Capítulo 1

"Nascemos todos os dias, quando nasce o Sol.

Começa hoje mesmo a vida que te resta."

Lygia Fagundes Telles

            ― Provavelmente foi infarto ― informou o legista ao oficial do corpo de bombeiros. 

            O corpo de D. Anita estava inerte sobre a cama. Sentado no chão do quarto, Nico abraçava as pernas. Músculos tensos, olhar fixo no corpo da avó. O menino era altíssimo e magro, tinha os cabelos lisos e escuros. Seus olhos eram como duas safiras azuis. Azuis como os de sua avó. Olhos de menino, acostumados a contemplar o céu e correr atrás das pipas. Repletos de vida, transbordando alegria. Agora eram olhos tristes, cheios de dor, estarrecidos diante do pior momento de sua vida. 

            Ele havia acordado às seis horas e, como de costume, tinha preparado a mesa do café como Voinha gostava. Era assim que ele chamava Dona Anita, uma senhora de setenta e três anos, pele branca, cabelos ondulados e branquinhos como a neve. Voinha querida, aquela que preparava um pão de queijo delicioso. E como Nico adorava pão de queijo! Ficava sentado à mesa olhando a avó mexer a massa. O cheiro do queijo invadia suas narinas. Ele fechava os olhos e podia sentir o sabor, antes mesmo de Voinha abrir o forno.

            Dona Anita era apaixonada pelo neto e fazia tudo o que ele pedia. Era uma avó muito carinhosa, por isso Nico também fazia tudo para agradá-la. De manhã, antes de ir à escola, ele corria até a esquina para comprar o pão e quando voltava arrumava a mesa do café. Depois abria as janelas do quarto de Dona Anita. Os primeiros raios de sol invadiam o cômodo e formavam uma coberta de luz sobre a cama. Um beijo na testa e ela logo acordava sorrindo. Meu raio de sol, dizia com ternura.

            Mas a mesma janela que deixava entrar tanta alegria, hoje trouxe um feixe negro de luz. Ela, sua Voinha, não acordou. Seu rosto estava frio e pálido. Nico estremeceu quando encostou seus lábios na testa da avó. Seu corpo todo enrijeceu como se milhões de facas afiadas atravessassem o seu coração.

            ― Voinha, Voinha! Acorda Voinha! ― gritou desesperado, tentando levantá-la. ― Voinha, Voinha! Vem tomar café.

            Marlene, vizinha da família, ouviu os gritos. Ela gostava muito de Dona Anita e também a chamava de Voinha. Durante os treze anos que Dona Anita viveu naquela casa, Marlene era uma vizinha dedicada e depois da morte de Seu Fernando, avô de Nico, ela ajudava em tudo o que podia. Fazia compras, lavava a roupa, ajudava a arrumar a casa. Ela realmente havia adotado Dona Anita como sua avó e era retribuída com muitos carinhos e mimos.

            Marlene havia entrado pela porta da cozinha e percebido que a mesa do café estava intacta. Quando correu até o quarto, ouvindo os gritos, e com os olhos cheios de lágrimas, já imaginava o pior. O garoto estava agarrado ao corpo da avó. Ela só conseguiu fechar os olhos, comprimindo as palmas das mãos sobre a boca,  sentindo o peito arfar de tristeza. Nico esbravejava. Gritos de dor que rasgavam o interior de sua alma ainda infantil. Depois de alguns minutos, envolvida pela emoção e ao mesmo tempo, tentando acalmar o menino, Marlene ligou para a emergência.

            A lembrança daquele momento martelava a cabeça de Nico. Podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena. As lágrimas não pediam permissão para deslizar sobre a face. O coração não pedia permissão para bater descompassado. O esforço para respirar provocou vertigem em seu corpo e as paredes do quarto pareciam se mover lentamente.

            ― Foi hoje de manhã. Acordei com os gritos do menino ― explicava Marlene ao oficial do Corpo de Bombeiros.

            ― Onde está a mãe dele? ― interrogou o homem enquanto os enfermeiros cobriam o corpo.

            ― Não sei. Quando eles chegaram aqui eram só o menino e os avós. Nunca falaram nada sobre a mãe dele.

            Marlene imaginava como seria difícil para Nico passar por tudo aquilo. Amontoar tanta dor naquele peito frágil de menino. Ele parecia-lhe tão pequeno e quebradiço quanto uma taça de cristal. Parecia prestes a se despedaçar ao mais leve sopro do vento.

            O oficial prosseguiu em seu interrogatório monótono e formal, anotando todas as informações em uma espécie de ficha:

            ― Qual o nome completo e a idade dele?

            ― Antônio Carlos de Oliveira, mas todo mundo chama ele de Nico. Ele tem dezesseis anos ― respondeu Marlene, sem tirar os olhos do menino.

 ― Vamos encaminhá-lo ao Ministério Público. Até que apareça algum parente, ele vai permanecer no abrigo ― informou o oficial.

            Marlene arregalou os olhos. Lembrou-se da promessa que havia feito a Dona Anita diante do túmulo de Seu Fernando: Não se preocupe Voinha, eu sempre cuidarei de vocês. A voz saiu vacilante:

            ― Ele não pode ficar comigo até aparecer alguém? Eu ajudei a criar esse menino, tenho tanto carinho por ele. É como um filho para mim ― choramingava Marlene, olhando para o garoto, que a esta altura já havia se levantado e andava de um lado para o outro da cozinha.

            ― Isso não é com a gente, senhora. Nós apenas informamos ao órgão responsável ― respondeu o homem.

Nico parou e olhou para Marlene. Revelou tanto horror na face que a mulher percebeu seu desespero. Não queria ser levado a lugar nenhum, queria ficar com sua avó, queria Voinha de volta, queria sua vida de volta. Indiferente aos gritos de Marlene, o garoto saltou em direção à porta da cozinha. Correu até o portão de madeira, tentando desviar-se dos vizinhos que se amontoavam curiosos e, ao mesmo tempo, lamentavam a morte de Dona Anita.

            ― Nico, Nico, volta aqui menino! ― gritava Marlene.

            Mas ele não voltou. Desceu a ladeira como uma rajada de vento e só parou quando chegou a uma rua deserta e não viu nem sinal de sua casa amarela, no topo da Ladeira das Flores. Era a rua mais alta do bairro Redenção, no interior do Espírito Santo. A primavera chegara de mansinho e o aroma inebriante das moitas de jasmim varreu de recordações o coração do menino. Ele olhou para trás, viu um corredor de casas pintadas em tons coloridos e um moleque sorridente, de pés descalços, puxando um carrinho de madeira. Nico piscou os olhos, de repente o menino havia crescido um pouco e olhava para o alto fazendo um movimento de vaivém com o braço, empinando os sonhos diante de um céu azul, mais claro que os seus olhos. Então percebeu que o menino não era mais tão menino. Andava entre os amigos, paquerando as garotas e fazendo planos para o futuro. O futuro que agora não conseguia imaginar qual seria e que, um dia, seus avós começaram a trilhar quando foram morar em Redenção. Era a primavera do ano de 1986, Nico tinha apenas três anos quando subiu a Ladeira das Flores pela primeira vez. Voinha dizia que, por insistência de Seu Fernando, foram obrigados a abandonar a casa simples em que viviam no interior de Minas.

             Nico lembrava muito bem do avô, que morreu quando ele tinha onze anos. Uma pneumonia muito forte deixou Seu Fernando de cama durante meses. Homem muito rígido, de temperamento forte, extremamente controlador. Não aceitava a ideia de consultar um médico e por isso a doença evoluiu. Quando o levaram à emergência seus pulmões não resistiam mais e Seu Fernando partiu. Era o primeiro contato de Nico com a morte. Durante todos esses anos, ele assumiu a responsabilidade de cuidar da avó. Com a pensão de Seu Fernando e a ajuda prestimosa de Marlene, Nico e Dona Anita sobreviveram apoiando-se mutuamente.

              Desta vez a morte não teria o mesmo significado para Nico. Sua avó era como uma parte de seu corpo, como parte de sua alma. Era como se a vida tivesse arrancado-lhe as pernas, como se o grande “deus da morte” tivesse descido sobre ele e sugado toda a sua alegria, seu ânimo, sua alma. Não conseguia imaginar como seria sua vida de agora em diante, sem o sorriso doce de Voinha, sem suas palavras serenas e o carinhoso cafuné. Era por ela que ele acordava todas as manhãs. Por ela se esforçava para ser o melhor aluno de sua sala. Queria que Voinha tivesse orgulho dele. Quando pensava no futuro, imaginava-se construindo uma família e levando a avó para viver com ele. Jamais pensou em sua vida sem Voinha. O que faria agora? O que seria dele?

A pergunta latejava em suas têmporas. Nico caminhava apressadamente numa via dolorosa. A respiração era ofegante e ele teve que parar por alguns instantes para não desmaiar. Estava tonto. Inclinou-se e apoiou as mãos sobre os joelhos. O suor escorria por sua pele e se misturava as lágrimas que desciam, incessantemente, de seus olhos. A imagem de Voinha morta fervia em seus pensamentos. Agora ele estava sozinho no mundo e de jeito nenhum iria para um orfanato. Sabia que nenhum parente apareceria, nem mesmo sua mãe, Maria, que o abandonou quando tinha apenas dois anos. Dona Anita sempre falava dela. Dizia que após seu nascimento, sua mãe resolvera ir para a cidade grande tentar melhorar de vida. Era uma mulher sonhadora, imaginava um futuro melhor para o filho e por isso precisava partir. Planejava fazer faculdade e arrumar um bom emprego, mas não podia levá-lo. Quem daria emprego a uma mãe solteira e, ainda por cima, com um bebê nos braços? O interior não era lugar para Maria, ela queria mais. Queria ser assistente social, ajudar as pessoas, cuidar de crianças e por isso partiu.

