“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho...”
Carlos Drummond de Andrade― Acorda, acorda, madame!
Nico acordou assustado com uma voz forte e sarcástica. Abriu os olhos e viu três homens em cima de Deco. Um deles era negro, alto, gordo, de cabeça raspada e com duas tatuagens enormes, uma em cada braço. Nico fingiu que estava dormindo, mas conseguiu ver quando Deco se levantou e apertou a mão do homem.
― E aí Deco! Faz uma semana que tu não aparece. Arrumou outro fornecedor?
― Não Carlão, que isso cara! Tu sabe que tamo junto nessa ― justificou Deco, enquanto vestia uma camiseta. ― É que tô preparando um lance novo aí. Arrumei uma fonte num colégio de bacana lá na Zona Sul. Tô fazendo o contato.
― Muito bom! Esses bacanas pagam bem. Quando é que vai rolar?
― Acho que já tá tudo no esquema. O problema é gente pra ficar no comando. Eu já tô com três pontos, não dá pra pegar mais um. ― Justificou Deco.
― E esses moleques aí? ― Carlão apontou para os meninos que dormiam sem se incomodar com o barulho. ― Coloca um deles.
― Pô, o Maneco é de maior, presa fácil. O Ricardinho não dá pro lance, já é nóia.
Carlão olhou com cara de desprezo para o garoto que dormia profundamente. Depois viu Nico, encolhido no cobertor e perguntou:
― E o moleque ali? Qual é a dele? Nunca vi aqui.
― Esse é o Nico. Chegou aqui tem umas três semanas. O moleque é esperto, tá ganhando todas no sinal. Eu pensei em colocar ele no esquema. É de menor, não tem família e tá limpo.
Carlão caminhou até Nico e o cutucou com o pé.
O garoto levantou e encenou como se realmente estivesse acordando. Deco fez as apresentações.
― Esse aqui é o Carlão, ele é o chefe do pedaço aqui. Falei de tu pra ele.
― E aí moleque. Nico né? ― perguntou estendendo a mão para o garoto.
― É sim ― respondeu Nico, aceitando o cumprimento. Cada milímetro do seu corpo se arrepiou ao toque do homem. Um flash de luz produziu uma visão momentânea em sua mente. A mesma imagem do sonho. Seu corpo virando e uma poça de sangue escorrendo pelo chão de pedras. Piscou os olhos e largou a mão do homem.
― O Deco falou que tu tá faturando no sinal.
― É. Estou me virando bem. Dá pra ganhar uns trocados ― gaguejou Nico, sentindo uma terrível angústia no peito.
― Tu veio de onde? Esse sotaque não é daqui?
― Do Espírito Santo.
― A avó dele morreu e ele fugiu pra não ir pro orfanato ― interrompeu Deco, vendo que Nico não estava muito à vontade.
― Fala bem, boa aparência...
― E é muito bom nas contas ― continuou Deco.
― É um bom contato pro teu esquema. Leva ele lá na boca pra conhecer a parada ― ordenou Carlão, se afastando e passando o braço pelos ombros de Deco. ― Se liga Deco. Vamô agitar essa parada que tô precisando faturar este mês. Tô contando contigo ― murmurou, batendo no peito do rapaz.
― Falou Carlão. Pode deixar que a gente vai arrebentar.
Carlão e os dois homens entraram no Voyage preto que saiu cantando pneu. Deco caminhou até Nico que ainda estava paralisado.
― Ele gostou de tu. Pra entrar no esquema ele tem que confiar.
Nico balançou a cabeça de um lado para o outro como se tivesse saído de um transe.
― Que esquema é esse? ― perguntou, mas no fundo ele já pressentia que não era boa coisa.
― Vem que vou te contar. Vamos tomar um café.
Os dois foram até uma lanchonete, compraram sanduíches e refrigerantes. Depois sentaram na praça e começaram a comer.
― Cara se liga! Não sei se onde tu morava tinha isso, mas aqui o que manda é essa pedra aqui, tá ligado?
Deco abriu a mão e mostrou duas pedrinhas enroladas em um plástico. Pareciam duas balas. Nico reconheceu, mas perguntou o que era.
― Isso é crack. É a pedra maldita. Neguinho mata a mãe por uma dessa. É o nosso ouro ― informou Deco, olhando para os lados e escondendo rapidamente a pedra no bolso. ― O esquema é o seguinte: a gente faz contato com os playboys e eles compram a pedra pra vender dentro das escolas e das faculdades.
