A tempestade ruge como uma fera descontrolada, e a noite é uma cortina negra cortada apenas pelos relâmpagos que rasgam o céu. A água da chuva não cai, ela despenca, formando rios que correm selvagens pelas ruas de paralelepípedo. Marta, encharcada e exausta, luta contra a correnteza que se forma ao longo da calçada, cada passo um desafio brutal. Seus pés escorregam, suas pernas fraquejam, e o peso da água a empurra, impiedoso.
Um bueiro à frente é uma boca aberta, um abismo negro onde a enxurrada parece querer engoli-la viva. Marta tenta se segurar em um poste, mas seus dedos escorregam. O pânico a atinge como uma lâmina afiada, a ideia de ser tragada por aquela corrente furiosa a paralisa por um segundo eterno.
— Não... não... — sua voz sai num sussurro abafado pela fúria da chuva.
Quando está prestes a perder o equilíbrio, uma mão firme agarra o seu braço. Depois outra. Dois homens, vestidos com uniformes encharcados dos bombeiros, se esforçam para puxá-la de volta à calçada.
— Te pegamos! — grita um deles, a voz firme, mas ofegante.
Ela sente seu corpo sendo erguido, afastado da borda traiçoeira. O coração martela em seu peito como se quisesse romper as costelas.
— Tá tudo bem agora, moça — diz o outro bombeiro, enquanto a envolve num cobertor grosso e pesado.
— Agora você está segura.
A respiração de Marta é errática, e seu corpo treme, mas não sabe dizer se é de frio ou puro choque.
— Eu... estou bem. Só preciso... chegar em casa — murmura, tentando recuperar algum controle sobre si mesma.
Os dois homens trocam olhares, céticos.
— Tem certeza? Podemos levar você para um hospital...
— Não! — ela responde com firmeza.
— Por favor... só me deixem na pensão. Fica logo ali, na parte alta.
Um dos bombeiros, talvez sensibilizado com a figura frágil e perdida diante dele, acena com a cabeça.
— Tá certo. Vamos te levar.
O trajeto é curto, mas Marta sente cada segundo como uma eternidade.
— Chegamos. Tem alguém pra te ajudar lá dentro? — pergunta o bombeiro, preocupado.
Marta apenas balança a cabeça.
— Sim. Obrigada...
Ela desce do caminhão de resgate, o cobertor ainda apertado ao redor do corpo, e caminha em direção à porta que parece mais sombria do que nunca.
A porta da pensão range ao abrir, e a dona, ao ver a cena, arregala os olhos.
— Menina, o que aconteceu? De onde vem a essa hora? — a voz da mulher soa dura, mas há um lampejo de compaixão em seu olhar.
— Não tenho como pagar... Vou pegar meus pertences e vou morar nas ruas. — Marta responde, a voz embargada.
A mulher suspira fundo, observando a figura frágil à sua frente.
— Toma um banho quente e dorme essa noite. Amanhã você desocupa o quarto. — decide, seca, mas direta.
Tomada por uma onda de gratidão, Marta balança a cabeça, incapaz de dizer mais nada. Antes de fechar a porta, olha para os bombeiros uma última vez.
— Obrigada. — sussurra.
Eles apenas acenam, e a porta se fecha.
Marta vai direto para o seu quarto, fecha a porta com cuidado. Seus dedos hesitam na fechadura antes de girar a chave. Só então, com o coração ainda acelerado, desaba num choro sofrido e abafado pelo medo, se acomoda na cama dura. A exaustão a engole em um sono inquieto.
O sono vem rápido, mas não é tranquilo.
Marta está consciente que precisa desocupar o quarto, mas antes disso, resolve buscar ajuda.
Amanhece e ela sabe que não há como escapar do destino, As moedas tilintam na palma da sua mão. Ela conta uma, duas, três vezes, como se o número fosse mudar, como se um milagre pudesse fazer surgir o que lhe falta. Mas não há milagre. Não há dinheiro suficiente para mais uma noite na pensão onde está há semanas, sobrevivendo de restos, agarrando-se à última gota de esperança.
Tenta ignorar o nó na garganta, mas ele está lá, lembrando-a de que fracassou. Tudo o que sonhou ao sair do interior se desfez como poeira levada pelo vento. Agora, só lhe restam as ruas.
Segura o celular velho nas mãos, a tela rachada refletindo seu rosto abatido. Procura algum sinal de esperança, um nome para ligar, uma saída, mas a agenda vazia é um lembrete cruel da sua solidão. Caminha com rumo certo, cada passo ecoando como uma contagem regressiva para o abismo que a espera, ou não.
Não sabe como, mesmo fraca, seus pés a levam até uma igreja. O edifício é antigo, as portas entreabertas convidam para dentro. Não é religiosa, mas a dor a guiou até ali. Talvez porque, no fundo, ainda queira acreditar que Deus não a abandonou.
Entra, e o silêncio a envolve. O cheiro de cera derretida e madeira antiga traz uma sensação agridoce de conforto e tristeza. As sombras dançam nas paredes, criadas pela luz tímida das velas, e cada estalo da madeira velha ecoa como se o próprio tempo chorasse com ela.
Marta se ajoelha, sem forças para segurar as lágrimas que transbordam sem controle.
— Meu Deus… — sua voz sai trêmula, um sussurro entre soluços.
— Eu tentei… Eu juro que tentei. Mas eu não aguento mais. Eu não tenho para onde ir, não tenho ninguém… Eu só queria uma chance. Só uma. Eu só quero ser alguém, quero trabalhar, quero uma vida digna… Mas eu estou cansada, cansada de lutar e nunca sair do lugar. Eu preciso de um sinal, Senhor… Por favor, me mostre que só o Senhor é Deus! E que ainda olha por mim… Me ajude… Por favor, olhe por mim… Eu imploro.
Seu peito sobe e desce com a respiração trêmula. O silêncio pesa, e a dor a engole inteira.
— Eu só preciso de uma oportunidade… — sussurra, apertando as mãos contra o peito. — Te imploro ajuda, envia um anjo para me socorrer, Senhor!
O único som além de sua voz é o gotejar distante da chuva do lado de fora, até que um ruído diferente surge, passos…
Pesados, firmes… aproximando-se.
Marta levanta a cabeça devagar, a respiração presa no peito. Seu coração dispara. Não esperava companhia, muito menos aquela figura imponente parada ao seu lado.
Quem é ele? O que quer ali, tão próximo? Será a resposta às suas preces… ou mais um capítulo de sua desgraça?
MartaO estranho está ali, observando-a. Alto, imponente, com um terno impecável que denuncia o seu poder e riqueza. Os sapatos caros brilham sob a luz fraca da igreja. Mas o que mais a assusta são seus olhos, negros como a noite, penetrantes, porém vazios, sem qualquer vestígio de emoção. Um homem lindo… mas que aparenta não ter alma.— Você quer uma chance, garota? — a voz dele soa firme, inesperada no silêncio da igreja.Um arrepio percorre a espinha de Marta. Sua mente grita para ter cautela, mas há algo naquele homem… Algo que a faz acreditar que talvez essa seja a resposta que tanto pediu.— Sim… — sua voz sai hesitante, mas verdadeira. — Eu só preciso de uma chance, senhor.O homem cruza os braços e a encara por um longo momento, como se avaliasse algo dentro dela. Então, ele solta um leve suspiro e diz:— Venha comigo. Vamos conversar.Jonathan a estuda por um longo momento, seu olhar cravado nela, como se tentasse decifrar o que há por trás daquela jovem despedaçada. Há algo
A chuva tamborilava impiedosa contra o teto do carro, criando uma melodia sombria que refletia o estado de espírito de Jonathan. Ele apertava o volante, os nós dos dedos esbranquiçados pela força inconsciente que aplicava. O cheiro de couro caro do interior luxuoso contrastava brutalmente com a figura frágil ao seu lado. Marta.A mulher maltrapilha que ele encontrara de joelhos, em prantos, dentro daquela igreja silenciosa. A mesma igreja que ele visitava todos os anos, no mesmo dia, para relembrar a morte de sua esposa. O destino tinha uma maneira cruel de entrelaçar caminhos, e ali estava ele, dirigindo sob a tempestade, levando para casa uma completa estranha.O silêncio dentro do carro era espesso, mas estranhamente confortável. Jonathan desviou o olhar da estrada por um breve instante, encarando Marta. As roupas molhadas colavam ao corpo dela, evidenciando sua magreza. Os cabelos escuros grudavam na pele pálida, as mãos trêmulas seguravam um velho celular. Um espectro de alguém q
O silêncio da noite era traiçoeiro.Jonathan encarava a porta fechada do quarto de Marta, o peito subindo e descendo em um ritmo descompassado. O desejo latejava, queimava, corroía cada linha do autocontrole que passou anos cultivando.Isso não podia estar acontecendo. Não com ele. Seu olhar vagou pelo corredor escuro, buscando uma distração, algo que o afastasse da lembrança daquela garota de cabelos castanhos e olhar penetrante. Mas não adiantava. A presença dela estava impregnada em sua pele, como um veneno lento que se espalhava sem piedade.Lá dentro, Marta descansava. Inocente. Jonathan precisava sair dali. Precisava respirar. Mas quando fechou os olhos, tudo que viu foi a lembrança que o assombrava há três anos: o rosto de Aira. E, agora, o de Marta, sobreposto ao dela. O tempo não era justo. E o destino, cruel.Marta era um problema. Não porque representava uma ameaça, mas porque o fazia lembrar que ele ainda era um homem de carne e osso. E isso... era inaceitável.Marta vol
