Capítulo 2

“Os nossos maiores problemas

não estão nos obstáculos do caminho,

mas na escolha da direção errada.”

Augusto Cury

           

           ― Ponto final rapaz. Como você conseguiu entrar aqui?

            Nico acordou assustado com a voz rouca do motorista.

            ― Sai rápido antes que eu chame a polícia. Assim eu perco meu emprego. Anda! Sai logo.

            Nico, ainda tonto, levantou-se da poltrona de sobressalto, saiu correndo pelo ônibus esbarrando nas pessoas que desciam. Correu até perceber que estava longe o suficiente. Parou e respirou, aliviado. Olhou em volta e começou a vagar pela rodoviária. De repente percebeu que não sabia onde estava. Estava perdido. Entrou no ônibus tão rápido para não ser visto, que nem pensou em olhar o letreiro com o nome da cidade. Será que ainda estava no Espírito Santo? Não sabia quanto tempo esteve dormindo. Jamais havia saído de perto de Voinha. Sentiu-se perdido e abandonado. Olhou desorientado para os lados e viu um homem corpulento, de barba rude, sentado em um banco. Aproximou-se dele e perguntou:

            ― Moço, que lugar é esse?

            ― Aqui é a rodoviária Novo Rio.

            ― Novo Rio? Onde fica isso?

            ― No Rio de Janeiro, ora essa. Onde mais poderia ser? Você está perdido, garoto? Cadê sua mãe? ― indagou o homem desconfiado.

            Nico deixou-o falando sozinho e saiu apressado. Rio de Janeiro? Ele não acreditava que tinha ido tão longe. Não conhecia ninguém ali. Não devia ter saído correndo de casa, mas o medo de ser levado e a lembrança de Voinha morta em cima da cama foi maior. Ele só pensava em fugir. Não viveria trancado em um orfanato. Sempre foi acostumado a andar livre pelas ruas de Redenção. Não conseguia aceitar a ideia de ficar preso com várias pessoas lhe dando ordens. Sabia bem como funcionava um orfanato, pois já havia escutado várias histórias de meninos que perderam a família e foram levados para lá. Eles ficavam anos esperando por alguma doce alma que viesse adotá-los. Com o tempo cresciam e eram jogados na rua para se virarem sozinhos. Não, ele não seria um deles. Ele não ia voltar.

            Totalmente desnorteado e sem saber para aonde ir, Nico sentou em um banco e ficou observando o movimento. O clima do local era de agitação. As pessoas andavam apressadas para todos os lados, carregadas de malas e bolsas, indo e vindo. Um trânsito frenético de olhares vazios. Um burburinho de frases desconexas.  As pessoas mal se olhavam. Nico sentiu que poderia gritar bem alto e mesmo assim, não seria notado. Uma sensação de vazio invadiu seu peito.

            As lágrimas e a tristeza começaram a dar lugar a uma enorme dor no estômago. Estava há horas sem comer. Saiu correndo e não teve tempo de pegar roupas, nem dinheiro. Agora não tinha como comprar nem um pedaço de pão. Sentindo-se desanimado, levantou e procurou a saída. Um lampejo ofuscante de luz o fez levar o braço em direção aos olhos e ele se assustou com a multidão de pessoas que entravam e saíam de carros e táxis. Seu olhar recaiu em um amontoado de barraquinhas de lanches do outro lado da rua. Atravessou e parou em frente a uma bandeja de salgados. O cheiro forte e intenso cercou-o, vindo de toda parte. Uma mistura de perfume de batatas fritas e sanduíches, com o adocicado bálsamo de pipoca e churros. Nico fechou os olhos e sentiu a boca encher de água. Podia sentir o gosto da batata se desmanchando em sua boca, assim como podia ouvir o barulho da pipoca sendo mastigada em sua mandíbula. Então as lembranças invadiram sua mente com a mesma rapidez que o cheiro da coxinha penetrou em suas narinas. Lembrou-se de Voinha preparando o almoço.

            Voinha eu não quero cenoura. E essa coisa verde e gosmenta aí no meio. Tira isso, eu não vou comer.

            Vai comer sim garoto! Prestenção! Ocê sabe quantas crianças não tem o que comer. Como elas gostariam de ter um prato cheinho como esse.

            O dono da barraca percebeu a presença de Nico e gritou:

            ― É dois reais moleque. Vai querer?

            Nico se assustou e abriu os olhos. A nuvem de lembranças se dissipou como a fumaça do caldeirão de cachorro-quente. Os olhos se encheram de lágrimas. Naquele momento daria tudo por um prato cheio de cenouras e espinafre.

            O homem insistiu:

            ― Vai querer ou não?