― E onde você consegue as pedras pra vender? ― interrogou Nico, assustado.
― Lá na boca, com o Carlão. Eu vendo pra ele e ganho minha parte, se ligou? ― indagou, bebericando o último gole do refrigerante.
― Ele é o dono da boca?
― Não. Ele é apenas o gerente, o braço direito do chefe. O dono do morro é o Diguinho, mas ninguém sabe onde ele fica.
― E você é... ― Nico não completou a pergunta e Deco entendeu a curiosidade do amigo.
― Pode perguntar. Tu quer saber se eu sô traficante?
Nico balançou a cabeça afirmativamente, sentindo como se tivesse feito a pior pergunta do mundo.
― Digamos que eu sou o intermediário. Bonita essa palavra né? Aprendi na televisão ― ironizou enquanto acendia um cigarro. ― Mas eu não queimo não. Só pego baseado. Essa droga é maldita cara. O primeiro sopro e já era, ela te domina. A parada é doidera mesmo. Neguinho vê até elefante cor-de-rosa.
― E o Carlão usa?
― Claro que não. Nenhum traficante grande usa. Eles sabem que a parada detona em dois tempos. É só para vender Nico. Não vê o Ricardinho? O cara fica na maior larica, desesperado pela pedra. Gasta tudo que ganha no sinal com a maldita. Passa a noite na cracolândia e agora fica lá chapado, dormindo o dia inteiro. Quando ele usa a pedra nem aparece no sinal.
Nico lembrou-se do dia em que viu Ricardinho drogado pela primeira vez. Maneco e ele estavam voltando do sinal quando encontraram o garoto caído no chão com uma ferida enorme na cabeça. Maneco socorreu o rapaz tranquilamente e Nico percebeu que não era a primeira vez que Ricardinho passava mal por causa da droga. Nico só não poderia imaginar que a droga que ele usava era o crack.
― Lá onde eu morava tinha uma cracolândia também. Passou na televisão que o crack tava chegando lá e muitos garotos estavam morrendo ― lembrou Nico, ainda surpreso com a revelação de Deco.
― O bagulho é doidera Nico. Destrói o cara. Vê como o Ricardinho tá seco. O cara fica esculachado. Mas é nosso ganha pão né. É dele que nós tira o sustento.
Levantaram e começaram a caminhar. Nico ficou analisando a última frase de Deco e pensou que deveria haver outra forma de ganhar a vida. Ficar no sinal também não era legal, mas pior ainda era destruir a vida dos outros vendendo drogas.
Deco aproveitou a parada de um ônibus e fez sinal para o motorista. Entraram por trás e sentaram no último banco. Algumas pessoas olhavam desconfiadas para os dois.
― Antes de você chegar tinha o Piaba. Ele era vapor do Carlão, dormia lá no cafofo com a gente. Era um cara cheio de disposição. Passava o dia no contexto e de noite ia pra porta dos bailes pegar umas gatinhas. O cara pegava geral, ninguém sabia que ele morava embaixo do viaduto. Só andava na beca. Um dia experimentou a pedra. Foi a porta pro cara cair. Em pouco tempo ele tava no osso. Não tinha mais disposição pra ficar no sinal e começou a roubar pra comprar a maldita. Fumava o dia todo, o maluco. Foi ele quem deu a primeira pedra pro Ricardinho ― disse, jogando a bituca de cigarro pela janela. ― Chegou um dia que ele não tinha mais grana pra comprar e a gente tinha que esconder tudo que era nosso, senão ele pegava tudo.
― E onde ele está agora? ― perguntou Nico, incomodado com o olhar das pessoas.
― Tá vendo capim nascer pela raiz. Um dia desse ele tava na maior fissura pela pedra. Não tinha grana e já não tinha força para roubar ninguém. Aí ele foi até à boca com uma nota falsa enrolada na mão pra pegar o bagulho. O cara deu a pedra e ele saiu correndo. Quando o cara viu que a nota era falsa correu atrás dele e largou o dedo. Direto na cabeça ― disse o rapaz, simulando a cena com as mãos, como se realmente estivesse atirando em alguém. ― Ele vacilou. Os caras não perdoam, matam fácil.
Nico sentiu um frio na barriga. Pensou em voltar. Seria de longe a atitude mais sensata. Deco percebeu o receio do amigo e procurou tranquilizá-lo.
― Fica frio Nico. Se tu não der mole vai se dar bem. Tu tem jeito pra coisa. A gente vai faturar mermão! ― comemorou, abraçando o amigo.
Nico sentiu um calafrio. Uma voz falava ao seu ouvido que ele deveria voltar. Não podia se envolver com drogas. Pessoas morriam por causa dela, como ele poderia vender isso para alguém. Não era isso que ele sonhava para sua vida.
― Aí piloto! ― Deco fez sinal para descer e os dois saíram do ônibus, para alívio dos passageiros.
Atravessaram a rua e caminharam até a esquina de uma ladeira que subia até o Morro São Miguel. Era um dos mais populosos morros da Zona Sul do Rio de Janeiro. Nico ficou assustado com a quantidade de barracos, parou e puxou o amigo.
― Peraí Deco. Acho que não vou entrar nessa não. Prefiro ficar só no sinal.
― Coé Nico. Tá de caô. Te dei maior força quando tu chegô aqui, agora vai ficar de vacilação ― gritou aborrecido. Deco fazia sinais e movimentava freneticamente os braços. ― O Carlão já tá contando com o esquema cara. E eu confiei em tu. Se eu não te levar lá ele vem em cima de mim.
Nico vacilou, não sabia o que fazer. Se não fosse por Deco, provavelmente estaria jogado em algum beco, morrendo de fome. Embora estivesse assustado, sentia que devia um favor a ele.
― A vida aqui é dura mermão. Se tu não tem proteção já era.
― Tudo bem Deco. Desculpa aí! É que eu não tô acostumado com essas coisas. ― tentou contornar a situação.
― É isso aí choque, assim é que se fala. Pô, já te considero pra caramba. Tu é irmão. Liga não, com o tempo tu acostuma. Vambora!
Os dois subiram a ladeira em direção ao morro. No caminho Nico pensou: Quando chegar lá vou dizer pro Carlão que eu é que não quero entrar no esquema, depois vou embora. Ele não sabia ainda para aonde iria, mas não poderia ficar ali por muito tempo.
Enquanto caminhavam pelas ruas e becos do morro, Nico evitava olhar diretamente para as pessoas. Estava apavorado. Nunca havia entrado em uma favela. Viu homens armados como soldados de guerrilhas.
Deco caminhava naturalmente, parecia que o morro era a extensão de seu cafofo. Cumprimentava os moradores e apresentava Nico aos amigos.
― Coé Deco.
― Fala Pedrera!
― Fala aí Deco? Quem é o cara?
― Coé Bituca, esse aqui é o Nico. Se liga que o Carlão tá colocando o cara no esquema.
― Falou mermão. Tamô junto Nico!
Nico fez um tímido sinal de positivo para o homem que segurava uma arma na mão e um baseado na outra. Era um dos vários soldados de Carlão.
― Sentiu que a parada é bem armada né? Aqui não entra malandro não ― disse enquanto abria o portão que dava para uma casa de dois andares.
O local era simples e a casa parecia a de um morador comum, a não ser pela falta de móveis no interior. Foram recepcionados por dois homens armados. Carlão estava em um dos cômodos e veio encontrá-los na sala.
― Fala aí moleque. Tudo tranquilo?
― Tudo ― respondeu Nico sentindo a mesma angústia que o atormentou no cafofo.
― Sentaí. Vamos bater um papo ― Carlão apontou duas cadeiras à sua frente e sentou. ― Deco já deve ter te adiantado alguma coisa né?
― Falou sim ― gaguejou Nico. ― E é sobre isso que eu...
― Então se liga ― interrompeu Carlão. ― Isso aqui é só pra começar.
Carlão pegou uma mochila, abriu e jogou as pedras sobre a mesa.
― Aqui tem dois quilos. Deco já sabe o valor da pedra e a porcentagem. Te dou até amanhã pra voltar. Vamos ver se tu vai passar no teste.
Enquanto Carlão falava, um homem alto, sem camisa anotava em um caderno o que eles estavam levando. Nico percebeu que ele tinha uma arma na cintura. Logo depois entraram dois homens, cada um segurando um fuzil.
― Nem preciso dizer que tu não me conhece. Se os canas te pegarem, diz que é usuário e que tu roubou a mochila de uma cara na rua. Entendeu?
