Faltava pouco... muito pouco... estava quase pronto. Vinte e uma horas haviam se passado desde a sugestão controversa da bruxa. Vinte e uma longas horas para que a arena do grande domo de Adot – lugar onde Duoff humilhara Maxis em sua demonstração magistral de combate corpo-a-corpo – se transformasse no epicentro do que muitos preferiam chamar de “ritual sombrio”.
Mas por que sombrio?
Mildred passaria uma parte daquele dia atarefado a me contar histórias sobre os espíritos que habitam uma dimensão mística conhecida como “O limbo perdido de Chacrau
Duas mulheres que há instantes atrás ainda confeccionavam bonecos de pano assumiram suas novas funções ritualísticas junto a dois homens que seguravam grossas baquetas de madeira atrás dos tambores ao lado da porta de acesso. Enquanto isso, dois rapazes magros trataram de deslocar um caldeirão médio até a fogueira próxima, pendurando suas duas alças em dois suportes de metal que flanqueavam a lenha, um de cada lado. Dois membros do conselho caminharam em meio a candelabros e copinhos com velas nesse ínterim, passando por dois sujeitos: um mago e uma aprendiz, que corriam em direção a uma pira ainda apagada. Os demais bruxos de azul ao longo da arena voltaram suas cabeças a livros no instante em que Lilandra e Kingler ergueram dois cajados de metal para o céu, anunciando a proximidade
(“Eu soube! Percebi assim que o vi!”) ** – Mildred? (“Foi estranho no começo, admito! Você apareceu tão de repente! Seus olhos! Vi tudo em seus olhos!”) ** – Mildred! (“Este mundo é tão louco! Tão louco!”) ** – Mildred! O feitiço funcionou! Estamos dentro! (“Não é estranho? Parece que nos conhecemos há anos!”) ** – Sei disso, mas é melhor nos apressarmos! Está tudo escuro
Essa casa... Está claro aqui. Mas ainda há escuridão vindo da janela com grades, pois é noite. Lua cheia? Algo não me deixa ver com perfeição. Sim... lua cheia... lá fora. Frio também. Deve estar bastante frio do outro lado destas paredes, creio. Aqui dentro não. Dois castiçais a minha volta tornam o cômodo bem acolhedor. Encontro-me num pequeno aposento agora. O castiçal maior foi colocado sobre uma prateleira presa à parede, logo abaixo da janela. O menor permaneceu no chão sob um mapa emoldurado em bronze que é o único enfeite deste recinto.
Não consigo mover um músculo de tão chocado que estou. Mildred, à minha direita, também permanece imóvel. Ela é o único ser além de mim a ocupar o aposento comprido e muito bem ornamentado onde nos encontramos. Pelo menos deste lado do espelho. – Olá, amor? Sentiu minha falta? – indaga-me um reflexo conhecido. Sim, é ela! A jovem que encontrei encarcerada ao longo de meus delírios na caverna murgon. A bela mulher do retrato cujos trajes são idênticos àqueles que usou numa cela, dias atrás, quando nem fazia parte da realidade. Faz agora? – Obrigada, feiticeira. – Ela mantém seus olhos castanhos em Mildred enquanto fala. – Sou incapaz de achar palavras para qualificar o qu
Abri pálpebras para a realidade novamente. Diante de mim: Evelyn, Dehvorak, Ana e o bardo em cadeiras de bambu – cada um com uma tigela no colo. Sopa? Sobre nossas cabeças pairavam dezenas de barras frágeis de madeira, cruzando-se horizontalmente em várias direções para suportar a palha que compunha o telhado da cabana onde passei as últimas noites. Quem me notou primeiro foi Rapskin, emitindo um grito e um sorriso. Os demais despertaram da tensão para a alegria num piscar de olhos. Eu estava vivo. Mas e quanto a Mildred?Nossa cabana era pequena e não possuía divisórias. Compunha-se de um rec
Lilandra estava absolutamente certa naquilo que disse ao sair. Havia um universo caótico sob a superfície enigmática de Mildred que, mesmo entre os membros do conselho, devia ser pouco conhecido. Estranhos sussurros (acompanhados de uma dor angustiante) brotaram em minha alma tão logo a mais velha deixou nosso alojamento. Pela primeira vez fui capaz de sentir a bruxa através de seu espírito, como fizera comigo tantas e tantas vezes. Talvez até mais profundamente. Quem saberia?Demônios... Pelos relatos de Gabriele, eu carregava um. Segundo frases de Mildred, outro h
Apesar de experimentar dificuldades em iniciar meus relatos, soltei-me com o tempo, adquirindo desenvoltura semelhante à que demonstrei na primeira noite com o conselho, quando expus minha situação. Os quatro ouvintes, já sem suas tigelas, mantinham-se absolutamente atentos. Comecei descrevendo estágios inaugurais de meus delírios, com Mildred deixando escapar sua fragilidade em frases soltas e declarações amorosas antes de escutar vozes oriundas de minha memória recente. Não contei tudo sobre a moça, claro. Cuidei de omitir certas confissões e também segredos que descobri mais tarde até porque se tratava de assunto nosso. Tive de mencionar, no entanto, o afeto que partilhávamos, pois seria difícil citar Gabrie
Ana regressaria mais tarde àquele alojamento para anunciar um atraso nos planos da colega. Tal imprevisto, ao contrário do que poderia ser pensado, não ocorreu em virtude da requisição de Dehvorak. Na verdade, foi consequência de um conflito entre Lilandra e Mildred no interior da outra cabana, onde esta havia abandonado o conselho antes de seguir furiosíssima em direção ao templo de bambu. Avistei-as de longe pela janela. Lilandra em seu vestido amarelo e Mildred (fisicamente pálida como de costume e não cinzenta) trajando sua toga ritualística: vermelha com faixas amarelas pintadas no tecido. Ana pediu que permanecêssemos sob o teto de palha enquanto o impasse não fosse resolvido. Tudo bem