Cap 03

#Lucy

Dirigindo meu novo conversível prateado pela Vine Street, rumo ao Colégio Saferat, comento com Nala, minha melhor amiga:

— Sempre que desço a capota deste carro, meu cabelo fica todo arrepiado... Como se eu tivesse passado pelo centro de um ciclone!

Aparência é tudo meus pais me ensinaram esse lema, que rege minha vida. Foi só por isso que não comentei nada sobre o BMW, este extravagante presente de aniversário que meu pai me deu, duas semanas atrás.

— Moramos a meia hora de distância de Windy City — diz Nala, mantendo a mão contra o vento, enquanto nos deslocamos. — Chicago não é exatamente famosa por seu clima ameno. Além do mais, Lu, você parece uma deusa grega, loura, de cabelos rebeldes... Só está um pouco nervosa, porque vai rever Samuel.

Meu olhar passeia pelo painel do carro, até um porta-retratos em forma de coração, com minha foto e a de Samuel.

— Um verão inteiro à distância faz as pessoas mudarem.

— A distância torna a paixão mais intensa — Nala replica. — Você é a líder da torcida e, ele, o capitão do principal time de futebol do colégio. Vocês dois têm que dar certo... Senão, os planetas do sistema solar vão acabar se desalinhando.

Durante o verão, Samuel me ligou algumas vezes, da cabana de sua família, onde foi passar férias com os amigos. Mas não sei em que pé está, agora, o nosso relacionamento. Samuel só voltou ontem à noite.

— Adoro esses jeans — diz Nala, olhando minha calça desbotada, made in Brasil. — Vou pedir emprestado, bem antes do que você imagina.

— Minha mãe detesta jeans, principalmente este — respondo, parando num semáforo e ajeitando os cabelos, tentando domar meus cachos louros. — Ela acha que parece roupa comprada em brechó.

— E você não contou a ela que vintage está na moda?

— Contei, mas você acha que ela ouviu? Mal prestou atenção quando perguntei sobre a nova enfermeira de Karla...

Ninguém entende como são as coisas, lá em casa. Felizmente, posso contar com Nala. Ela pode até não entender, mas tem paciência para me ouvir e sabe manter segredo sobre minha vida familiar. Além de Samuel, Nala é a única pessoa que conhece minha irmã.

— O que aconteceu com a outra enfermeira? — ela pergunta, abrindo minha caixa de CDs.

— Karla arrancou um punhado de cabelos dela.

— Uiii!

Entro numa vaga, no estacionamento do colégio, com a mente mais concentrada em minha irmã do que no local onde estou. Dou de cara com um rapaz e uma garota, numa motocicleta. Freio bruscamente e os pneus cantam.

Pensei que a vaga estivesse vazia.

— Ei, você não enxerga por onde anda, sua cadela?! — grita Cristina Malony, a garota na garupa da moto, com a mão direita fechada e só o dedo médio erguido. Obviamente, ela perdeu a palestra sobre a boa educação no trânsito.

— Desculpe — eu digo, elevando a voz para ser ouvida, apesar do rugido da moto.

— Pensei que o lugar estivesse vago.

Só então percebo de quem é essa moto em que quase bati. O piloto se vira... Olhos escuros, furiosos. Lenço vermelho e preto na cabeça. Eu me afundo atrás do volante, tanto quanto posso.

— Droga! — digo, estremecendo. — É Mattias Belmonte!

— Meu Deus, Lu! — diz Nala, em voz baixa. — Eu quero estar viva, para ver a nossa formatura. Vamos dar o fora daqui, antes que ele resolva matar nós duas.

Mattias me lança um olhar diabólico, enquanto desce o descanso da moto, com o pé. Será que ele vai me encarar? Tento engatar a ré, movendo freneticamente a haste do câmbio, para trás e para frente. Não é nenhuma surpresa que meu pai tenha me comprado um carro de transmissão manual, sem ter tempo de me ensinar como funciona a coisa. Mattias avança. O instinto me diz para abandonar o carro e fugir, como se ele estivesse preso nos trilhos e um trem viesse em minha direção. Olho rápido para Nala, que remexe na bolsa desesperadamente, como se procurasse alguma coisa. Ela só pode estar brincando!

