gigantescos brilhando na direção dos três, quase os cegando.

Grande coisa, não era como se algo fosse fazer a diferença naquele lugar.

— Não adianta reclamar — Clara se adiantou assim que Beatrice abriu a boca para se pronunciar — seu pai e eu os colocamos onde cada um precisa estar.

— Como podem saber o que a gente precisa? — Beatrice perguntou, cruzando os braços abaixo do peito e batendo os pés.

— Sabendo — foi a resposta de Gabriel, que entregava alegremente a chave dos respectivos quartos para os filhos.

Dessa vez, Laura tinha que concordar com a irmã. Se realmente soubessem de alguma coisa, nem mesmo estariam ali, para começo de conversa.

— Isso está mais para trapaça — Edward resmungou — aposto como o quarto da Laur é o melhor.

Como se ela realmente estivesse interessada em algo que não envolvesse voltar para sua cidade ensolarada.

O homem corpulento se abaixou diante do filho até o encarar olho no olho, o que não era muita coisa porque o adolescente era alto.

— O senhorzinho por um acaso está dizendo que eu sou um pai injusto? — Gabriel perguntou, cerrando os olhos e se obrigando a não rir quando o filho engoliu em seco.

— Não — Edward respondeu, o rosto vermelho e com medo da bronca.

— Bom mesmo, porque eu quem escolhi seu quarto — Clara falou, piscando para o filho do meio e dando-lhe um tapa fraco e estalado na nuca enquanto passava em direção ao próprio quarto seguida do marido, que riu da expressão envergonhada do filho antes de se afastar.

Os dois riam.

Laura bufou, quebrando o transe entre os irmãos e se voltando para a escada a fim de procurar seu quarto.

A primeira à esquerda do corredor estava aberta e ocupada por seus pais, que estavam desnecessariamente se agarrando próximos a porta.

— Ugh! — ela fez ao passar por eles, que riram enquanto se beijavam e chutaram a porta, os cerrando do lado de dentro.

Sua chave não abriu a porta da frente ao quarto do casal, a seguinte era um banheiro, mas conseguiu abrir a porta ao lado, a poupando de tentar abrir a porta a frente da sua.

O quarto era pequeno, a cama podia ser maior, mas lhe cabia com algum espaço de sobra e estava recostada a esquerda em frente a uma estante de livros; A direita estava uma cômoda e uma sapateira e ao lado da janela uma mesinha com uma cadeira. No chão, um tapete felpudo roxo que combinava com a manta sobre o colchão. Pelo visto, havia também um banheiro.

As paredes estavam de acordo com o que Laura havia pedido para o quarto da casa anterior e nunca havia conseguido, o que a fez revirar os olhos e resmungar o quanto estavam sendo bajuladores.

Estava cercada por um degradê que demonstrava as várias fases do céu ao longo do dia até se aprofundar na noite do teto cheio de estrelas e uma galáxia.

Laura teve a sensação de tentar ser comprada pelos pais a partir de algo que desejou muito. Por melhor que se sentisse com o ambiente, não era o bastante, ainda se sentia ferida, saudosa e magoada.

Uma ferida interna grande demais para ser curada ou escondida com uma pintura em cima.

Além disso, também se sentia irritada, mal humorada e todas aquelas coisas.

Suspirou, tirando os coturnos e a calça jeans negra que vestia enquanto ainda observava o lugar e se xingava pela ideia idiota de viajar de carro usando sapatos fechados e calça apertada.

Se jogou na cama de bruços, enterrando o rosto no travesseiro que abraçou com dificuldade, não se incomodando em afastar os cabelos que se espalharam por sua face. Estava quase confortável quando sentiu o colchão afundar e uma mão livrar seu rosto dos fios escuros.

— Você está bem, querida? — Clara perguntou, acariciando suas costas.

— Eu quero voltar para casa — Laura choramingou sem se dar ao trabalho de se virar para olhar a mãe.

— Estamos em casa, Belle — Clara a lembrou, chamando pelo apelido de seu segundo nome com doçura, mas um tom quase angustiado se sobressaindo.

— Até quando? — perguntou, o tom rude aflorando.

— Laura... — Clara a repreendeu.

— Aqui não é nossa casa, mama... — a adolescente se lamentou.

— Casa é onde estão as pessoas que amamos — a mulher disse sem cessar os carinhos — casa é onde está nosso coração.

— Então definitivamente aqui não é minha casa — Laura resmungou sem pensar no que dizia, movendo-se apenas pela raiva, mas corando ao se dar conta de que havia magoado sua mãe sendo que o que disse tinha relação somente com metade do que ela falou.

Clara suspirou exaustivamente.

