A porta se abre devagar, silenciosa, e a cabeça dela surge primeiro como se quisesse ter certeza de que sou eu que estou aqui.
Os cabelos caem sobre os ombros e ela os joga para trás enquanto coloca o resto do corpo para fora também, que parece estranhamente rígido dentro do jovial vestido com estampa de florezinhas vermelhas. Troco o peso do corpo para um lado só, as mãos dentro dos bolsos do jeans. Ela está perfeitamente linda, como sempre, o rosto com um leve toque de sardas que poderia aumentar se tomasse sol – mas ela ainda não gosta de sol, posso perceber pela pele completamente branca – e eu estou simples como sempre. - Oi. – o som da minha voz sai completamente estranho, seco, porque ainda não sei o que estou fazendo aqui nesse lugar e com essa pessoa. - Você veio. – seu tom é doce, completamente diferente do meu, e sinto um misto de culpa e revolta pela diferença. - Estou aqui. – digo, constatando o óbvio, e os olhos castanhos dela se desviam dos meus, olhando ao redor. Por um instante gostaria de saber o que ela está pensando, ou o que está lembrando, mas quero muito que isso acabe logo para perguntar. – Então? – instigo, me negando a olhar ao redor. - Quer entrar? – ela empurra a porta, me dando passagem. Apenas balanço a cabeça para concordar. Eu não estaria aqui se não tivesse a intensão de entrar e não teria uma pequena mala no carro – embora ela não possa adivinhar isso – se não achasse que precisaria ficar algumas horas. Sinto-me completamente na defensiva, mas apenas porque já estive em outra posição completamente diferente antes e, estar aqui agora, é quase torturante. O interior da cabana continua praticamente como eu me lembrava, mas com um toque mais envelhecido pelos anos que se passaram. Sala e cozinha juntas num estilo rústico e prático, do jeito que sempre me agradou. De alguma forma eu me sinto oprimido pelo lugar e por ela, como se as paredes fossem se fechar ao nosso redor. - Cozinhei o jantar para a gente. – ela diz indo para longe de onde estou para mexer em algumas panelas que soltam um aroma bom. - Eu não como mais carne. – anuncio observando involuntariamente suas costas expostas pelo vestido. Agora há um desenho na pele entre as escápulas que não consigo decifrar de onde estou, mas imediatamente me lembro de sua pele arrepiada e preciso desviar os olhos porque me sinto perturbado. Preciso controlar o rumo dos meus pensamentos. - Você vai gostar disso. – afirma nada espantada pela minha dieta como as pessoas costumam ficar – Mas não tem soja. – acrescenta. - Detesto soja. – me viro para que ela não me veja sorrir e me irrito um pouco por ela ainda ter certo poder sobre mim. Olho pelas janelas atrás do imenso sofá, a paisagem é basicamente a mesma: arvores e árvores e árvores. E mais árvores até onde se consegue ver. Nós dois sabemos que há uma trilha que leva até um lago, mas não quero pensar nisso. - Vou até o banheiro. – digo já seguindo pelo corredor. Fecho a porta e respiro fundo algumas vezes me perguntando o que eu estou fazendo aqui afinal de contas. Isso parece um grande erro. Lavo o rosto duas vezes e permaneço quase dois minutos de cabeça baixa com as mãos apoiadas na pia, repetindo para mim mesmo que ela é apenas uma pessoa. Nada disso faz sentido, esse lugar e essa pessoa de novo. Estou começando a me arrepender de ter vindo, as coisas estavam tranquilas como estavam. Com mais uma respiração profunda, seco o rosto e saio do banheiro com passos firmes, determinado a não demostrar como tudo ali me afeta tanto. A mesa já está posta, com cuidado e delicadeza, e meu coração endurece um pouco. Precisa endurecer. - Posso servir você, se quiser. – seu tom gentil quase chega a ser mais do que estou disposto a aguentar. - Posso fazer isso. – meu tom é seco, quase brusco, mas ela não nota. Ou finge não notar. Começo a colocar as coisas no prato, um pouco de tudo porque estou faminto. Há arroz, brócolis, cenouras, batatas assadas com vários temperos, saladas e feijão. Penso brevemente que isso deve ter dado um grande trabalho, mas não quero me importar, então afasto a ideia. - Então, Diogo – é a primeira vez que ela diz o meu nome –, desde quando? Eu olho para ela confuso, o garfo a meio caminho da boca. Ela aponta comida sugestivamente. - Faz treze anos. – respondo e volto a comer em silêncio. - Por quê? – ela questiona, e percebo que está comendo pouco e bem lentamente. Sinto vontade de perguntar o motivo, mas é mais fácil deixar de lado. - Porque... – solto a respiração de uma vez só, bruscamente – acho que resolvi deixar de ser egoísta. Nós – faço um gesto amplo – não somos o centro do mundo. - Você nunca foi egoísta – ela murmura –, mas compreendo o que quer dizer. – acrescenta, espetando uma batata com o garfo. - De qualquer forma, o pessoal lá de casa adora. – digo, colocando um pouco mais de cada coisa no prato. - Pessoal? – ela pergunta tentando disfarçar o choque, mas consigo perceber. Está se perguntando quem está em casa esperando a minha volta. É a primeira vez desde que cheguei que ela não parece extremamente calma, controlada e confortável nesse lugar comigo. - Sim, os gatos, cachorros... Enfim, esse pessoal. Mas - olho para as panelas e formas quase vazias na mesa – como você soube disso? - Não soube. – ela empurra o prato um pouco para frente e repousa os braços cruzados na mesa, visivelmente aliviada. Compreendo com um estalo: - Desde quando? - Faz dez anos. – subitamente me encara nos olhos. Por um instante um grande pesar toma conta de todo o meu ser, e é como se eu estivesse de fora observando essa cena patética que estamos encenando. O que é isso? Estamos brincando de casinha nesse lugar, fingindo que nada aconteceu anos antes e somos apenas velhos amigos se reencontrando? – Fala sério, Sofia. – seu nome aquece meu corpo, mas ignoro a sensação, jogando-a para o mais dentro de mim que consigo – O que estamos fazendo aqui? – gesticulo ao redor. – Certamente que não é para jantar comida vegetariana e falar sobre o que fazemos hoje em dia. - O que você faz? – seus olhos estão baixos agora e não consigo saber o que ela está escondendo de mim, mas agora estou com raiva. Bastante. - Você quer saber se sou “alguém”? – faço aspas com o dedo, me controlando para não alterar a voz, sem total sucesso. - Não... – ela protesta, mas faço um gesto com a mão para que ela cale a boca. - Não sou um escritor famoso com contratos com o cinema. – digo sarcástico, porque é justamente o que ela é - Mas consigo me sustentar da minha forma. – não digo qual forma é de propósito, não quero dar informações sobre mim para ela. Sofia se levanta bruscamente e anda até as janelas. Ela fica de costas e se abraça como se tentasse se confortar ou se acolher de alguma forma. Eu não me movo por longos minutos, enquanto sinto a raiva desaparecer deixando um formigamento pelo meu corpo. - Sofia. – me levanto, a cadeira fazendo um barulho no chão – Me diga o que eu estou fazendo aqui. Preciso de uma explicação que justifique essa insanidade. Algo direto, sem rodeios e que me faça perder essa sensação ruim que me domina. - Você lembra daqui? – ela pergunta, virando para mim e soltando os braços com uma expressão desolada no rosto. - Se lembro daqui? – solto uma risada brusca porque isso está muito longe de tirar a sensação ruim de dentro de mim – Isso é sério?Ele ri, mas o tom é quase sarcástico, como se eu estivesse dizendo uma coisa absurda. Minha pergunta não me soa absurda porque ele está sendo seco e frio desde que chegou, e estamos agindo como dois estranhos. É quase como se Diogo não soubesse quem eu sou. Na verdade basicamente estou reagindo a ele, e ele está me tratando como uma estranha. Se ele pudesse ver como me sinto... - É óbvio que lembro daqui. – ele cruza os braços. – Não sofro de amnésia e nem tenho Alzheimer. – vejo seus bíceps tensos por baixo da camiseta cinza – Só se passaram treze anos. – acrescenta e, pela primeira vez, sinto um tom se
Quando vi Sofia pela primeira vez ela tinha dezoito anos, mas não era tão diferente de agora. Os cabelos eram bem maiores, quase na cintura, mas o resto é igual: as mesmas sardas suaves na pele branca, mais ou menos o mesmo peso e grandes e brilhantes olhos castanhos. Ela usava um short jeans vermelho e uma regata branca com pequenas pedras nas alças largas quando entrou no mercado, onde eu trabalhava reabastecendo prateleiras e empacotando coisas no caixa, acompanhada de um rapaz. Os dois andaram até os fundos e ficaram sussurrando enquanto escolhiam entre as garrafas de bebidas, pegando e devolvendo garrafas na prateleira. Observei brevemente o rapaz que usava uma calça jeans de marca e
- Sabe, está ficando meio tarde. – Diogo diz se levantando – E eu vim de longe. Preciso descansar. - Tudo bem. – concordo me levantando também. Eu sei que o que o tocou embora foi a menção ao meu filho. Embora ele não tenha feito nenhuma pergunta, nem mencionado nada, sei o quanto essa relação significa para ele. Sinto vontade de contar uma porção de coisas, mas nada sai. Tudo parece entalado na minha garganta. Fico pateticamente parada enquanto ele vai até o carro e pega uma pequena mala, parcialmente emocionada porque ele sempre teve a intenção de ficar e imaginando como va
Nem me dou ao trabalho de tentar dormir. Apenas estico o corpo na cama, torcendo para que seja suficiente para ele descansar ou que em algum momento o cansaço vença a mente e eu acabe dormindo de qualquer forma. De preferência um sono pesado e sem sonhos. “Meu filho”, penso. Não consigo deixar de pensar se ele parece com ela ou com o... pai. Imagino o garoto grudado nela, feliz e sorridente. Me pergunto se ele tem sardas iguais as dela, se os olhos são do mesmo tom ou o cabelo. Espero que haja mais heranças da parte de Sofia ali. Me questiono como foi para ela gerar uma vida, mas sei que não vou perg
Na manhã seguinte, quando levanto, percebo um cheiro de café pela cabana e encontro Diogo encostado na pia com uma xícara nas mãos. Está vestindo um moletom azul e uma camiseta branca meio amarrotados, e os seus olhos circundados por círculos arroxeados me mostram que também é difícil dormir ali para ele. Pego café também, sem trocarmos palavras, e me sento no sofá observando a mudança do clima lá fora. O céu está repleto de nuvens cinzas, sem sol, e as árvores balançam suavemente – quase monotonamente. - Então. – Diogo senta na outra ponta do sofá – Você vai parar de
Foi difícil tirar a Sofia da cabeça nos dias seguintes, ela costumava pontuar meus pensamentos enquanto eu trabalhava e quando eu me fechava sozinho no quarto em casa. Confesso que muitas vezes me lembrava dela nua na beira da lagoa com uma onda de culpa, outras vezes me sentia febril no meio da noite recordando a sensação que tivera no carro, e todo meu corpo se arrepiava, como se eu ainda estivesse lá dentro, sentindo-a tão perto de mim. Quinze dias depois, eu a vi entrar no mercado quando estava colocando os amaciantes nas prateleiras. Fiquei parado por alguns instantes, observando entre os produtos com o coração acelerado, enquanto os olhos dela varriam o lugar como se procurasse algo específico.&n
Quando Diogo sai do banheiro, ainda estou sentada no mesmo lugar. Posso sentir o cheiro de xampu e sabonete que irradiam do seu corpo com uma onda de nostalgia. Agora ele parece um pouco mais desperto, mas ainda assim impaciente. Não consigo conter um sorriso com nostalgia. - Olha, preciso comer alguma coisa. – diz colocando a carteira no bolso – Não quero nenhum de nós cozinhando, então eu vou buscar alguma coisa. Apenas balanço a cabeça concordando e ele sai sem nem mesmo trocarmos um olhar. Escuto o som do carro se afastando e depois o silêncio absoluto. Logo em seguida uma chuva fina começ
Depois daquela noite desastrosa passei a encontrar Sofia com certa regularidade. Íamos ver alguns filmes, comer coisas por aí – jamais em locais sofisticados novamente – ou apenas saíamos para jogar conversa fora. - E seus pais? – perguntei, cansado de esperar que ela falasse alguma coisa, enquanto estávamos sentados num banco qualquer de uma praça deserta. Eu gostava de ficar em locais mais desertos quando estava com ela, me passava ideia de que menos pessoas poderiam julgar nossa proximidade. - Divórcio. – ela mexia com um dedo numa mecha do cabelo – Eu moro com a minha mãe, que está sempre por aí fazendo sabe-se lá o que. Ela vi