— Não consigo achar a ré na droga deste carro. Preciso de ajuda. O que você está procurando? — pergunto.

— Eu? Nada... Estou só tentando evitar um contato visual com um cara da Sangue Latino — diz Nala, entre os dentes. — Vamos, mexa-se, garota. Além do mais, eu só sei dirigir carros com transmissão automática.

Finalmente consigo engatar a ré e recuo, com os pneus cantando alto, enquanto procuro outra vaga para estacionar. Depois de deixar o carro no setor oeste, bem longe de um certo membro de uma certa gangue, cuja reputação assustaria até o mais violento jogador de futebol de Saferat, Nala e eu começamos a subir a escadaria que leva à entrada principal do colégio. Para nosso azar, Mattias Belmonte e seus amigos da gangue estão bem ali, junto à porta.

— Passe direto — diz Nala, baixinho. — E, principalmente, não olhe nos olhos deles.

Mas é bem difícil fazer isso, quando Mattias Belmonte se aproxima, bloqueando meu caminho.

Que oração se deve rezar, no momento em que a gente sabe que vai morrer?

— Você é uma péssima motorista — diz Mattias, com seu leve sotaque latino, a voz grave e a postura típica de quem diz Eu Sou o Cara.

Mattias até pode parecer um modelo da Abercrombie, com esse corpo espetacular e esse rosto perfeito. Mas, pelo seu jeito e sua pose, parece antes ter saído de um arquivo da polícia.

Meninos e meninas da zona norte não se misturam com meninos e meninas da zona sul. Não pense que nos  achamos melhores do que eles... Apenas, somos diferentes. Crescemos na mesma cidade, mas em lados totalmente opostos. Vivemos em grandes casas, à margem do Lago Michigan, enquanto eles vivem à margem dos trilhos de trem.

Nós somos, parecemos, falamos, agimos e nos vestimos de modo distinto. Não digo que isso seja bom ou mau...

É apenas a maneira como as coisas são, em Saferat. E, sinceramente, a maioria das meninas da zona sul me tratam como Cristina Malony fez, me odeiam por ser quem sou... Ou melhor: quem elas pensam que sou.

O olhar de Mattias passeia lentamente por meu corpo, percorrendo-me inteira, antes de voltar ao meu rosto. Não é a primeira vez que um garoto me observa de cima a baixo. Só que nunca vi alguém fazer isso, tão descaradamente, como Mattias. E, assim, tão de perto... Posso até sentir meu rosto corando.

— Na próxima vez, tente guiar de olhos abertos — diz ele, numa voz fria e controlada. — É bom a gente olhar por onde anda, entende?

Mattias Belmonte está tentando me intimidar. É um verdadeiro profissional, nisso. Mas não vou deixar que me vença, nesse joguinho de intimidação. Não vou, mesmo me sentindo assim, petrificada de medo. Dando de ombros, olho para ele com desdém, o mesmo desdém que uso para afastar pessoas indesejáveis, e respondo:

— Agradeço a dica.

— Se estiver precisando de um verdadeiro homem, para ensiná-la a dirigir, posso lhe dar umas lições.

As vaias e assovios dos parceiros de Mattias fazem meu sangue ferver.

— Se você fosse um homem de verdade, abriria a porta para mim, em vez de bloquear meu caminho — digo, admirada com minha resposta ferina, embora meus joelhos ameacem dobrar-se.

Mattias recua alguns passos, abre a porta e se inclina, como se fosse meu mordomo. Está zombando de mim...

Ele sabe disso, eu sei disso, todos sabem disso. Olho de relance para Nala, que continua remexendo desesperadamente na bolsa, à procura de nada. Nala é totalmente sem noção.

— Vá cuidar da sua vida — eu digo a Mattias.

— Assim como você cuida da sua? — ele reage, asperamente. — Pois vou lhe contar uma coisa, otária: sua vida não é real, é falsa... Assim como você.

— Antes isso, do que viver como um perdedor — eu rebato, esperando que minhas palavras firam Mattias tanto quanto as dele me feriram.

Puxo Nala pelo braço, empurrando-a em direção à porta aberta. Vaias e comentários nos acompanham, enquanto entramos no colégio. Finalmente, solto a respiração que estava presa... E então me viro para Nala.

— Lu! — Minha melhor amiga me encara com os olhos arregalados. — Você está querendo morrer, ou algo assim?

— Por que Mattias Belmonte se dá o direito de intimidar todo mundo?

— Bem... Talvez por causa da arma que ele traz escondida, nas calças... Ou das cores da Sangue Latino — diz Nala, destilando sarcasmo em cada palavra.

— Mattias não é tão estúpido, a ponto de trazer uma arma para a escola — eu argumento. — E me recuso a ser intimidada por ele, ou por qualquer outra pessoa...

Ao menos aqui, no colégio, o único lugar onde posso manter minha fachada de perfeição... E todo mundo acredita.

De repente, excitada pelo fato de estar iniciando meu último ano em Saferat, seguro Nala pelos ombros:

— Estamos no último ano do segundo grau! — digo, com o mesmo entusiasmo que uso quando comando a torcida, durante os jogos de futebol.

— E daí?

— Daí que, a partir de agora, tudo vai ser per-fei-to.

O sinal toca... E não é exatamente o som convencional, desde que os estudantes votaram, no ano passado, pela substituição do sinal comum por trechos de músicas, nos intervalos entre as aulas. Agora, está tocando Summer Lovin’, da trilha sonora de Grease. Nala começa a caminhar pelo corredor.

— Vou cuidar para que você tenha um funeral per-fei-to, Lu, com flores e tudo o mais.

— Quem morreu? — pergunta alguém, atrás de mim.

Eu me viro... E ali está Samuel, com os cabelos castanhos mais claros, por conta do sol de verão, e um sorriso tão largo, que ocupa quase todo o seu rosto. Eu gostaria de ter um espelho para ver o estado da minha maquiagem. Mas com certeza Samuel vai me convidar para sair, mesmo se ela estiver borrada, não é mesmo? Corro para lhe dar o maior abraço do mundo...

Ele me envolve em seus braços, me beija suavemente, nos lábios. Então se afasta um pouquinho e torna a perguntar:

— Quem morreu?

— Ninguém — eu respondo. — Esqueça isso. Esqueça tudo, lembre-se apenas de que estamos juntos.

— Isso é fácil... Ainda mais quando você está assim, tão gata. Samuel volta a me beijar.

— Peço desculpas por não ter ligado ontem, Lu. Foi uma loucura, havia muita bagagem para descarregar e tudo o mais... Você sabe.

Eu sorrio, feliz, porque apesar de termos passado o verão separados, nosso relacionamento não mudou. O sistema solar está seguro, ao menos por enquanto.

Samuel me enlaça pelos ombros e a porta da frente se abre. Mattias e seus amigos irrompem por ela, como se estivessem ali para cometer um assalto.

— Por que eles insistem em vir ao colégio? — Samuel murmura, para que somente eu escute. — De qualquer jeito, metade deles provavelmente vai cair fora, antes que o ano termine.

Meus olhos rapidamente encontram os de Mattias... E um calafrio me percorre a espinha.

— Quase bati na moto de Mattias Belmonte, nesta manhã — eu conto a Samuel, já que Mattias não pode nos ouvir.

— Quase? Pena que você não acertou.

— Samuel! — eu o repreendo.

— Ao menos nosso primeiro dia de aula teria alguma emoção. Este colégio é terrivelmente entediante.

Entediante?

Quase sofri um acidente, uma garota da zona sul me fez um gesto obsceno, um membro de uma gangue perigosa me desafiou... Se isso foi uma amostra do que me espera, neste último ano, bem... Eu diria que o Colégio Saferat pode ser tudo, menos entediante.

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