— Laura, por favor...

—Desculpe. Não quis dizer que não amo vocês, porque amo — corrigiu — quis dizer que meu coração não está aqui. Nunca vai estar. Eu quero ir para casa.

— Estamos fazendo de tudo, eu juro, querida — Clara murmurou, mesmo que Laura não tivesse ideia da dimensão de tudo aquilo.

— Eu sei, mamãe... Desculpe.

— Apenas nos dê uma chance, por favor — pediu.

Laura torceu o lábio, mas soltou toda a respiração de seus pulmões antes de se pronunciar a favor da mãe, mesmo que contrariada.

— Tudo bem — murmurou com uma infelicidade óbvia.

— Vai dar certo, eu prometo — Clara disse em uma tentativa quase desesperada em diminuir a tristeza da filha.

E talvez também fosse um desejo pessoal dela.

— Tudo bem, mamãe — murmurou, finalmente erguendo os olhos cinzentos para vê-la.

Clara viu que não estava tudo bem, mas sorriu por seu visível esforço e beijou os cabelos revoltos da filha mais velha antes de se levantar.

— O jantar sai em meia hora — avisou, se preparando para sair.

— Pizza? — a adolescente perguntou, sorrindo pequeno e esperançosamente.

— E existe outra maneira de estrear uma casa? — Clara perguntou, seu riso baixo atraindo o da filha — tome seu tempo, mas em meia hora o entregador deve chegar.

Laura murmurou um “tudo bem” antes de ser deixada sozinha.

Gemeu, espreguiçando-se e levantando da cama.

Quem quer que tivesse arrumado suas coisas no quarto estava de parabéns e tinha toda a compaixão de Laura pelo trabalho inútil, uma vez que em questão de tempos o cômodo estaria virado de cabeça para baixo.

Achou um shortinho azul de flanela que gostava muito na terceira gaveta e o vestiu, apenas para não andar de roupas íntimas pela casa.

Olhou pela janela enquanto rebolava para se encaixar na peça de roupa. Ainda era dia, mas estava muito perto de escurecer. Estavam em plena lua cheia e isso deixaria a paisagem em sua janela digna de um quadro.

Onde estava sua câmera? Tinha que estar pronta para um registro à meia noite da paisagem perfeita.

A lua, os pinheiros, as estrelas que brilhavam mais naquele lado afastado das luzes da cidade grande. Até mesmo a pilha de lenha mais abaixo a ajudava a criar um cenário digno de livros.

Laura podia se imaginar suspirando, debruçada na janela, apaixonada pelo garoto ou pela garota que julgava ser a pessoa perfeita. Podia ver essa pessoa passar pela rua ao se declinar um pouco e virar o rosto para a direita e ele ou ela acenaria e seu coração bateria disparado. Logo ouviria a campainha tocar e correria escada abaixo para encontros perfeitos, então, teria seu coração partido e choraria sob a luz pálida da lua, também debruçada sobre a janela no mesmo cenário que havia considerado ser perfeitamente romântico relembrando momentos que julgava serem os melhores de sua vida.

Isso aconteceria umas duas ou três vezes até irem embora novamente e ela partir o coração de alguém em uma despedida mórbida e úmida.

Nossa, isso era específico demais, quase como se já tivesse acontecido.

Bom, tanto faz.

A jovem olhou para a esquerda e conseguiu visualizar o pico azul de montanhas acima das árvores numa extensão ainda mais cinematográfica. Podia entender o que levou seus pais a lhe darem aquele quarto. A vista era perfeita, consideravelmente longe do mato e cheia o bastante de imagens bonitas e interessantes.

Quase, mas apenas quase, se sentiu tentada a gostar do lugar.

Laura coçou uma espinha que surgia próxima ao seu cabelo no lado direito de seu rosto, odiando novamente ter dezesseis anos apenas por ter dezesseis anos.

Dizem que era a idade onde tudo acontece, além de aparentemente ser a idade favorita de escritores de livros juvenis, mas nada acontecia na vida de Laura além de muita mudança indesejada e sentimentos de raiva e revolta.

Passou no banheiro. Não houve nenhum esforço para não se olhar no espelho. Sabia que seu cabelo estava frisado, seu rosto ainda mais pálido pelo efeito do ambiente, sua pele amassada de tédio e cansaço, algumas espinhas contornando a mandíbula, olhos prateados um tanto mortos sobre uma bolsa negra de noites mal dormidas em torno de livros e séries e a expressão de quem não aguenta mais a vida.

Típica adolescente. Ela sabia disso.

E apesar de tudo, era bonita. Mal humorada e intimidante, mas bonita.