O cheiro forte de café recém passado se espalha pela cozinha, misturando-se ao leve aroma da massa quente dourando na frigideira. Marta se movimenta com precisão, cada gesto carregando um cuidado que vai muito além da obrigação. Pela primeira vez em muito tempo, sente que pertence a algum lugar.Jonathan aparece na soleira da porta, observando-a em silêncio. A presença dele é imponente, mas dessa vez há algo diferente em seu olhar. Algo que Marta finge não perceber.— O que é isso? — Ele franze a testa ao vê-la preparar uma tapioca e recheá-la com queijo.— Tapioca, senhor. Quer experimentar?Jonathan hesita por um instante, mas aceita. Leva a primeira mordida e sua expressão se transforma. As sobrancelhas arqueiam, os lábios pressionam em um movimento involuntário de aprovação. Marta sorri discretamente.— Isso é… bom — ele admite, mastigando devagar.Ela continua com seu próprio café da manhã, mas antes mesmo de dar a primeira mordida, ele a interrompe:— Por favor, faça outra para
Capítulo 9O tempo tem um jeito estranho de transformar pequenos detalhes em algo maior do que deveriam ser. E talvez seja isso que está acontecendo agora. Marta não percebe de imediato, mas a rotina se moldou de forma diferente nos últimos dias. A amizade com Eduardo floresce em meio aos gestos simples, trocas sutis que falam mais do que palavras. Se Jonathan percebeu? Provavelmente não. Mas e quando ele perceber?Enquanto a água esquenta para o café de Jonathan, Marta observa Eduardo com o canto dos olhos. Ele entra na cozinha com um sorriso despreocupado.Ele se senta, observando enquanto ela prepara bolos e a sua tradicional tapioca, que o motorista também aprendeu a apreciar. O aroma preenche a cozinha, criando um ambiente acolhedor.— Sabe, você cozinha bem demais. O patrão teve sorte de encontrar você. — Eduardo comenta, pegando um pedaço de bolo antes mesmo de ela servir.— Sorte nada, ele é exigente — Marta brinca, se sentando em frente a ele. — Mas e você? Hoje só trabalha a
Marta sente como se a sua alma estivesse se despedaçando junto com os fragmentos do porta-joias que jazem no chão frio. As suas mãos tremem enquanto tenta recolher os cacos, mas logo desiste. O pranto convulsiona o seu corpo, e ela sente o peso esmagador da humilhação. Engolida pelo desespero, arrasta-se até o próprio quarto, suas pernas mal sustentando o peso do corpo. Ao encostar-se à parede, desliza até o chão, os soluços rasgando a sua garganta. — Onde foi que eu errei? — murmura, a sua voz fraca se perdendo na imensidão solitária daquele quarto onde havia começado a cultivar a esperança de uma vida melhor, e que agora, não era mais o seu pequeno espaço no mundo.Depois de longos minutos, em um impulso, ela reúne o que resta da sua dignidade. O corpo ainda treme, mas ela se obriga a ficar de pé. Entra no banheiro e deixa a água quente escorrer sobre o seu corpo esguio, tentando, de forma desesperada, lavar a dor. Quando sai, veste-se com pressa, pega sua velha mala, a mochila des
Jonathan quando chega ao portão principal da mansão, os seguranças recuam ao ver seu semblante sombrio. Sem esperar por qualquer sinal, ele empurra os portões e avança. Seus passos são firmes, determinados, cada célula de seu corpo consumida pelo fogo da possessividade e da ira.Marta e Eduardo já estão do lado de fora. Ela parece menor do que nunca diante da grande mala aos seus pés. Eduardo, por outro lado, está próximo demais. Próximo o suficiente para alimentar os demônios que gritam dentro de Jonathan.— O que diabos está acontecendo aqui? — Sua voz corta o ar como uma lâmina afiada. Marta se sobressalta. Eduardo se coloca instintivamente à frente dela, o que apenas acende mais o fogo que arde dentro de Jonathan.— Você não tem o direito de falar comigo assim. — Marta responde, a voz ainda trêmula, mas carregada de uma determinação que ele não esperava. — Você me expulsou, eu estou indo embora. Não há mais nada que me faça permanecer aqui.Jonathan solta uma risada amarga. O ven
Marta encara a cidade que se desenrola pela janela do carro. A paisagem passa em um borrão de luzes e movimentos, mas nada disso a distrai do peso que carrega no peito. Eduardo mantém uma das mãos no volante e a outra apoiada no câmbio, os olhos atentos ao trânsito, mas a expressão séria deixa claro que sua preocupação está nela.— Você quer falar sobre o que está sentindo? — ele pergunta, quebrando o silêncio que se instalou entre os dois.Ela hesita por um momento, respirando fundo antes de responder.— Não sei nem o que sinto agora... só parece que tudo desmoronou de uma vez.Eduardo solta um suspiro curto e volta a atenção para a rua. Ele já viu esse tipo de olhar antes, já conheceu gente que perdeu tudo e se perdeu junto. Mas Marta... Marta não merece passar por isso.— Você não precisa enfrentar essa situação toda sozinha. — ele diz, a voz carregada de certeza. — E muito menos precisa dormir na rua. Você vai ficar comigo o tempo que for necessário.Ela abaixa o olhar para as pr