Nico ficou sem ação e respondeu que sim. Suas pernas tremiam e por mais que ele tentasse disfarçar, Carlão percebeu seu nervosismo.
― Tá sob tua responsa Deco. Se ele vacilar tu paga ― avisou Carlão, colocando a droga na mochila e entregando a Deco.
― Fica tranquilo, o Nico vai se dar bem. Tu sabe que eu só recruto os que eu acho que tem potencial.
Quando os dois saíram da casa, Carlão mandou um dos seus homens segui-los:
― Pepê, segue os caras. Se tu perceber que ele é “X-9”, manda bala nos dois.
Eles foram descendo a ladeira e Pepê os seguia logo atrás. Nico carregava a mochila nas costas. Estava nervoso, não sabia o que fazer com aquelas pedras. Enquanto descia o morro, lembrou-se de Voinha e uma agonia tomou conta de seu coração. Ela sempre aconselhava o neto a não se envolver com pessoas erradas, a não beber ou fumar. Nico se sentiu tão mal que pensou em voltar e devolver tudo, mas olhou para Deco e lembrou-se das palavras de Carlão. Se ele vacilar tu paga. Nico estava confuso, sentia-se num beco sem saída.
― Fica calmo Nico. Fica na tranquilidade que tudo vai dar certo. Vou te levar pra atividade ― disse Deco, tentando acalmar o amigo.
Nico olhou em volta e percebeu que os soldados de Carlão o observavam. Parecia que eles podiam ouvir seus pensamentos e então ele tentou manter a mente limpa. Esforçou-se para parecer tranquilo, mas em seu interior sentia-se sufocado. Queria sair correndo daquele lugar, mas seus pés pareciam feitos de chumbo. O coração palpitava. Concentrou-se no esforço para respirar, abriu a boca e puxou o ar na tentativa de acalmar os nervos. Tentou relaxar chutando as pedras que encontrava no caminho, fazendo com que elas rolassem ladeira abaixo. Nesse momento lembrou-se de um trecho do poema de Carlos Drummond. No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Nico adorava poesias e as aulas de literatura. Cada vez que lia um poema sentia que tinha a ver com algum momento de sua vida. Sempre escrevia poemas para Voinha. Ela adorava e ficava emocionada quando ele os lia em voz alta.
A tarde estava abafada e o sol parecia muito mais quente ali, no alto do morro. Nico puxou a camisa para cima e limpou o suor que escorria pela face. Viu alguns meninos soltando pipa na laje de uma casa. Lembrou-se de quando corria pela Ladeira das Flores atrás das pipas voadas. Observou-as flutuando no céu. De repente uma foi cortada. Lá vai ela, cheia de linha, levada pelo vento. Sem se importar com o seu destino. Sem se importar aonde vai aterrissar. Os meninos pularam da laje e correram para alcançá-la. Nico sentiu vontade de sair correndo com eles. Sentiu vontade de ser livre como uma pipa voada e voar para bem longe dali, sem destino.
Mais à frente se deparou com um menino segurando um fuzil. Ele tinha os cabelos castanhos sujos. Nico olhou dentro dos olhos dele e viu os sonhos de criança abafados pela violência do tráfico. Um menino igual àqueles que corriam atrás da pipa voada, mas com um semblante envelhecido, maltratado pelo uso da droga.
― Vamo rangar ― sugeriu Deco, interrompendo seus pensamentos ― Tu vai conhecer o melhor PF da cidade.
Entraram em um boteco, onde Deco foi cumprimentando as pessoas. Era um bar bem movimentado. Havia apenas um balcão no centro e atrás dele uma cozinha com azulejos azuis e brancos na parede. Na frente havia duas mesas de sinuca e uma máquina caça-níqueis, além de um telefone público todo pichado. Sentaram em uma mesa perto do balcão e um rapazinho baixo, muito branco, vestido com um avental surrado, veio atendê-los.
― E aí Deco? Tá sumido. Vai querer o quê? ― perguntou, limpando as mãos no avental.
― Traz o prato do dia, pra mim e pro meu amigo aqui, o Nico.
― Beleza Nico? ― o rapazinho cumprimentou e depois gritou para a mulher na cozinha. ― Sai dois PF no capricho.
Nico, sentado em frente à Deco, olhava para a mochila que havia colocado delicadamente no banco ao lado, como se fosse uma bomba pronta para explodir a qualquer momento.
― Nico tá dando bandeira! Relaxa cara! ― ordenou Deco.
― Não consigo ― sussurrou, aproximando-se do amigo.
― Tu vai ver que logo, logo acostuma. Principalmente quando a grana começar a entrar no seu bolso ― divertiu-se Deco, cruzando os braços sobre a mesa.
O rapazinho trouxe a comida. O cheiro delicioso do bife acebolado fez Nico esquecer a mochila por alguns minutos.
― Deco, me responde uma coisa? Por que você mora lá embaixo do viaduto se conhece um monte de gente aqui? O dinheiro que você ganha não dá pra alugar uma casa aqui no morro?
― Eu já pensei em vir pra cá, mas não posso abandonar os moleques.
― Por que você não traz os dois? ― perguntou enquanto cortava o bife com a faca.
― Não dá. O Ricardinho tá nóia demais. E os caras têm nojo de viciado em crack. Além disso, eu prefiro a tranquilidade do meu cafofo. Moro lá desde que saí de casa. Lá não tem ninguém me vigiando, nem me dando ordem.
Os dois ficaram ali até anoitecer. Deco jogava sinuca enquanto Nico vigiava a mochila. Nenhum dos dois percebeu a presença de Pepê, que observava tudo do outro lado da rua.
Assim que a noite caiu Deco levou o amigo para a cracolândia. Ele distribuiu as pedras nos bolsos da bermuda e pediu a Nico que fizesse o mesmo. Depois olhou em volta para ver se havia alguém e escondeu a mochila debaixo de um carro. A cracolândia ficava em uma das ruas que dava acesso ao Morro São Miguel. O local era imundo, um ambiente fúnebre, lixo espalhado por todos os lados. O cheiro de fezes e urina embrulhou o estômago de Nico. A rua estava repleta de adolescentes, homens e mulheres se drogando. Ele apertou a mão contra a boca sentindo a náusea. Jovens se prostituíam para ganhar a droga. Nico ficou perplexo com a cena. Crianças fumavam e andavam de um lado para o outro. Algumas jogavam pedras sem direção como se estivessem lutando contra um inimigo. Outros se reuniam em bando e dividiam o mesmo cachimbo. Mais à frente um grupo revirava latas de lixo à procura de alguma coisa que pudessem trocar pela pedra, enquanto outros brigavam entre si. Os mais exaltados não conseguiam parar no lugar. Coçavam-se e passavam as mãos no cabelo insistentemente, em uma espécie de frenesi.
Uma jovem se aproximou de Deco, perguntando se tinha a pedra. Ela vestia roupas sujas e rasgadas. Seu cabelo era um emaranhado de fios cobertos por um boné preto. Nico viu Deco pegar a nota de cinco reais e entregar a pedra.
Logo depois outra jovem se aproximou de Nico.
― Tem pedra aí?
Nico, assustado, balançou a cabeça afirmativamente. As roupas da garota fediam e ele disfarçou a náusea.
― Quanto é? ― perguntou a jovem, fazendo movimentos com a mão na tentativa de apressá-lo.
― Cinco ― respondeu Nico, olhando para Deco que fazia sinal para que ele olhasse a nota.
A garota tirou a nota amassada de cinco reais do bolso e entregou a Nico. Ele tirou a pedra do bolso e entregou a ela, que saiu imediatamente como um bicho sorrateiro.
― Isso aí cara. Viu é tranquilo ― sussurrou Deco, aproximando-se.
Nico esboçou um sorriso, mas em seu íntimo sentia uma mistura de pena e nojo daquelas pessoas. Não achava nada tranquilo. Não parava de pensar em Voinha e no quanto ela devia estar envergonhada com o que ele estava fazendo. Mas Nico não tinha saída, já havia se envolvido demais e se recusasse entrar no esquema poderia ser cassado pelos homens de Carlão. Afinal, ele subiu o morro e conheceu o reduto dos traficantes. Eles não o deixariam sair na boa. Então pensou: Fico nessa até conseguir dinheiro suficiente pra fugir. Só assim Carlão não o encontraria.
Continuaram vendendo a droga até não restar mais nenhuma pedra.
― Vambora Nico. Tu passou no primeiro teste. Agora vai ser moleza ― comemorou Deco.
