Sobrenatural.
O mundo escureceu e as estrelas foram varridas do céu por uma enorme cauda de serpente. Grilos e gafanhotos preenchiam as ruas, mordendo e importunando tudo o que estava no caminho deles. Pessoas desesperadas corriam para dentro de suas casas enquanto começava a chover faíscas de fogo sobre suas cabeças.
A garota suspira amedrontada, presa numa bolha atemporal, ela observa tudo aquilo desesperada para ajudar aquelas pessoas desconhecidas. Não queria presenciar o fim dos tempos. O fim da espécie humana.
Uma mulher chora e grita para que ajudem sua pequena filha presa abaixo de um poste ligado à rede elétrica. O peito de Michelle dói ao presenciar a cena. Ninguém se põe a disposição da pobre mulher, todos correm e se atropelam pelas ruas e calçadas para salvar suas egoístas e medíocres vidas.
O chão se abre, labaredas de fogo e vapor quente de água sobem a superfície, arrancando sem dó a pele das pessoas e as transformando em cinzas. O planeta grita dentro de seu próprio ventre, colocando um fim em todas suas criações. O fim do mundo chegou.
A mãe desesperada é puxada por fortes ventanias e arremessada contra os vidros de uma antiga catedral, despedaçando seu corpo e os belos vitrais pintados à mão que retratavam imagens de alguns santos da igreja católica. Aquela construção negra e rústica traz vertigens à mente da menina. Lembranças não tão agradáveis de velhos amigos.
E a criança? Lembrou ela da pequena garotinha. Nada mais restava no lugar onde ela deveria estar. Nada além de fogo e desespero.
Do agitado mar levanta-se uma enorme besta da cor do sangue, rosnando e deteriorando tudo a sua volta. Com a gigantesca boca, que ocupa toda a face da criatura, ela puxa todas as almas que ousam passar próximo de sua redondeza. Com suas asas monstruosas ela agita o ar, dando origem a fortes redemoinhos que destroem a paisagem urbana.
Michelle vê o monstro avançar em sua direção. Certeiro como um míssil lançado para matar. A garota não se encolhe, nem treme, seu corpo não reage perante a situação. Estática e parada como uma estátua, ela observa o caminhar apressado da besta apocalíptica vindo a seu encontro. Com os olhos fixos, quase saltando de suas órbitas, permanece ali... Pensativa e aflita. Presa em seu próprio mundo, vendo o mundo real desabar perante seus pés. Seria tarde para arrependimentos?
O que a torna especial? Por que está ali? Quem a colocou ali? Por que nessa ocasião?
Pecados. Muitos e poucos pecados. O que é o pecado? Por que isso importa? O fim dos tempos está sendo marcado por pecados. Milhares de pecadores pagando por seus erros. Seria ela a que possui a maior marca do pecado? O que faz com que a besta venha em sua direção?
O monstro se aproxima. Silencioso, porém se fazendo ser ouvido por todas as civilizações. Seu hálito azedo e ácido se encontra com a pele da garota. Quente como fogo. Ele abre a enorme boca, pronto para se alimentar da menina pecadora.
***
E ela suspira.
Seu pulmão se enche de ar. Seu coração bate acelerado. Sua cabeça dói, tonteando o resto do corpo. Ânsias, náuseas, nada disso importa. A dor a destrói por dentro.
Seu ouvido chia, como uma caixa de som estragada. Vibra e aumenta a dor na cabeça da garota. Barulhos, ruídos e vozes. O que diabos está acontecendo? Quem está ali com ela? Onde raios ela está?
— Assim, de repente. O senhor tem certeza? — ouve alguém dizer.
— Infelizmente, não sei te explicar o que aconteceu com o organismo dela. — O homem faz uma pausa. Michelle sente que ele está olhando para ela. — Deveria ficar feliz que sua irmã acordou.
Matheus. Seu irmão está ali em algum lugar. Ela se esforça para falar, para chamar o nome de seu querido irmão caçula, mas nada sai de sua garganta. Nem mesmo um chiado.
— Claro que estou — diz a pessoa que ela julga ser seu irmão — Mas, coisas assim, não acontecem do nada. Deve ter uma explicação lógica para isso.
Por que a voz dele está diferente? Parece mais grossa. Como se ele tivesse crescido desde a última vez que o ouviu. Michelle tenta se levantar, mas sente agulhas pinicarem seu braço e fios a perderem na cama.
— Devia ver isso como um milagre — diz o outro homem — Deus está sendo bondoso com sua família. Você é um homem de fé?
— Eu acredito em muitas coisas, coisas que o senhor nunca fará ideia de que são reais. — Michelle o ouve rir. — Agora, milagres... Não vivemos num filme de fantasia.
Manchas, luzes e sombras. Sua visão aos poucos vai voltando. Paredes brancas e limpas, pessoas doentes, lâmpadas incandescentes. Por que tudo aquilo parecia um hospital?
— Água — diz ela, ainda meio rouca — Me tragam um copo de água.
— Michelle, minha irmã — diz Matheus — Você acordou?
— Irei encaminhar alguns exames e se tudo estiver bem, ela terá alta — explica o homem de jaleco branco.
***
Felizmente, a garota passa pelos exames. Mulher, adulta, o que aconteceu nesses últimos anos? Olhar para seu irmão enquanto vão para a casa onde Matheus está vivendo a enche de dúvidas.
— Quanto tempo tive apagada? — resolve perguntar.
— Dez anos — responde ele — Os dez anos mais loucos das nossas vidas.
O silêncio retorna. Michelle não sabe o que perguntar, mesmo tendo muitas questões em sua mente. Sua carreira de Youtuber, o que aconteceu? Será que ainda é reconhecida se sair na rua? E quanto a Brenda, Amanda, JV e Douglas, o que aconteceu ao corpo deles?
— Tenho muita coisa para te contar. — Matheus corta o silêncio. — Fico feliz que acordou. Agora, poderemos pôr um fim naquele demônio.
— Não sei se serei útil para isso — diz ela.
— Minha querida irmã, andei pesquisando e estudando nosso caso nos últimos anos. — Ele sorri. — E posso garantir que você é a chave para acabar com isso.
Ele estaciona o carro em frente a uma república. Onde uma menina, loira, alta e magra, corre em direção deles. Michelle a julga, olhando-a de cima a baixo. Ela entra no carro, nos bancos de trás. Coloca o sinto e deposita vários livros sobre o banco ao lado.
— Vamos, ela nos espera — diz ela, sorrindo.
Antes de dormir. — Quem é ela? — questiona Michelle, curiosa. — Sou Sabrina. — Ela se apresenta antes que Matheus a apresenta-se. — Sabrina Animabus. Michelle sorri para ela. Um sorriso forçado e nada simpático. Algo naquela garota não cheira bem. Há algo estranho nela. Michelle pode sentir, mas não sabe explicar. — Sabrina é uma grande amiga minha — diz Matheus — A conheci depois que a mamãe matou o papai. Michelle teria ouvido mesmo o que jurou ouvir. Seria uma brincadeirinha de mal gosto? Ou seus ouvidos
A Maldição. O cheiro do queijo gratinando na sanduicheira se espalha pelos pequenos cômodos da república. Michelle levanta ainda um pouco sonolenta, afinal são apenas sete horas da manhã. A garota não dormiu nada, teve pesadelos a noite toda. Além, é claro, de ter ido para cama depois das duas. Ao terminar de lavar o rosto e escovar os dentes, a jovem se coloca preguiçosamente a caminhar em direção ao bom e agradável cheiro de comida. Sabrina preparava saborosos sanduíches, talvez uma receita que aprendeu com os espíritos, aquilo parecia bom de mais para ser uma criação humana. — Que bom que
Carta para a morte. A lua aponta cheia no horizonte do céu. Enorme e mística, iluminando a face de Michelle. Sua luz é tão forte que acaba dando a impressão de ainda estar de dia. Dourada como ouro, uma joia gigante que atraí olhares mais inquietos, como o da garota sentada à janela. — O que foi? — pergunta Letícia. Michelle desvia o olhar para ela. Um olhar baixo e profundo. — Nada de mais — responde — Gosto de olhar a luz da lua. Letícia se senta junto dela, cuidando para não amarrotar o vestido q
O Portal. O pessoal chega aos poucos, aproximando-se de Sabrina, acompanhados pela curiosidade. O medo, o amargo e suculento medo, estampa o rosto de cada um deles. Michelle é a mais preocupada entre eles, provavelmente, por temer que Sabrina revele algo sobre a mensagem das primogênitas. — O que exatamente é isso? — pergunta Alicia. — Esse símbolo não me é estranho. — Matheus pensa um pouco. — A cruz do leviatã. Michelle se aproxima do espelho e o esconde atrás de si. — Alguém está querendo brincar
A morte do Demônio. As portas se abrem, rangendo em contato com o piso, enquanto são empurradas por Sabrina. As gotas de água pingam das pontas de seus cabelos e escorrem pelo corpo da garota, suas roupas coladas ao corpo por conta da chuva marcam a silhueta magra da menina. Todos estão no mesmo estado. Matheus até pior. Não era possível dizer se ele chorava ou eram apenas gotas de chuva. Se sente culpado, temendo que algo aconteça a Letícia. Foi por causa dele que ela estava na fazenda. Nunca devia ter contado a verdade para ela. Nunca deveria ter a tirado da normalidade que a pertencia. Foi egoísta demais por querer tudo para si. Está amaldiçoado a não ter ninguém. Não é mais, e nunc
Falando com os Mortos. — Como você fez aquilo? — questiona Sabrina — Eu nunca vi algo desse tipo. Michelle encara a garota vidente. Isso não fazia o menor sentido para a garota. Para ela, todo aquele poder e coragem surgiu por conta do cântico mágico de Sabrina. — Pensei que fosse você com suas bruxarias que me deram força. — Que bruxarias? — estranha Sabrina — Eu não sei fazer... Magias tão fortes como a que vi você reger. Michelle olha ao redor toda a destruição que causou. De onde teria vindo tudo isso?
O Chamado. — Acorda. — A jovem chacoalha o irmão. — Anda, seu preguiçoso, acorda. A luz do sol já entrava pelas frestas da madeira do galpão. Sabrina, já acordada, ria de Michelle. A garota parecia bem, para uma pessoa que serviu de oráculo. Em suas mãos, a menina segura umsmartphone, provavelmente o dela, e o cartão de memória de Michelle. — O que você quer? — diz o rapaz, acordando. — Você tem razão — diz Michelle — Eu sou fraca, mas se eu encontrar as respostas certas posso aprender a ser útil. Pelo menos uma
Imagens do Além. — Não! — Michelle acorda assustada. A garota olha ao redor. Sabrina dorme tranquilamente, enquanto Matheus está acordado pensando sozinho num canto. O que aconteceu? Michelle procura por sua câmera, onde raios está o objeto? Tudo o que precisa está dentro de um pequeno cartão de memória. Matheus desvia o olhar para a irmã desesperada. A observa por alguns instantes, pensativo, sentindo que algo podre envolvia esse desespero aleatório. — O que você está procurando? — questiona ele. &