Laura enrolou o quanto pode até a hora do jantar, se ocupando de memorizar cada canto de seu quarto e só desceu quando ouviu a campainha anunciar a chegada da pizza.

Edward e Beatrice debatiam animadamente sobre a escola, porque para ambos começar tudo de novo ainda tinha alguma graça.

Beatrice estava com um pé na adolescência e outro na infância. Tudo ainda era muito interessante. Podia fazer novas amigas, fofocar sobre novos assuntos e se gabar dos lugares onde morou, se tornando interessante para ao menos oitenta por cento dos colegas.

Edward, aos quatorze, se achava o homem mais foda do mundo, então para ele tudo bem, viriam garotas novas, amigos novos, atividades novas. Tudo muito interessante.

E Laura se limitou a revirar os olhos e cutucar sua fatia de pizza a falar sobre as aulas, porque estar no ensino médio não era nada estimulante. Era como estar condenada a vagar pelada eternamente no inferno enquanto tudo pega fogo e a fumaça explodia seu cérebro, e agora que precisaria começar toda uma vida com hábitos novos e vendo pessoas novas, não poderia estar mais desanimada para começar.

Seria como precisar correr nesse inferno, voltando para a linha de largada antes mesmo de chegar no meio do caminho.

Como de praxe, seus irmãos a ignoraram e continuaram a tagarelar, a deixando em silêncio refletindo que até que a pizza não era ruim, mas o refrigerante estava quente.

Era um daqueles dias em que, apesar de ter desejado a pizza e seus olhos terem brilhado por ela, seu apetite simplesmente tinha evaporado.

Laura era assim, ora devorava duas pizzas tamanho família sozinha, ora mal tocava em sua primeira fatia. Foi abandonando seu pedaço pela metade que pediu licença aos pais para se retirar e se enterrou no quarto.

Tomou o celular em mãos, mas não tinha com quem conversar, portanto apenas o largou novamente e tirou o short. Ponderou em manter a blusa, mas sentia-se muito mais confortável dormindo sem nada. Havia visto na internet conselhos médicos dizendo que era saudável deixar o corpo respirar e a nudez noturna se tornou um hábito.

Estava tão acostumada que sentia um grande incômodo ao tentar dormir vestida. Por ela não se vestia nem mesmo durante o dia, mas aí seria estranho com tanta gente ao redor.

Deitada na cama, enterrada embaixo das cobertas, Laura olhou novamente o celular tão parado com algum lamento. Não se lembrava de em algum momento ter sido boa em interagir, mas sua solidão era compensada pelo clima quente que a permitia ir à praia.

Algumas vezes surgiam poucos amigos temporários, porque sempre acabavam se esquecendo de sua existência devido ao mal humor que já devia fazer parte de sua pele.

Sabia que era alguém difícil de manter por perto com um humor tão chato e instável, em sua maioria ruim. Nunca se incomodou realmente com isso, mas nas vezes em que parou para pensar, atribuiu a coisa aos pais e todas as vezes que eles a arrancaram pela raiz como se pudesse se adaptar a qualquer solo, até que suas folhas murchassem por falta da estabilidade.

Mas do que realmente sentia falta era do clima e ambiente. Érica, uma de suas últimas colegas mais próximas, costumava dizer que Laura funcionava a base de energia solar e ela concordava piamente com isso.

Sua energia caía demais em um dia ruim.

Suspirou, pensando em como poderia viver ali, afastada de tudo o que lhe fazia bem. Sua mãe estava certa em dizer que a cidade grande a fazia adoecer, mas em sua concepção, isso seria bem resolvido com uma casa de praia.

Sempre vendiam tudo e deixavam qualquer coisa para trás. Poderiam fazer isso, tinha certeza.

Então por que diabos nunca tentavam isso?

Frustrada, Laura decidiu que era melhor tentar dormir e fingir que tudo aquilo era apenas um pesadelo. Não estava realmente ali.

Fechou os olhos e tentou se concentrar em sua respiração e não em seus pensamentos disparados e revoltados que de certa forma a incomodavam para tentar chegar ao sono, mas haviam todos esses barulhos de natureza ao seu redor.

Corujas, outros pássaros noturnos, insetos, um lobo irritante uivando ao longe como em um grande evento idiota. Tudo conspirando e a deixando ainda mais irritada.

Grunhiu, o rosto enterrado no travesseiro.

— Cale a boca! — implorou, erguendo a cabeça de súbito ao se virar e batendo o cocuruto na parede.

Gemeu de dor, choramingando consigo até o momento em que perdeu a consciência e mergulhou em seus sonhos, não sabendo dizer se o lobo havia se calado ou se simplesmente havia parado de prestar atenção desse irritante detalhe.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo