Eram pouco mais de oito horas e os dois acabavam de chegar à padaria da mãe de Heitor. Antonella ergueu as sobrancelhas ao ver Afonso, não era comum o garoto levar amigos para lá. Deu o sorriso gentil de sempre e puxou a mochila do garoto.
— Olá, rapazinho. Deixe que eu guardo essa mochila. — Antonella costumava ser mais gentil que o normal quando se tratava de visitas (exceto a velha Valentina, pois a odiava). Afonso agradeceu e sentou-se num banquinho próximo ao balcão.
— Espere uns minutinhos. Vou buscar o livro. — Disse Heitor, enfiando-se na portinhola do balcão e seguindo para o estoque. Heitor deixava ali o livro, pois sempre que saía do colégio dirigia-se para a padaria e, estrategicamente, o morrinho era muito próximo de lá. Deixava-o sempre em uma das prateleiras, perto das sacas de farinha de trigo. Podia ouvir o bater de utensílios na cozinha — que ficava no cômodo ao lado — em que Antonella trabalhava incessantemente. Encontrou o pequeno livro no lugar q
Heitor não disse nada, nem poderia. Aquilo definitivamente não era do seu gosto, mas o que lhe machucava era não poder fazer nada. Sabia o perigo que corriam, sabia exatamente o que poderia acontecer com sua mãe, com ele, com Omar. Mas sair agora, sozinha. Isso não era razoável; era uma loucura! Logo perdeu o fio de pensamento quando a mulher agachou novamente.— Eu vou voltar. Prometo. — Os seus olhos encheram de lágrimas. Agora pareciam os olhos que Heitor tanto conhecia, estes eram os olhos gentis, bondosos e esperançosos que sempre lhe davam força e, por algum motivo, o garoto entendeu que aquilo era o que deveria ser feito.Antonella pegou as chaves sobre uma das prateleiras e endireitou a bolsa de um ombro só. Deu uma última olhada para seu filho e partiu; pela porta dos fundos e sem olhar para trás. Heitor levantou em seguida, correu para a porta e trancou-a. Em segui
A neve caía sobre as lágrimas congeladas de Heitor. Nada mais o incomodava. O peito doía e os olhos ardiam, mas nada nem ninguém conseguiria fazê-lo esquecer os sons dos disparos. O garoto não levantou em momento nenhum, já não mais sentia as mãos que agora estavam soterradas na neve. Áurea e Omar estavam ali também e, talvez por solidariedade não fizeram objeção alguma em congelar ali, junto ao garoto.Alguns aviões cortavam os ares de vez em quando, carregados com a bandeira purianista e bombardeando casas ao longe, mas nada disso o faria levantar dali. O medo de morrer pareceu sumir durante aquele momento. Não poderia se dar ao risco de levantar, não poderia ver ali o corpo de sua mãe. A mulher que sempre o protegera não fora protegida e tudo aquilo parecia esmagar seu cérebro ao mesmo tempo. O ar parecia cada vez mais rarefeito e isso
— Que bom! Veja, parece que Matarás continua intacta. Só espero que deixem-nos entrar... — O velho arrumou a pequena casaca e apoiou-se na lateral da embarcação para observar a ilha. Havia um sol muito forte ali, banhava seus ombros de forma muito reconfortante, pois aliviava a lembrança da quase hipotermia do dia anterior. O barco aproximou-se lentamente do píer e dois guardas matarasos já os esperavam. — Documentos por favor! — Gritou um deles. — Sim, claro! — Omar berrou de volta, enquanto laceava a corrente entre o barco de o poste no píer. — Aqui. O guarda mais velhos aproximou-se do primeiro e juntos leram os três documentos. — E o garoto? — Disse o mais velho, apontando para Afonso. — Ah... — Omar aproximou-se do guarda. — Nós fugimos de São Havier, entende? Houve uma invasão e nós... nós conseguimos escapar. — Sem documentos serão deportados. — Disse de forma mecânica o guarda mais novo. — Estão comigo! — Berrou
As pernas do garoto doíam como nunca antes, mas não o impedia de estar ali, sobre a varanda. Observando a esfera esbranquiçada que banhava-o ali ou em Romana.O ódio pela velha Valentina assolava por vezes, quando a coluna parecia querer se soltar do resto do corpo. Aquele tempo todo Heitor acredito que a raiva de sua mãe pela velha era pura birra. Agora sabia que não. Dispor de serviços absurdos como aqueles, em troca de almoço e uma cama. Uma mulher rica feito ela?O vento sacudiu as imensas cortinas e pegadas descalças fizeram-se ouvir. Áurea estava acordada e o seguira até o andar maias alto. Pusera-se ao seu lado e observou por um bom tempo a lua pelo vidro da janela.— Eu trouxe isso. — Sussurrou a menina, entregando-lhe o livro que ganhara do falecido Héctor: “Príncipe Levi e suas estrelas”. Os dois estavam lendo aquele livro juntos e, aparen
“Que Deus, em sua infinita misericórdia, dê o rumo para os que foram, e conforte o peito dos que permaneceram. De um livro retirei a frase: “A fé dá-nos respostas quando a razão falha”, que a palavra e as lembranças confortem o peito de cada um presente...” — Ei, rapaz! — Chamou alguém próximo. — Heitor Newman, certo? Poderia dar uma palavrinha para o jornal “NovaEncomenda”? — Desculpe, tenho um compromisso agora. — Disse entrando no carro e, virando-se para o motorista: — Para a comissão dos direitos e deveres, por favor. Chegou cedo, atravessou a multidão que se sentava ao longo do anfiteatro e apontavam para o centro do palco e sentou-se logo à frente
O clima gelado era cada vez mais notável. O velho ônibus bufava uma fumaça acinzentada muito densa e, com certeza, qualquer um que viesse atrás não poderia enxergar um palmo à frente do para-brisa. A vegetação era muito diferente de onde os dois estavam saindo. O que antes era verde-vivo, agora beirava o preto e branco da neve e das folhas murchas. Um sol fraco beijava as copas das árvores que pareciam não se incomodar e só faziam acumular mais neve.Heitor e sua mãe vinham de um país vizinho, um país mais verde e mais quente. Mais aconchegante, talvez. Chamava-se: Brigada e em nada se parecia com o lugar que atravessavam agora. Por mais que fossem vizinhos, os dois países eram totalmente diferentes. Heitor notou que, enquanto saíam de Brigada, a vegetação tornara-se escassa e que o clima desértico perdeu espaço mais à
O dia clareou, mais frio que o dia anterior e Heitor mal conseguiu abrir os olhos devido à luz do dia que escorregava dentre a janela redonda e pousava sobre suas pálpebras. Coçou o cabelo perfeitamente alinhado que, mesmo depois do sono, acordara com o topete completamente submisso. Ergueu o tronco e notou algumas vozes vindas do andar de baixo onde, provavelmente, Antonella conversava com alguma visita. Meio sem jeito pela sonolência vestiu sua jaqueta de couro-brigiano e sua boina inseparável e partiu degraus abaixo, rumo à cozinha. As vozes foram subitamente ofuscadas pelos ruídos dos degraus e madeira velha, mas logo voltaram à tona quando o garoto surgiu do corredor. — Querido, você tem uma visita. — Antonella, que agora cortava algumas cebolas sobre o balcão, fez um aceno com a cabeça para que Heitor olhasse à volta. — Dona Valentina! — Disse o menino — A senhora está magnífica! E não pude deixar de notar as belas lantejoulas em seu cabe
Os dois outros dias passaram como um sopro forte, Heitor começara a acostumar-se com o frio e, como se o clima tentasse pregar-lhe uma peça, o sol nasceu maior e mais quente que nunca. Ao debruçar-se para ficar sentado em sua cama Heitor notou que o gelo acumulado do lado de fora da janela redonda agora derretia. Um sorriso quase involuntário imprimiu-se em seus lábios. Não precisaria mais andar embrulhado em camadas de panos como fizera desde que chegara.Levantou-se e rumou para a cômoda ao lado da janela, pegou sua velha boina e pôs-se à frente do espelho na porta do guarda roupa.“Não” — Pensou o menino passando as mãos pelos grossos fios de seu cabelo escuro. — “Desculpe, velha amiga.”Posou-a de volta acima da cômoda e vestiu sua velha jaqueta de couro preta. Seguiu, então, para o corredor e desceu os degraus que rangiam como se senti