            Seu Fernando não aceitou e brigou com a filha. Dizia que o lugar dela era ao lado do menino. Já não bastava a criança ter um pai irresponsável que sumiu no mundo e nem quis saber do filho? Agora a mãe também o abandonaria? Por mais que Maria tentasse explicar suas razões, dizendo que era por pouco tempo, Seu Fernando foi radical:

            Se sair nunca mais volta. Nunca mais você verá seu filho.

            Mas Maria não o ouviu. Acreditava que quando voltasse, formada e bem de vida, seu pai voltaria atrás. Foi assim quando ela se envolveu com o pai de Nico, um jovem mimado, filho de um grande comerciante da região. Quando o rapaz soube que ela estava grávida, sugeriu o aborto. Ela recusou e ele, sem pensar duas vezes, abandonou-a. Seu Fernando ficou furioso, disse que jamais a perdoaria, mas durante a gravidez foi amolecendo. Até ajudou a comprar o enxoval do bebê. Maria tinha certeza que seria assim também. Ele era durão, mas no fim, sempre voltava atrás. Por isso partiu. Com o coração sangrando deixou a criança sob os cuidados de Dona Anita. Sabia que a mãe cuidaria muito bem de seu filho.

            Nico nem lembrava quantas vezes tinha ouvido essa história de sua avó. E agora, com a tristeza exalando pelos poros, as lembranças surgiam fora de controle. Olhou para o céu, era início de tarde e o sol parecia uma grande rocha alaranjada. Ondas de calor provocando uma sensação de cansaço e angústia. Respirou profundamente e voltou a caminhar. Voltou seu olhar para o chão e começou a chutar as pedras que encontrava em seu caminho. Era uma espécie de cacoete que o acompanhava desde os cinco anos de idade. Adorava ver as pedras rolando e imaginar aonde elas iriam parar. Voinha achava engraçado e aproveitava para doutriná-lo. Dizia com aquele sotaque mineiro, cheio de ternura: Sempre vão existir pedras no caminho, meu amor, e ocê deve di decidir se tropeça nelas e cai ou se chuta do caminho e segue em frente. Nico sorria e chutava todas as pedras, corria e chutava. Ele dizia que nunca tropeçaria em nenhuma e que as chutaria com muita força tirando-as de seu caminho.

            A voz doce e triste de Voinha não saia de sua cabeça. Ela era uma mulher religiosa e sábia, mas abrigava uma grande tristeza em seu coração. Ficava muito perturbada ao lembrar-se da filha e chorava a noite toda. Falava dormindo, como se estivesse conversando com Maria. Em todos esses anos Dona Anita não recebeu uma carta da filha, ela simplesmente havia desaparecido. Quando Seu Fernando quis sair de Minas, Dona Anita reclamou. Achava que se saíssem dali a filha jamais os encontraria. Mas Seu Fernando estava decidido, dizia que tinha conseguido emprego em uma empresa melhor. Saíram no meio da noite sem que Dona Anita tivesse tempo de deixar recado ou se despedir dos vizinhos. Quando chegaram à Ladeira das Flores a casa já estava toda arrumada, Seu Fernando havia planejado tudo com antecedência.

            No início, Nico perguntava sobre a mãe. Queria ouvir as histórias, imaginar como ela era. Seu avô havia desaparecido com todas as fotos e dizia que agora ele era filho deles, que Maria havia morrido no dia em que saiu de casa. Aconselhava o neto a jamais procurá-la, pois ela nunca se interessou por ele. Uma mãe não abandona o seu filho. Ela nunca te amou, repetia inúmeras vezes ao neto. Apesar de Dona Anita defender a filha, Nico cresceu com uma mágoa muito grande no coração. Quando perguntavam sobre sua mãe, dizia que ela havia morrido em seu parto.

            Agora a solução era sair de Redenção. Sua mãe jamais o encontraria e ele não iria morar em um orfanato. Avançava com passadas longas e ligeiras. O coração retumbava e sua respiração estava ofegante. Olhava para trás e com as mãos, enxugava o rosto lustroso de suor. Precisava fugir. Fugir da dor humana que dilacerava sua alma. A princípio não sabia para aonde ir. Não pensava no seu destino. Apenas fugia.

            Ao longe, avistou a rodoviária da cidade e decidiu que ali seria o início de sua nova vida. Quando chegou, viu uma fila de pessoas que entravam em um ônibus. Observou o movimento e esperou até que todos os passageiros se acomodassem. Em um momento de distração do motorista, entrou no ônibus e sentou no último banco, encolhido para não ser encontrado. O veículo partiu. Nico encostou a cabeça na janela e sentiu o corpo moído, suas pernas pesavam. Olhava o sol refletido no vidro da janela fechada. A tarde abafada e sonolenta debruçava seu brilho sobre a vegetação. O barulho constante do motor fez Nico cair em um sono profundo. Com uma expressão de sofrimento impressa no rosto, sonhou. Doces e tristes lembranças. Ouvia, ao longe, a voz aveludada de Voinha. Uma voz tão leve como o sussurro de uma prece.

            ― Meu raio de sol!

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo