Os dois outros dias passaram como um sopro forte, Heitor começara a acostumar-se com o frio e, como se o clima tentasse pregar-lhe uma peça, o sol nasceu maior e mais quente que nunca. Ao debruçar-se para ficar sentado em sua cama Heitor notou que o gelo acumulado do lado de fora da janela redonda agora derretia. Um sorriso quase involuntário imprimiu-se em seus lábios. Não precisaria mais andar embrulhado em camadas de panos como fizera desde que chegara.
Levantou-se e rumou para a cômoda ao lado da janela, pegou sua velha boina e pôs-se à frente do espelho na porta do guarda roupa.
“Não” — Pensou o menino passando as mãos pelos grossos fios de seu cabelo escuro. — “Desculpe, velha amiga.”
Posou-a de volta acima da cômoda e vestiu sua velha jaqueta de couro preta. Seguiu, então, para o corredor e desceu os degraus que rangiam como se sentissem dor a cada pisada. Logo pôde ver Antonella, sua mãe, pousada à frente do balcão que separava a cozinha da pequena sala de estar, olhando fixamente para um pequeno envelope.
— Já em pé, querido? — A mulher disse guardando o envelope no bolso do avental.
— O que era isso, mãe?
— Nada de mais querido. — A mulher arregalou os olhos azuis que pareciam duas pedras de diamante. — Onde está seu uniforme?
Heitor estava tão cansado do dia anterior que esquecera o início do ano letivo e Antonella só fez dar um sorriso tímido.
— Dia dez, amorzinho. Nada de desculpas, vamos. Vá trocar!
Heitor sorriu também e virou as costas a mãe, seguiu pela escada que gritava e entrou no pequeno quarto. Agora, mais acordado, notou que a mulher deixara o uniforme em cima de uma cadeira de madeira próxima à cama.
Apressou-se em se vestir e ouviu algumas vozes no andar abaixo. Não teve dúvida de que era dona Valentina, a velha dissera dois dias atrás que o visitaria todos os dias e cumpriu a promessa até agora. Sempre trazendo-lhe doces e outras guloseimas, mas Antonella não parecia contente com as visitas da mulher.
Heitor, já vestido, desceu a escada novamente e encontrou a mãe conversando com Valentina na sala, as duas tomavam uma xícara de café, mas só uma parecia feliz com a conversa.
— Heitor, querido! — A velha levantou a xícara para chamar a atenção de Heitor. — Trouxe algumas coisinhas para seu primeiro dia de aula!
Acenou com a cabeça para um saco posto em cima da mesa de centro e Heitor sorriu. Lembrara do que sua mãe tinha o dito dois dias atrás.
— Querido — Disse Antonella torcendo o pescoço para enxerga-lo às suas costas. — Vou ter que ir mais cedo para a padaria, eu vou deixar uns trocados com você para pegar uma carruagem até o colégio...
— Tudo bem — o garoto caminhou até a cozinha para servir-se do bule de café. — Acho que vou... — O garoto parou de falar assim que viu uma foto em cima do balcão, haviam outras fotos dentro de um envelope aberto, todas mostravam um rapaz que Heitor conhecia muito bem.
— Você o quê? Querido? — Antonella disse de costas, olhando para Valentina que mantinha um sorriso malicioso no rosto.
— Eu... Bem... Vou a pé... — Heitor não falou sério, não fazia a menor ideia de onde o colégio ficava, se esforçava para esconder o espanto.
— Tudo bem. — Antonella levantou-se, colocando a xícara e o pires sobre a mesinha e Valentina o imitou. — Vou indo, tome cuidado no caminho e tenha um ótimo dia de aula...
A mulher saiu pela porta seguida por Valentina, que dera um sorrisinho para Heitor antes de sumir pela porta.
O menino voltou a olhar para as fotos no balcão e tirou-as do envelope. Eram todas fotos de um homem de cabelos escuros, como os de Heitor; óculos quadrados, uma pequena barba também muito escura e um sorriso generoso. Em algumas fotos estava abraçando Antonella, ambos pareciam muito felizes. Era seu pai.
O que aquilo significava? Heitor nunca soube que sua mãe ainda tinha retratos de seu pai, todo esse tempo ela vinha escondendo... Ela ainda olhava para a foto às vezes... Isso parecia algo que Heitor deveria saber. Heitor imaginou como sua mãe poderia estar se sentindo. O próprio Heitor sentia-se vazio sem a companhia do pai e, nesses momentos, uma dessas fotos poderia ter sido reconfortante.
