Ele ri, mas o tom é quase sarcástico, como se eu estivesse dizendo uma coisa absurda.
Minha pergunta não me soa absurda porque ele está sendo seco e frio desde que chegou, e estamos agindo como dois estranhos. É quase como se Diogo não soubesse quem eu sou. Na verdade basicamente estou reagindo a ele, e ele está me tratando como uma estranha. Se ele pudesse ver como me sinto... - É óbvio que lembro daqui. – ele cruza os braços. – Não sofro de amnésia e nem tenho Alzheimer. – vejo seus bíceps tensos por baixo da camiseta cinza – Só se passaram treze anos. – acrescenta e, pela primeira vez, sinto um tom seco de rancor. Diogo não era assim e seu jeito atual parte um pouco meu coração – não porque ele está tentando me ferir, mas porque sinto culpa nisso. Começo me arrepender de tudo, de ter procurado por ele, de ter pedido por isso. Que coisa boa pode sair de nós dois agora? Cubro o rosto com as mãos por um instante, tentando recompor minha expressão, e subitamente sinto o metal frio da minha aliança contra a pele. Tiro as mãos, mas é tarde demais, sei que ele viu. - Então você se casou. – Diogo constata, amargamente. – Não que eu não possa ter visto uma nota ou outra. – ele ergue uma sobrancelha - Na verdade não vi. – confessa. – Eu não acompanho. Ele aponta para a minha mão: - Quando foi? - Durou cinco anos. – respondo mecanicamente, fugindo um pouco da sua pergunta oficial porque não quero falar sobre isso com ele. Nem mesmo sei por que ainda uso esse pedaço de metal sem sentido. - Então você tem um divórcio nas cotas? – seu tom é muito sarcástico, mas também temperado com cansaço e um peso que não sei definir. Suspiro, balançando a cabeça negativamente. - Ele morreu. – espero que a expressão dele mude um pouco, mas nada acontece. As pessoas costumam demonstrar um tom de pesar ou um olhar de pena quando digo que sou viúva. Diogo continua com seu olhar duro e seu tom seco. - É por isso que você está aqui? – novamente ele coloca as mãos dentro dos bolsos da calça, a voz cuidadosamente controlada e os olhos ferozes. – Agora que está livre você espera tirar alguma vantagem de mim? Agora que você obviamente se mantém sozinha? – a mão direita gesticula em direção aos quartos da cabana. – Aqui onde não tem ninguém para ver e julgar você? Não consigo dizer nada. As palavras me atingem feito tapas, mas apenas olho pelas janelas novamente: as árvores estão começando a mergulhar na escuridão da noite. De repente me sinto engolida pelo mundo ali sozinha com ele. Há um muro entre nós dois que parece que nunca será desfeito e isso dói. - Vou embora daqui. – ele anuncia exasperado diante do meu silêncio. Eu me viro e o vejo andando até a porta. Quando percebo já corri até ele e seguro seu braço com a mão o mais forte que consigo. - Não. – peço, porque não suporto vê-lo partir assim, e a alça do meu vestido escorrega deixando exposta a pele do meu ombro e a cicatriz em relevo que teimo em esconder. - O que é isso? – a mão dele ainda está segurando a maçaneta e seus olhos estão frios, mas a pergunta é sincera desta vez. Com um suspiro, solto seu braço e dou um passo para trás. É outro assunto que não quero falar com ele, na verdade talvez com ninguém mais, porque só quero esquecer. Mas sei que, se não começar a dar algumas respostas, Diogo vai embora desse lugar e não volta nunca mais. Algo dentro de mim não quer que isso aconteça, por mais que pareça que a nossa situação ali seja ridícula. - Foi ele? – solta a maçaneta e se aproxima, como se tivesse me dando mais uma chance. Pela primeira vez essa noite é quase o Diogo que eu me lembrava, não há frieza em seu olhar e o seu tom quase chega a ter algum calor. - Foi. – reajusto a alça e me afasto de novo com uma onda de vergonha, como se fosse culpa minha as coisas que aconteciam. - Sempre? – Diogo pergunta voltando a se aproximar. - Sim. – confesso sentindo o rosto quente. Ando até o sofá e me acomodo nas almofadas, apertando uma com força contra o peito. Meu coração bate acelerado. - Desde...? – ele senta também, mas longe de mim. - Não sei. – balanço a cabeça. – Começou aos poucos, algumas restrições e crises de ciúmes, até chegar a esse ponto extremo. Mas digo que desde os primeiros meses do casamento. – abaixo a cabeça, o pescoço quente. - Sinto muito. – ele está sendo gentil agora. Olho seus olhos cor de mel que me fazem pensar no outono, como sempre fizeram. – Você nunca quis ir embora? - O tempo todo. – assumo, prevendo a pergunta seguinte. - O que segurou você? – a testa está franzida. - Meu filho.Quando vi Sofia pela primeira vez ela tinha dezoito anos, mas não era tão diferente de agora. Os cabelos eram bem maiores, quase na cintura, mas o resto é igual: as mesmas sardas suaves na pele branca, mais ou menos o mesmo peso e grandes e brilhantes olhos castanhos. Ela usava um short jeans vermelho e uma regata branca com pequenas pedras nas alças largas quando entrou no mercado, onde eu trabalhava reabastecendo prateleiras e empacotando coisas no caixa, acompanhada de um rapaz. Os dois andaram até os fundos e ficaram sussurrando enquanto escolhiam entre as garrafas de bebidas, pegando e devolvendo garrafas na prateleira. Observei brevemente o rapaz que usava uma calça jeans de marca e
