Capítulo 3

“Só um e apertado

é o caminho da virtude.”

Plauto

            Na manhã seguinte, Nico acordou, mas não abriu os olhos. Desejou de todo o coração que ao abri-los estivesse em Redenção, em sua casa amarela de janelas de madeira, em sua cama de lençóis perfumados lavados com amaciante floral. Mas a buzina de um carro interrompeu bruscamente seus pensamentos, obrigando-o a abrir os olhos e encarar a realidade lancinante. Levantou com sacrifício, estava com uma terrível dor no corpo. Seus ossos pareciam moídos. Esfregou os olhos, procurou em volta e não encontrou Deco nem os outros garotos. Sua barriga doía e revirava. A fera que habitava o seu estômago estava há muito tempo sem fazer uma refeição completa.

            Desta vez, com a luz do dia, conseguiu enxergar melhor o local. Andou um pouco para esticar as pernas e aliviar a dor muscular. O viaduto ficava em uma área com intenso movimento. Havia carros estacionados a poucos metros e mais à frente pessoas vendiam frutas, legumes e bebidas. Tinha até um barzinho feito de placas de madeira com uma mesa de sinuca, onde alguns homens jogavam animadamente.

            Nico viu quando Deco voltou com uma sacola de mercado em uma das mãos. Na outra trazia um copo e um pedaço de sanduíche.

            ― Toma aí Nico. Come que o dia vai ser pauleira. Vou te levar pro batente ― ordenou entregando o lanche.

            Nico sentou no meio-fio e bebericou um gole do café. Ele sentiu as primeiras ondas de calor em seu rosto. Era final de setembro e durante o dia o clima ficava quente e abafado. Deco sentou ao seu lado, abriu a sacola de mercado e retirou uma caixa de fósforos, depois acendeu um cigarro.

            ― E os outros? ― perguntou Nico, enquanto mordia um pedaço do sanduíche de mortadela.

            ― Já tão lá no sinal. Essa semana o movimento tá bom e se eles não chegarem cedo o ponto fica cheio de pivetes.

            Nico devorou o lanche em poucos minutos. Deco levantou, deu uma última tragada e jogou fora a bituca. Os dois percorreram as ruas do bairro e Deco seguia dando todas as informações, como se fosse um guia turístico. Nico estava fascinado com a altura dos prédios e o número de pessoas que andavam pelas ruas. Um corre-corre onde ninguém se falava. Corpos apressados desviando de um possível confronto. O garoto estava boquiaberto. Em Redenção a vida era muito tranquila, as pessoas se conheciam pelo nome, frequentavam a casa um do outro. Havia poucos apartamentos e eles não eram tão altos como aqueles.

            Os dois chegaram a um cruzamento onde alguns meninos lavavam os pára-brisas dos carros. Entre eles Ricardinho e Maneco. Nico ficou observando a movimentação dos garotos.

            ― Toma aí Nico! ― Deco abriu o saco de mercado e tirou um rodo que tinha uma esponja de um lado e uma borracha do outro, também entregou a Nico uma flanela e uma garrafa de refrigerante com um líquido azul dentro. ― Se liga! Quando o sinal parar, tu vai até um carro e pede pra lavar, aí joga o sabão no vidro, passa a esponja que fica deste lado do rodo. Vira, tira o sabão e depois passa a flanela. É fácil. Depois é só tu pedir um trocado. Entendeu?

            Nico sentiu-se desconfortável com aquela situação. Estava acostumado a ajudar Voinha nos afazeres de casa, mas sentia-se estranho no meio daqueles carros. Sentiu vergonha, mas precisava de dinheiro. Não podia morar no cafofo sem ajudar como os outros.

            O sinal fechou e Nico foi até o primeiro carro. O motorista acenou que não queria e rapidamente fechou o vidro. Nico hesitou e olhou para Deco que, imediatamente, fez sinal para que ele fosse para outro carro. O garoto pediu e desta vez recebeu uma resposta afirmativa. Sorriu jogando o sabão no vidro, passou o rodo e em seguida a flanela. Recebeu o trocado e quando o sinal abriu teve que correr para não ser atropelado pelos carros que buzinavam. Deco se aproximou comemorando:

            ― Muito bom, mas tem que ser mais rápido da próxima vez. Se o cara disser que não quer já passa pra outro ― explicou Deco batendo nas costas de Nico. ― Quanto ele te deu?

            Nico abriu a mão mostrando uma moeda de cinquenta centavos.

            ― Muito bom pra primeira vez. Tem uns manés que só dão cinco centavos.

            O sinal fechou de novo e lá foi Nico lavar mais um carro. O garoto estava com sorte e conseguia limpar quase todos os carros que abordava. Por conta disso, Maneco se irritou. O dia não estava bom para ele, então reclamou com Deco.

            ― Pô Deco! Tu trouxe esse mané pro nosso ponto, olha só o que eu arrumei até agora ― mostrou a mão com algumas moedas. ― O mané tá tirando nossa freguesia.

            ― Coé Maneco! Tá de palhaçada. Tem carro pra todo mundo. O cara só tá com sorte.

            ― Assim não dá Deco. A gente chegou aqui primeiro. O mané tá pegando tudo.

            ― Pô cara! Esqueceu quando tu chegô aqui. A galera te deu a maior moral. Tamo junto nessa mermão ― bronqueou Deco.

            Maneco ainda estava revoltado, mas não queria se indispor com Deco, afinal ele era o chefe do cafofo.

            A manhã passou ligeira. Nico estava começando a dominar os apetrechos de trabalho quando Deco o chamou. Ele acabara de receber uma nota de dois reais.

            ― Nico chega aí! Vambora comer alguma coisa.

            ― Olha só! ― Nico tirou do bolso o resultado daquela manhã de trabalho.

            ― Vamos ver. Conta aí.

            ― Dezoito reais ― comemorou Nico.

            ― Já vi que tu é bom nas contas.

            ― Eu era o melhor aluno de matemática da minha turma ― comentou sorrindo.

            Desde a morte de Voinha, era a primeira vez que ele sorria. Uma brisa suave acariciou levemente suas feridas. Sentiu saudades. Percebeu que estava muito longe da escola. Logo ele que adorava estudar. Era um dos melhores alunos do colégio. Voinha tinha um orgulho enorme do neto e sempre recebia elogios das professoras. Nico ficou calado. Deco percebeu sua tristeza e mudou de assunto.

            ― Aí, vamos encher a pança. Hoje vamos ter banquete de rei e o Nico vai bancar ― convidou abraçando os garotos.

            Foram até um boteco e compraram três quentinhas. No cafofo comeram animadamente. Para Nico foi um banquete que acalmou a fera insaciável que habitava o seu estômago.

            Depois do almoço, deitaram para descansar. Nico tentou dormir, mas o ruído dos carros o incomodava e ele se levantou. Viu Deco sentado em um caixote de madeira, fumando um cigarro. Percebeu que era um baseado. Sabia muito bem o que era aquilo, pois tinha assistido a várias palestras sobre drogas na escola. Aproximou-se do rapaz.

            ― É difícil dormir com todo esse movimento, né?― perguntou Deco depois de uma tragada. ― Só isso aqui pra fazer a gente esquecer os problemas da vida. Vai aí?

            ― Não obrigado. ― Nico balançou a cabeça negativamente enquanto sentava em um caixote ao lado dele. ― Como você veio para aqui, Deco? Cadê sua família?

            Deco fez uma pausa. Sua voz ficou ligeiramente embargada.

            ― É uma parada meio complicada ― Deco baixou a cabeça e respirou fundo. Olhos empapados de melancolia.

            ― Desculpa, eu não queria...

            ― Tudo bem cara! Já me acostumei.

            O rapaz fez uma nova pausa para dar uma tragada no baseado. Então prosseguiu:

            ― Eu morava com minha mãe e meus dois irmãos. Meu pai bebia todas na rua e quando voltava espancava geral. Um dia ele me bateu tanto que eu fui parar no hospital. Eu só tinha onze anos. Foi então que saí de casa.

            ― E você nunca mais viu sua mãe? ― perguntou Nico, abismado.

            ― Eu voltei lá depois de alguns anos. A vizinha falou que minha mãe fugiu com um dos meus irmãos depois que meu pai matou o outro. ― Deco levantou a cabeça e arregalou os olhos vermelhos por causa da droga. Tentou impedir que as lágrimas caíssem. ― Parece que ele foi preso, mas depois fugiu. Por isso minha mãe saiu de casa sem dizer pra onde ia.

            ― Cara, não sei nem o que te dizer. ― Nico ficou sem graça. Ele achava que seus problemas eram terríveis, mas encontrou alguém com muito mais sofrimento.

            ― Eu sinto saudade dela. Ela era tão carinhosa comigo. Toda noite contava umas histórias pra eu dormir. Também sinto saudades dos meus irmãos ― Deco cerrou os olhos, respirou profundamente, depois num ímpeto de raiva levantou e jogou a bituca do baseado fora. ― Às vezes me arrependo de ter fugido.  Se eu estivesse lá, talvez meu irmão não tivesse morrido.

            Nico levantou e colocou a mão sobre o ombro do rapaz.

            ― Se você não tivesse fugido talvez estivesse morto e não poderia me ajudar agora.

            ― É! Talvez ― murmurou, batendo com a palma da mão no peito do garoto. ― Vou dar um rolé. Descansa aí Nico que amanhã tem batente.

           

Os dias foram passando e Nico ganhava cada vez mais dinheiro no sinal. Ele conseguiu superar a timidez inicial e sempre trabalhava com alegria, cantarolando. Tratava os motoristas com educação, dava bom dia, agradecia e desejava felicidades. Com tanta gentileza e bom humor, Nico agradava as pessoas e sempre conseguia boas gorjetas. Ao final de cada jornada de trabalho, comprava comida para todos do grupo, e com isso foi conquistando também a simpatia de Maneco. Ele conseguiu comprar objetos para seu uso pessoal, como escova de dente, creme dental, pente de cabelo e um cobertor. À noite todos tomavam banho e lavavam suas roupas no chafariz da Candelária.

            Na hora de dormir, toda aquela alegria se transformava em melancolia. Nico enfrentava as madrugadas longas e sombrias sem pregar o olho. E quando, por sorte, o sono vinha, trazia também delírios de breves instantes, de gestos perdidos, de vôos encantados no céu cor de safira. Uma pipa cortando as nuvens, uma risada com sotaque mineiro e perfume de jasmim, olhos tristes e um raio de sol que invadia as frestas da janela. As dolorosas lembranças insistiam em revisitá-lo, como um túmulo cravado no mais profundo lugar de sua alma e que era aberto, vez ou outra, liberando fantasmas assustadores. Uma tristeza profunda invadia o seu coração e o menino chorava encolhido em seu cobertor.

            ― Nico! Tá dormindo? ― perguntou Deco, sentando ao lado do amigo.

            ― Tô sem sono.

            ― Até hoje tu não me contou o que te deixa caído assim. Durante o dia tu fica animadão, chega de noite cai nesse bode. É saudade de casa?

            ― Eu não tenho mais casa ― respondeu enquanto sentava e ajeitava o cobertor. ― Minha avó morreu e eu não tenho mais ninguém.

            ― Nem mãe?

            ― Não conheci minha mãe. Ela morreu quando eu nasci. ― Justificou Nico, lembrando-se da recomendação de seu avô ― Fui criado pelos meus avós. Depois que meu avô morreu eu fiquei cuidando da Voinha.

            ― Voinha?

            ― É como eu chamava minha avó. Ela era tudo que eu tinha ― lamentou-se com os olhos cheios de lágrimas. ― Quando ela morreu quiseram me levar para um orfanato. Aí eu tive que fugir.

            Deco tirou um baseado do bolso, acendeu e ofereceu ao amigo. Ele recusou.

            ― Vai fera! Tu vai se sentir melhor. É bom pra esquecer as neuras e ajuda a dormir.

            ― Obrigado, mas não quero.

            ― Valeu então. Quando tiver afim é só pedir.

            Nico ficou olhando enquanto Deco se afastava para sentar no caixote de madeira. Ele vestia a jaqueta de couro marrom com emblemas na manga. Ele sempre a usava, mesmo quando estava calor. E sempre fumava naquele local. Ficava sentado olhando o movimento dos carros. Pensativo, nostálgico. De repente ficava agitado, andando de um lado para o outro, falando sozinho e cantando. Nico teve a curiosidade de perguntar onde ele conseguia a droga. Deco sempre saia na parte da tarde e só voltava à noitinha. Nico sabia que ele não trabalhava, então por onde ele andava durante o dia? Como ele conseguia dinheiro para comprar a droga? As perguntas surgiam em sua mente e ele ficava cada vez mais confuso. Ficou observando enquanto Deco soltava a fumaça no ar. Esfregou os olhos, deitou e tentou tirar aqueles pensamentos de sua mente. Gostava de Deco. Uma mútua simpatia evoluiu desde o dia em que se encontraram na Rodoviária. Ele era um cara tranquilo, alegre, sempre tinha uma piada na ponta da língua e cuidava dos garotos como se fosse o pai deles.

           Nico fechou os olhos. Em horas escuras e de silêncio, revisitava seu túmulo. Questionava-se sobre o que faria de sua vida de agora em diante. Sentia-se angustiado, sem saber o que esperar. Não estava acostumado a viver sem ter expectativas. O sono finalmente venceu. Naquela noite dormiu aos sobressaltos. A imagem de Voinha morta continuava a atormentá-lo, como um fantasma que aparece todas as noites para assombrá-lo e colocar o dedo em suas feridas. Sonhou que estava perdido em uma linha de trem. Caminhava perdido, sem rumo. Olhava em volta e não encontrava Deco nem os garotos. Gritava ora por Voinha, ora por Deco. Começou a correr pelos trilhos e de repente viu um corpo caído no chão. Aproximou-se com receio e se abaixou para tocá-lo. Ao virá-lo percebeu que era o seu próprio corpo. Uma poça de sangue escorria pelo chão e Nico gritou para que ele mesmo acordasse.

            ― Acorda, acorda.

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