O garoto deu mais uma olhada à porta de entrada, que permanecia fechada e puxou mais uma foto do maço, seus pais sorriam no que parecia ser um restaurante. Pôs, então, no bolso da jaqueta e subiu para o quarto onde pegou sua mochila e partiu para o colégio a pé, sem fazer a mínima ideia de onde ficava.
O frio não estava mais tão severo hoje, a neve (por algum milagre) começara a derreter de ontem para hoje e Heitor notou pela primeira vez que havia um parque dois quarteirões ao lado da biblioteca. Não notara antes com o horizonte monótono; esbranquiçado de neve. Pensou por alguns minutos e decidiu perguntar para uma senhora que andava devagarinho pelo parque onde ficava o colégio.
Aproximou-se devagar e mesmo assim mais rápido que a pobre senhora, chamou-a e a velha se virou em um susto contagiante.
— Oh, você querido?
Heitor reconheceu a velha, era Janeth Joel, o menino fizera uma entrega em sua casa que não era muito longe dali.
— Olá! — o menino deu um sorriso forçado. — Pode me dizer onde fica o colégio Alvorada? Creio que não sej...
— Você estuda lá?! Olha só, meu querido, se tiver sorte estudará com minha neta. Ah sim, vocês devem ter a mesma idade... quinze, certo? — A velha notou que o garoto não estava muito a fim de conversar, então continuou: — Certo, é meio longe, precisa seguir essa rua até o final...
A velha apontou seu dedo que mais parecia um galho murcho de uma árvore muito branca e Heitor despediu-se com um aceno.
Com certeza iria chegar atrasado, não podia nem ver o fim da rua, mesmo assim seguiu-a até o fim. Repetindo em sua cabeça: “Vamos a pé... Heitor idiota! ”.
Quase quarenta minutos depois chegou ao colégio que não pareceu muito grande. A entrada estava uma senhora magricela, altíssima (seu corpo de louva-deus lembrava o de Valentina) e um vestido vermelho chamativo pousava sobre seus ombros que mais pareciam cabides. Cruzava os braços e fitava o garoto com um olhar severo, ele sabia que levaria uma bronca e mesmo assim forçou os olhares mais sínicos que podia.
— Bom dia, eu... bem, sou novo e me perdi no caminho...
— Isso são horas? Qual o seu nome, garoto?
Heitor respondeu e a mulher continuou fitando-o das pontas dos dedos ao cabelo engomado e de repente virou os olhares para suas costas, onde um garoto vinha correndo, visivelmente atrasado também.
— Afonso? Isso são horas? Vocês dois, francamente. Espero que seja a última vez e — A mulher notou que um sorrisinho nasceu no rosto de Afonso que suava feito um porco. — não pensem que eu vou deixar por isso mesmo. Seus pais serão notificados.
— Ah, qual é?! Meu pai tem mais o que fa...
— Disse alguma coisa?
— Não...
— Agora, entrem!
Os dois se entreolharam e andaram esbarrando-se para dentro do colégio, evitando ao máximo olhar para trás.
O colégio era bonito por dentro, uma pequena floresta encontrava-se à esquerda, limitada por um muro branco altíssimo, seguido por um pátio de concreto repleto de mesas de piquenique e à direita uma escadaria que provavelmente levava às salas. Os dois seguiram para as escadas e procuraram nas listas em um quadro de cortiça o número de suas respectivas salas.
“Olha aqui, mesma sala. O que eu te disse Heitor?! ”
O garoto lembrou da velha com quem falara minutos atrás, provavelmente estudaria na mesma sala que sua neta Angelina.
— Vamos, cara. Quer continuar batendo um papo com a velha diretora?
— Aquela era a diretora...?
O garoto parou de falar quando Afonso deu as costas e subiu os degraus correndo e fazendo o um gesto com a mão para que o seguisse. Foi o que fez, subiram três andares e pararam em frente a primeira porta à esquerda com o número 35 parafusado abaixo de uma pequena janela de vidro.
Afonso bateu na porta e Heitor sentiu um pequeno desconforto quando a porta escancarou-se e todos os alunos já estavam sentados com olhares curiosos para os dois. O professor estava com algumas folhas nas mãos e olhou furioso para os dois meninos.
— Agora, Afonso? Elo visto tem um novo integrante na “gangue-dos-sem-futuro? ”
— Não quis chegar atrasado eu...
— Calado! Você acha que pelo fato de seu pai ter muito dinheiro não precisa estudar?
— Eu só...
— Calado! Sentem-se!