Naquela noite Nico demorou a dormir. Em sua mente a imagem degradante daqueles jovens consumidos pelo vício. Ele pensava: Eu nunca vou fumar isso. Isso é coisa de gente fraca. Eu nunca vou cair nessa. Ficou com a imagem daquele lugar na cabeça até ser vencido pelo sono.
“Se estiveres no caminho certo, avança;se estiveres no errado, recua.”Lao-Tsé ― Muito bem Nico. Vendeu tudo em um só dia. Eu sabia que tu era dos bons. Meu faro não se engana nunca ― elogiou Carlão. Nico sentiu uma alegria estranha, a mesma alegria que sentia quando Voinha o elogiava pelas boas notas. Mas logo se lembrou de onde estava e a alegria rapidamente se transformou em angústia. ― Dessa vez tu vai levar o cara na fonte lá da faculdade. Explica pra
“Não há uma pegada do meu caminho que não passe pelo caminho do outro.”Simone de Beauvoir Deco deu um passo em direção à rua e Nico o puxou para trás. ― Espera. Olha lá!Viram Maneco sendo empurrado para dentro da viatura.― Droga Nico! Eu tenho que ir até lá ― gritou Deco.― Espera. Deixa que eu vou lá saber o que houve. Fica aí com a mochila ― ordenou Nico, atravessando a rua e se aproximando de um homem que observava tudo. 
“Sempre somos capazes de dar algo mais; mesmo nas pedras germinam as flores.”Bérgson No dia seguinte Nico e Deco estavam na porta do colégio de Débora. Era noite de sexta-feira e a rua estava bastante movimentada. Quando ela o viu tentou fugir, mas Nico logo se aproximou. ― Oi Débora, oi Lia. ― Não esqueceu nossos nomes hein? ― brincou Lia. ― Imagina se eu ia esquecer os nomes das garotas mais lindas dessa escola.&
"O amor é tudo que temos,o único caminho pelo qualum pode ajudar o outro..."Eurípedes Chegaram à porta do colégio de Débora e esperaram escondidos atrás de um carro. Deco estava curioso. ― Por que a gente tá se escondendo, Nico? ― Calma. Paciência. Depois de alguns minutos, Débora e Lia saíram do prédio e pararam em frente ao portão. Lia conversava animad
“Cada um faz o seu caminho,às vezes os caminhos se cruzampara que novos caminhos possam surgir.” Marlene Mendonça Na noite do dia seguinte Nico procurou Carlão e contou sobre a ideia de seu aniversário. Carlão aprovou e disse que o morro estava mesmo precisando de uma grande festa para animar os moradores. ― Pode deixar que eu falo com o Chefe. Tenho certeza que ele vai prestigiar o teu aniversário. ― Valeu Carlão.&
“Transforme as pedras que você tropeçanas pedras de sua escada.”Sócrates ― Que susto PC! Quer me matar do coração ― gritou dando de cara com o moleque que ia batendo na porta. ― Foi mal fiel. O Carlão mandou chamar vocês. ― Valeu. A gente já tá indo. Deco fechou a porta e olhou intrigado para Nico.― O que será que ele quer tão cedo?&
“A cada momento de nossa existênciatemos que escolher entre um caminho e o outro.Uma simples decisãopode afetar uma pessoa para o resto da vida.”Paulo Coelho Nico chegou à quadra da Associação de Moradores e todos o cumprimentaram alegremente. A comunidade estava em festa. As pessoas dançavam animadas ao som dos Dominados. Nico estava muito elegante, agradecia a presença de todos e dançava com maestria os passos de funk. Não queria despertar suspeitas, precisava agir com naturalidade. Dona Maria chegou trazendo o bolo, que colocou delicadamente na mesa arrumada com os doces. Deu um forte abraço em Nico e neste momento ele
“Não tropeçamos nas grandes montanhas,mas nas pequenas pedras.”Augusto Cury Nico acordou sentindo uma enorme dor de cabeça. Não fazia idéia de quanto tempo havia dormido. Olhou em volta. Ficou um tempo sentado em silêncio. Encostou a cabeça na parede, inspirou fundo e deixou as lágrimas descerem. Seu peito pesava. Depois de alguns minutos desabafando toda a sua tristeza tentou levantar. Colocou a mochila nas costas e com passos pesados caminhou. Entrou em uma lanchonete e pediu um café. Sentado, cabeça baixa, tentava organizar seus pensamentos. Olhou para a televisão. Os repórteres estavam no morro. Nico