- Sabe, está ficando meio tarde. – Diogo diz se levantando – E eu vim de longe. Preciso descansar. - Tudo bem. – concordo me levantando também. Eu sei que o que o tocou embora foi a menção ao meu filho. Embora ele não tenha feito nenhuma pergunta, nem mencionado nada, sei o quanto essa relação significa para ele. Sinto vontade de contar uma porção de coisas, mas nada sai. Tudo parece entalado na minha garganta. Fico pateticamente parada enquanto ele vai até o carro e pega uma pequena mala, parcialmente emocionada porque ele sempre teve a intenção de ficar e imaginando como va
Nem me dou ao trabalho de tentar dormir. Apenas estico o corpo na cama, torcendo para que seja suficiente para ele descansar ou que em algum momento o cansaço vença a mente e eu acabe dormindo de qualquer forma. De preferência um sono pesado e sem sonhos. “Meu filho”, penso. Não consigo deixar de pensar se ele parece com ela ou com o... pai. Imagino o garoto grudado nela, feliz e sorridente. Me pergunto se ele tem sardas iguais as dela, se os olhos são do mesmo tom ou o cabelo. Espero que haja mais heranças da parte de Sofia ali. Me questiono como foi para ela gerar uma vida, mas sei que não vou perg
Na manhã seguinte, quando levanto, percebo um cheiro de café pela cabana e encontro Diogo encostado na pia com uma xícara nas mãos. Está vestindo um moletom azul e uma camiseta branca meio amarrotados, e os seus olhos circundados por círculos arroxeados me mostram que também é difícil dormir ali para ele. Pego café também, sem trocarmos palavras, e me sento no sofá observando a mudança do clima lá fora. O céu está repleto de nuvens cinzas, sem sol, e as árvores balançam suavemente – quase monotonamente. - Então. – Diogo senta na outra ponta do sofá – Você vai parar de
Foi difícil tirar a Sofia da cabeça nos dias seguintes, ela costumava pontuar meus pensamentos enquanto eu trabalhava e quando eu me fechava sozinho no quarto em casa. Confesso que muitas vezes me lembrava dela nua na beira da lagoa com uma onda de culpa, outras vezes me sentia febril no meio da noite recordando a sensação que tivera no carro, e todo meu corpo se arrepiava, como se eu ainda estivesse lá dentro, sentindo-a tão perto de mim. Quinze dias depois, eu a vi entrar no mercado quando estava colocando os amaciantes nas prateleiras. Fiquei parado por alguns instantes, observando entre os produtos com o coração acelerado, enquanto os olhos dela varriam o lugar como se procurasse algo específico.&n
Quando Diogo sai do banheiro, ainda estou sentada no mesmo lugar. Posso sentir o cheiro de xampu e sabonete que irradiam do seu corpo com uma onda de nostalgia. Agora ele parece um pouco mais desperto, mas ainda assim impaciente. Não consigo conter um sorriso com nostalgia. - Olha, preciso comer alguma coisa. – diz colocando a carteira no bolso – Não quero nenhum de nós cozinhando, então eu vou buscar alguma coisa. Apenas balanço a cabeça concordando e ele sai sem nem mesmo trocarmos um olhar. Escuto o som do carro se afastando e depois o silêncio absoluto. Logo em seguida uma chuva fina começ
Depois daquela noite desastrosa passei a encontrar Sofia com certa regularidade. Íamos ver alguns filmes, comer coisas por aí – jamais em locais sofisticados novamente – ou apenas saíamos para jogar conversa fora. - E seus pais? – perguntei, cansado de esperar que ela falasse alguma coisa, enquanto estávamos sentados num banco qualquer de uma praça deserta. Eu gostava de ficar em locais mais desertos quando estava com ela, me passava ideia de que menos pessoas poderiam julgar nossa proximidade. - Divórcio. – ela mexia com um dedo numa mecha do cabelo – Eu moro com a minha mãe, que está sempre por aí fazendo sabe-se lá o que. Ela vi
Diogo está muito quieto deitado ao meu lado, não consigo nem mesmo ouvir sua respiração, apenas a tempestade que está caindo lá fora. É quase como se não estivéssemos mesmo aqui, como se tudo isso fosse um sonho. Eu acreditaria nisso, se não estivesse encaixada entre seu peito e seu braço, sentindo as batidas de seu coração se normalizando. - Sofia. – ele diz meu nome com cansaço, colocando o outro braço atrás da cabeça, e eu observo os músculos se contraindo. – Foi para isso que você me trouxe de volta para esse lugar? - Não. – quase rio, nem nos meus maiores sonhos eu imagin