Afonso lançou um olhar raivoso contra o professor e entrou na sala, Heitor foi logo atrás. Envergonhado e um pouco chateado consigo mesmo pela confusão logo no primeiro dia de aula.
Caminhou olhando para o chão, enxergando os calcanhares de Afonso e parou quando o menino parou.
— Aqui. — Disse apontando para duas mesas e ao lado.
Heitor sentou-se olhando para os lados e Afonso logo sentou-se também, logo atrás dele. O garoto correu os olhares pela sala que não estava mais olhando para ele, já que o professor recomeçara a aula:
“Como estava dizendo, antes dos dois delinquentes interromperem. Os Auranes tiveram uma gigantesca importância dentro do contexto em que Matarás...”
— Esse professor é o pior que eu já conheci. Homero, o nome dele... — Afonso cochichou à orelha de Heitor. — Dizem que já expulsou um garoto da sala porque ele não conseguia ler o trecho de um livro...
Heitor manteve-se atento a aula, mas uma pequena tosse chamou sua atenção. Ao olhar para o lado viu uma garota. Sim, era a menina que Heitor vira saindo da biblioteca de seu Héctor. Agora mais bonita que antes. Os cabelos curtos que paravam sobre os ombros tinham, agora, cachos castanhos e os olhos razoavelmente grandes davam um charme maior. Heitor só percebeu que estava distraído, olhando fixamente para a menina, quando Homero chamou seu nome.
— Sim? — Disse o garoto, num espanto.— Você vai responder ou só sabe sair por aí quebrando vidraças?Heitor apertou as mãos, era um absurdo o professor falar com ele daquela maneira, sem nunca tê-lo visto antes.— Qual a pergunta?O professor mordeu os lábios, mas pareceu respirar fundo e acalmar-se antes de prosseguir:— Qual o país que tem a maior fronteira com São Havier?— Brigada. — Heitor respondeu voltando os olhares para a garota, que em momento algum tirou os olhos do caderno, ao qual parecia desenhar alguma coisa. O professor ficou calado por alguns segundos, provavelmente incrédulo pela resposta correta.— Um ponto à menos na média.— O quê? Mas eu respondi certo! — Heitor disse, desviando os olhares da menina.— Mas estava babando pela srta. Delamare durant
Os garotos seguiram a pé para o grande lago, não demorou apenas quinze minutos como dissera Ícaro. Heitor teve a impressão de caminhar por no mínimo uma hora, talvez fosse o peso das bebidas em sua mochila, mas dali alguns minutos o garoto não aguentaria mais andar. Logo pode enxergar o azul à frente. O lago parecia calmo, e era realmente muito grande; quase não se via a outra margem, exceto por uma linha finíssima traçada sob o horizonte. — Aqui está ótimo. — Afonso disse, largando a mochila sobre a grama muito verde. — Parece que estamos sozinhos, ótimo! Heitor não conseguiu nem raciocinar, no que pareceram segundos, Marcus havia colocado uma música altíssima para tocar. Algo parecido com punk-rock socou os tímpanos do menino e todos os três largaram as camisetas e calças e se lançaram ao rio. Heitor ficou parado, sem compreender. — Vem, idiota! — Heitor viu as mãos dos garotos chacoalhando para cima e não pensou duas vezes. Deu um último go
O clima quente arrancava toda a energia de Heitor enquanto ele varria toda a padaria. Seu Omar já havia ido embora e sua mãe estava preparando a primeira fornada para entregas. Alguns minutos depois Antonella surgiu atrás do balcão estendendo-lhe a cesta com os pães.— Estes são para seu Héctor, o bibliotecário. Quando voltar tem outra entrega para o sr. Tirante. — O garoto fez uma cara de tédio e ela acrescentou, rapidamente — É aqui do lado.O sorriso da mulher melhorou, de certa forma, o seu dia. Heitor recolheu a cesta de pães e pôs-se à caminhar pela calçada que, sem a neve, parecia menos abandonada. Agora haviam mais pessoas na rua, do outro lado da calçada Heitor viu a velha sra. Joel carregando algumas batatas; andava tão devagar que parecia em câmera lenta. Acenou para Heitor e entrou na pequena casa que morava com sua neta.Heitor seguiu caminhando, a biblioteca não ficava tão perto da padaria de sua mãe. Heitor percebeu isso quando precisou ir pela primeira vez,
Heitor seguiu então para o outro lado, haviam centenas de prateleiras e o garoto começou a pensar o porquê de nunca ter entrado ali. Conseguiu ver títulos de todos os tipos, desde: “Uma viajem com gigantes” à “No pico da neblina” e até alguns livros mais velhos; depois de tirar a espessa camada de poeira pôde ler: “O príncipe Levi e suas estrelas”. Mas uma pessoa sentada em uma das mesas lhe chamou a atenção e, ao aproximar-se um pouco mais, conseguiu reconhece-la.— Quer dizer que a senhorita Áurea passa os intervalos aqui? — Berrou Afonso às costas de Heitor, enquanto corria para sentar-se com ela.— Eu não passo os intervalos aqui. — A menina respondeu com uma voz suave e tímida.— Claro, claro. Que merda você está lendo? — Afonso tentou puxar o livro mas a menina esquivou.Heitor conseguiu ler o título do livro enquanto sentava-se do outro lado da mesa, de frente para os dois.— O que são “Os ideais turcanos”? — O garoto perguntou para a menina e Afonso girou os o
Chegou mais de duas horas atrasado em casa e Antonella já estava dormindo em seu quarto. O menino pôs-se à subir os degraus até seu quarto e largou-se na cama meia iluminada pela luz que aparecia timidamente na janela redonda ao lado da velha cômoda de madeira escura.Quando acordou na manhã seguinte sua mãe não estava em casa, o garoto não se preocupou, sabia que provavelmente a mulher estaria na padaria, adiantando algumas tarefas. Comeu algumas torradas que Antonella deixara para o ele e partiu para o colégio, dessa vez sabia que não chegaria atrasado. Um carro muito bonito; de cor vermelho-azulado atravessou a estrada à toda velocidade, levantando poeira à uns dois metros de altura. Mas Heitor não se deixaria levar por nenhuma distração, chegaria no horário hoje, se não...Mas alguém chamou sua atenção do outro lado da rua
— Engraçado Victória. — Disse Áurea sem olhar para as meninas que soltaram mais risinhos irritantes.— Vim só dar um recadinho. — Liz e Mirela seguraram os risos com a mão e Victória continuou. — Fique longe dele, já tem dona e — Seus olhos pousaram nos cabelos da garota. — você não ficaria contente se essa coisa que você chama de cabelo ficasse... como posso dizer... grudados.As meninas explodiram em risadinhas e Afonso, que se encontrava atrás de Heitor, riu exageradamente alto. Heitor não conseguia suportar, aquelas garotas eram repugnantes e o fato de Afonso gostar daquilo...— Então, estamos entendidas? — Victória disse, agora com um sorriso maléfico.Áurea não respondeu, ainda tentava guardar o livro na mochila, mas a vergonha e a raiva pareciam lhe ter roubado suas capacidades mo
O parque ficava literalmente de frente à biblioteca e hoje estava cheio de pessoas. Muitos do colégio; Heitor conseguiu reconhecer Liz e Mirela que estavam, pela primeira vez, sem Victória Romênia e davam risinhos para um garoto loiro que Heitor lembrava ser um ano mais velho. Reconheceu também Angelina, uma menina de cabelos escuros e olhos castanho-claros muito bonita. A garota deu um sorrisinho para ele quando o viu. E, mais à frente, Áurea sentada em um banquinho ao lado de Icaro que ria feito uma criança que acabara de receber um aviãozinho de brinquedo, ou como Heitor, quando ganhava doces.Um calor subiu pelas pernas de Heitor, Icaro era o tipo de garoto que babava por Victória e Heitor sabia que, se menina estivesse ali, era muito provável que Icaro se juntasse à ela para zombar de Áurea.Sem pensar Heitor seguiu em direção aos dois, os olhos fixos em Icaro e
Finalmente dia vinte de fevereiro chegou. Heitor acordou como se tivesse dormido em cima de pedregulhos. Fora a pior noite desde que mudara-se. O nervosismo surgiu como um baque assim que debruçou-se para ficar sentado em sua cama. Olhou para a janelinha redonda de seu quarto e percebeu que o dia estava nublado, não duvidaria se dali à alguns minutos caísse uma tempestade. A sua jaqueta se encontrava pousada em cima da cômoda que ficava ao lado da janelinha e Heitor correu em sua direção. Levantou tão rápido que bateu os calcanhares no piso de madeira, fazendo um ruído seguido de um berro: — Heitor, se levantou agora?! — Sim, mãe. — Respondeu o garoto, enquanto revirava os bolsos da jaqueta. — Aqui! Guardou, então, o envelope na última gaveta da cômoda e jogou algumas meias por cima. — Vem tomar o seu café, querido. Preciso de sua ajuda hoje! — Estou indo. O garoto vestiu uma camiseta branca, um suéter azul-ciano e sua velha bo