            Nico meneou negativamente a cabeça e já ia se afastando, desolado, quando um rapaz de mais ou menos vinte anos o chamou. Ele era baixinho e forte, tinha a pele morena, queimada pelo sol. Vestia uma bermuda jeans e uma jaqueta de couro marrom com emblemas na manga.

            ― Chega aí sangue bom! Tô vendo que você tá sem dinheiro. Tá com fome?

            Nico balançou afirmativamente a cabeça.

            ― Calma aí! ― disse o rapaz, aproximando-se da barraca de lanches. ― Chefe! Me dá essa coxinha aqui e um guaraná. E prepara três cachorros pra viagem.

Nico olhava fixamente para a jaqueta do rapaz. Os emblemas dourados brilhavam refletindo as luzes do local. Nico nunca tinha visto uma jaqueta tão bonita e por alguns momentos esqueceu a dor no estômago. O rapaz interrompeu seus pensamentos entregando-lhe o salgado e a bebida. Nico devorou a coxinha como se não comesse há anos. Sentia o sabor de cada ingrediente com tamanha satisfação que chegou a suspirar.

            ― Calma moleque! Assim tu vai engasgar ― divertiu-se o rapaz, enquanto pegava os três cachorros-quentes.

            Assim que Nico acabou de comer o rapaz se apresentou.

            ― Meu nome é Deco. Na verdade é Anderson, mas todo mundo me chama de Deco. E o teu?

            ― Nico ― respondeu secamente.

            ― Só Nico?

            ― Todo mundo me chama de Nico.

            Imediatamente Nico lembrou-se que o rapaz acabara de salvar seu estômago da morte iminente e sentiu-se profundamente constrangido.

            ― Desculpa, eu nem te agradeci. Obrigado pelo salgado, eu estava com muita fome.

            ― Tranquilo Nico! Diz aí, que tu tá fazendo aqui? Tu não é da rua. Tá muito arrumado pra ser pivete. Cadê tua mãe?

            ― Eu não tenho mãe. Não tenho ninguém! ― resmungou. Ele não queria contar sua história. Falar de Voinha só fazia seu coração doer ainda mais.

            ― Tudo bem, tudo bem, não precisa ficar bolado. Já entendi. Tu fugiu de casa, né? Conheço um montão de moleque assim. Quantos anos você tem?

            ― Dezesseis ― respondeu Nico, ainda aborrecido com a pergunta sobre sua mãe.

            ― Você tem pra aonde ir?

            Nico lembrou que não conhecia ninguém na cidade. Estava perdido, sem dinheiro e não tinha lugar para dormir. Deco nem esperou a resposta e já foi convidando:

            ― Se tu quiser pode dormir lá no meu cafofo. É perto daqui. Vou te mostrar a galera que mora lá comigo. Tu parece manero, vou te dar uma força. Vambora! ― convidou, colocando a mão sobre o ombro do garoto.

            Nico ficou apreensivo e esquivou-se. O rapaz sorriu e deu de ombros.

            ― Se tu tem lugar melhor para ir, vai nessa. Boa sorte irmão.

            Deco virou-se e começou a caminhar. Nico olhou em volta, já havia anoitecido e ele não tinha lugar para dormir. A rua lhe dava medo. Olhou por sobre o ombro e viu o rapaz se distanciando. Deco caminhava a passos leves e saltitantes, um jeito de andar gingado, bem malandro, como se estivesse dançando. Nico estava desconfiado, mas percebeu que não havia muitas pessoas ali interessadas em ajudar um garoto perdido, então decidiu seguir o rapaz. Se visse algo de estranho, sairia correndo. Ele deu um passo à frente e foi em direção a Deco gritando:

            ― Espera! Eu vou com você.

            Deco parou e quando Nico o alcançou ele sorriu.

            ― Não se preocupe, eu não vou te sequestrar. Além disso, acho que não teria como pedir o seu resgate mesmo, já que tu não tem família ― ironizou Deco, dando um tapinha nas costas do garoto.

            Nico não achou graça e limitou-se a caminhar de cabeça baixa. Deco também resolveu caminhar em silêncio. Os dois atravessaram a rua. A noite estava agradável, nem quente, nem frio demais. Um clima típico da primavera carioca. Deco andava sempre à frente. Nico preferiu manter-se distante, a fim de poder escapar, caso fosse necessário. Ainda estava meio cético quanto às boas intenções do rapaz.  Deco percebeu o receio e respeitou a distância entre os dois.

            Enquanto caminhava, Nico observava as pessoas amontoadas nos pontos de ônibus. Era noite de quinta-feira e as ruas da cidade estavam movimentadas. As pessoas voltavam de seus locais de trabalho, cansadas e apressadas. Nico ficou surpreso com a quantidade de carros e ônibus parados no engarrafamento e todo aquele barulho de buzinas e motores ligados começou a incomodá-lo. Caminharam tanto, que Nico começou a se perguntar quanto ainda faltava para chegar. Como se pudesse ler os pensamentos do garoto, Deco disse:

            ― Estamos chegando. Só mais umas ruas.

            Quando chegaram a uma esquina, Deco apontou para um local debaixo de um viaduto e disse com naturalidade:

            ― Chegamos. Lar doce lar.

            A testa de Nico franziu em um gesto involuntário e Deco sorriu.

            ― Bom, não é um hotel cinco estrelas, mas é bem melhor do que dormir na calçada daquela rodoviária.

            Nico não respondeu. Atravessaram a rua e aproximaram-se do viaduto. O local era sujo e úmido. O cheiro forte de urina seca provocou náuseas em Nico. Havia lixo e papéis por todos os lados. Quando chegaram foram recebidos por dois garotos. Um deles devia ter mais ou menos treze anos, era magérrimo e tinha os cabelos loiros. O outro era mais velho, aparentava uns dezoito anos, tinha a pele negra e usava um boné azul. Aproximou-se com cara de poucos amigos e indagou:

            ― Coé da parada Deco? Quem é o moleque?

            ― Fica frio Maneco. Esse aqui é o Nico. Ele vai ficar uns tempos aqui com a gente. Tranquilo?

            ― Tranquilo Deco. ― O garoto mais novo interrompeu passando o braço pelos ombros de Nico. ― Beleza Nico? Eu sou o Ricardinho. Aí gostei do teu tênis. Irado!

            Ricardinho prosseguiu como um verdadeiro anfitrião, tentando amenizar o clima:

            ― Esse mané aqui é o Maneco. Entendeu né? Mané, Maneco.

            ― Mané? Vou te mostrar quem é Mané ― rosnou Maneco, empurrando o companheiro.

            Deco riu e colocou a mão sobre o ombro de Nico.

            ― Liga não Nico! Ele é neura assim mesmo. Chega mais que eu vou te mostrar nossa mansão.

            Ele levou Nico até um beco, atrás de uma pilastra. Papelão, jornais e cobertores velhos improvisavam as camas.

            ― Aqui embaixo é onde a gente dorme. Tudo que tem aqui a gente consegue pedindo na rua. Outras a gente compra quando consegue dinheiro.

            Nico olhava espantado para o lugar. Havia caixotes de madeira, baldes velhos e sacos de lixo por todo o canto. Enquanto Deco falava, o olhar de Nico recaiu sobre uma lata de tinta enferrujada que servia de fogão e aquecia uma panela com comida. Os dois garotos, que a esta altura já brincavam e riam um do outro, se aproximaram. Ricardinho sentou em um caixote de madeira enquanto Maneco foi mexer a comida que fumegava na panela. Ele era o cozinheiro do grupo e apesar do cheiro fétido do local, a comida não parecia tão mal assim.

            ― Não fica bolado não. Aqui ninguém passa fome ― disse Deco enquanto abria a sacola com os cachorros-quentes. Entregou um para Ricardinho, um para Maneco e o outro para Nico. Depois pegou um prato de plástico, colocou um pouco da comida que o garoto havia preparado e levou a colher a boca. ― Come aí Nico, amanhã vou te mostrar como a gente se vira no sinal.

            A fome de Nico era tanta que o cheiro desagradável do local não o impediu de devorar o cachorro-quente. A coxinha da barraquinha de lanches não foi suficiente para acalmar a fera que habitava o seu estômago. Depois de se alimentarem os meninos foram deitar em suas camas improvisadas com papelão e lençóis velhos. Deco entregou a Nico alguns jornais e um lençol fino e surrado. Nico deitou e tentou espantar o frio. O lençol tinha um odor muito desagradável, além disso, o chão duro e o frio úmido da madrugada o impediam de relaxar. Apertou os maxilares numa contração dolorosa e começou a tremer. Com medo de fechar os olhos, o pavor tomou conta de seu corpo. A noite parecia muito assustadora.

            Depois de alguns minutos, acalmou-se e tentou imaginar que estava em Redenção. Imaginou sua casa, seu pequeno quarto de paredes azuis, sua cama. Sentiu o doce perfume dos lençóis lavados com amaciante floral. Uma gota brilhante de lágrima ficou presa no canto do olho quando, enfim, ele conseguiu adormecer. Sonhou com Voinha e sentiu-se protegido e acalentado. Ele estava deitado em sua cama quentinha e a avó vinha lhe dar um beijo, como fazia todas as noites. Beijou sua testa e sussurrou em seu ouvido:

            ― Dorme com os anjos, meu raio de sol.

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