O peito de Heitor contorceu-se e o já tão familiar arrepiou circundou sua coluna. Áurea estava tão diferente estes tempos. Passara as férias sozinha, numa espécie de retiro espiritual que em nada lhe acrescentava se não um sentimento vazio e amargo, parecido com a solidão.
Eles se falavam com uma razoável frequência, mas sempre como amigos, claro. Aliás, criaram uma espécie de laço amigável que fizera o garoto temer uma futura impossível saída. Mas chama-lo para o quarto andar? Aquele corredor era completamente vazio, não poderia haver assunto algum que não se pudesse ter no pátio ou mesmo na sala de aula. Alguma coisa parecia estranha, mas não lhe parecia um bom momento para otimismos. Com toda a certeza a garota estava com algum problema, o silêncio durante a aula de hoje parecia significar bem mais agora...
Com toda a certeza o assunto, se triste, envolveria a aproximação de Afonso e Victória. Áurea não deixara de amá-lo, não deixara de amá-lo em momento algum. Ne
Eram pouco mais de oito horas e os dois acabavam de chegar à padaria da mãe de Heitor. Antonella ergueu as sobrancelhas ao ver Afonso, não era comum o garoto levar amigos para lá. Deu o sorriso gentil de sempre e puxou a mochila do garoto. — Olá, rapazinho. Deixe que eu guardo essa mochila. — Antonella costumava ser mais gentil que o normal quando se tratava de visitas (exceto a velha Valentina, pois a odiava). Afonso agradeceu e sentou-se num banquinho próximo ao balcão. — Espere uns minutinhos. Vou buscar o livro. — Disse Heitor, enfiando-se na portinhola do balcão e seguindo para o estoque. Heitor deixava ali o livro, pois sempre que saía do colégio dirigia-se para a padaria e, estrategicamente, o morrinho era muito próximo de lá. Deixava-o sempre em uma das prateleiras, perto das sacas de farinha de trigo. Podia ouvir o bater de utensílios na cozinha — que ficava no cômodo ao lado — em que Antonella trabalhava incessantemente. Encontrou o pequeno livro no lugar q
Heitor não disse nada, nem poderia. Aquilo definitivamente não era do seu gosto, mas o que lhe machucava era não poder fazer nada. Sabia o perigo que corriam, sabia exatamente o que poderia acontecer com sua mãe, com ele, com Omar. Mas sair agora, sozinha. Isso não era razoável; era uma loucura! Logo perdeu o fio de pensamento quando a mulher agachou novamente.— Eu vou voltar. Prometo. — Os seus olhos encheram de lágrimas. Agora pareciam os olhos que Heitor tanto conhecia, estes eram os olhos gentis, bondosos e esperançosos que sempre lhe davam força e, por algum motivo, o garoto entendeu que aquilo era o que deveria ser feito.Antonella pegou as chaves sobre uma das prateleiras e endireitou a bolsa de um ombro só. Deu uma última olhada para seu filho e partiu; pela porta dos fundos e sem olhar para trás. Heitor levantou em seguida, correu para a porta e trancou-a. Em segui
A neve caía sobre as lágrimas congeladas de Heitor. Nada mais o incomodava. O peito doía e os olhos ardiam, mas nada nem ninguém conseguiria fazê-lo esquecer os sons dos disparos. O garoto não levantou em momento nenhum, já não mais sentia as mãos que agora estavam soterradas na neve. Áurea e Omar estavam ali também e, talvez por solidariedade não fizeram objeção alguma em congelar ali, junto ao garoto.Alguns aviões cortavam os ares de vez em quando, carregados com a bandeira purianista e bombardeando casas ao longe, mas nada disso o faria levantar dali. O medo de morrer pareceu sumir durante aquele momento. Não poderia se dar ao risco de levantar, não poderia ver ali o corpo de sua mãe. A mulher que sempre o protegera não fora protegida e tudo aquilo parecia esmagar seu cérebro ao mesmo tempo. O ar parecia cada vez mais rarefeito e isso
— Que bom! Veja, parece que Matarás continua intacta. Só espero que deixem-nos entrar... — O velho arrumou a pequena casaca e apoiou-se na lateral da embarcação para observar a ilha. Havia um sol muito forte ali, banhava seus ombros de forma muito reconfortante, pois aliviava a lembrança da quase hipotermia do dia anterior. O barco aproximou-se lentamente do píer e dois guardas matarasos já os esperavam. — Documentos por favor! — Gritou um deles. — Sim, claro! — Omar berrou de volta, enquanto laceava a corrente entre o barco de o poste no píer. — Aqui. O guarda mais velhos aproximou-se do primeiro e juntos leram os três documentos. — E o garoto? — Disse o mais velho, apontando para Afonso. — Ah... — Omar aproximou-se do guarda. — Nós fugimos de São Havier, entende? Houve uma invasão e nós... nós conseguimos escapar. — Sem documentos serão deportados. — Disse de forma mecânica o guarda mais novo. — Estão comigo! — Berrou
As pernas do garoto doíam como nunca antes, mas não o impedia de estar ali, sobre a varanda. Observando a esfera esbranquiçada que banhava-o ali ou em Romana.O ódio pela velha Valentina assolava por vezes, quando a coluna parecia querer se soltar do resto do corpo. Aquele tempo todo Heitor acredito que a raiva de sua mãe pela velha era pura birra. Agora sabia que não. Dispor de serviços absurdos como aqueles, em troca de almoço e uma cama. Uma mulher rica feito ela?O vento sacudiu as imensas cortinas e pegadas descalças fizeram-se ouvir. Áurea estava acordada e o seguira até o andar maias alto. Pusera-se ao seu lado e observou por um bom tempo a lua pelo vidro da janela.— Eu trouxe isso. — Sussurrou a menina, entregando-lhe o livro que ganhara do falecido Héctor: “Príncipe Levi e suas estrelas”. Os dois estavam lendo aquele livro juntos e, aparen
“Que Deus, em sua infinita misericórdia, dê o rumo para os que foram, e conforte o peito dos que permaneceram. De um livro retirei a frase: “A fé dá-nos respostas quando a razão falha”, que a palavra e as lembranças confortem o peito de cada um presente...” — Ei, rapaz! — Chamou alguém próximo. — Heitor Newman, certo? Poderia dar uma palavrinha para o jornal “NovaEncomenda”? — Desculpe, tenho um compromisso agora. — Disse entrando no carro e, virando-se para o motorista: — Para a comissão dos direitos e deveres, por favor. Chegou cedo, atravessou a multidão que se sentava ao longo do anfiteatro e apontavam para o centro do palco e sentou-se logo à frente
O clima gelado era cada vez mais notável. O velho ônibus bufava uma fumaça acinzentada muito densa e, com certeza, qualquer um que viesse atrás não poderia enxergar um palmo à frente do para-brisa. A vegetação era muito diferente de onde os dois estavam saindo. O que antes era verde-vivo, agora beirava o preto e branco da neve e das folhas murchas. Um sol fraco beijava as copas das árvores que pareciam não se incomodar e só faziam acumular mais neve.Heitor e sua mãe vinham de um país vizinho, um país mais verde e mais quente. Mais aconchegante, talvez. Chamava-se: Brigada e em nada se parecia com o lugar que atravessavam agora. Por mais que fossem vizinhos, os dois países eram totalmente diferentes. Heitor notou que, enquanto saíam de Brigada, a vegetação tornara-se escassa e que o clima desértico perdeu espaço mais à
O dia clareou, mais frio que o dia anterior e Heitor mal conseguiu abrir os olhos devido à luz do dia que escorregava dentre a janela redonda e pousava sobre suas pálpebras. Coçou o cabelo perfeitamente alinhado que, mesmo depois do sono, acordara com o topete completamente submisso. Ergueu o tronco e notou algumas vozes vindas do andar de baixo onde, provavelmente, Antonella conversava com alguma visita. Meio sem jeito pela sonolência vestiu sua jaqueta de couro-brigiano e sua boina inseparável e partiu degraus abaixo, rumo à cozinha. As vozes foram subitamente ofuscadas pelos ruídos dos degraus e madeira velha, mas logo voltaram à tona quando o garoto surgiu do corredor. — Querido, você tem uma visita. — Antonella, que agora cortava algumas cebolas sobre o balcão, fez um aceno com a cabeça para que Heitor olhasse à volta. — Dona Valentina! — Disse o menino — A senhora está magnífica! E não pude deixar de notar as belas lantejoulas em seu cabe