Essa é a Sua Obrigação

“Por Giovanna Carcione”

Dois meses se passaram desde aquele dia traumático. Durante semanas, os soldados de todos os clãs que compõem a Sovranità, procuraram pelo meu agressor, baseados nas descrições físicas que forneci. Porém, da mesma forma que aquele homem surgiu, ele desapareceu. Pelo menos fisicamente, pois ele atormenta meus pesadelos desde então.

— Você está tão calada. — Sofia comenta, enquanto balança seus pés para fora da janela do meu quarto. — Lá no convento vocês eram obrigadas a fazer voto de silêncio?

— Não era convento! — exclamo, revirando os olhos ao me sentar do lado dela. — Era um colégio interno. Só estava relembrando aquela noite… Como tudo pôde dar errado?

— É o que eu me pergunto, Gio. Eu já saí tantas vezes escondida e nunca havia dado nada de errado. — ela responde, encarando seus pés. — Talvez se eu não tivesse ficado falando que você precisava ter uma vida normal, ou ficado trancada naquele banheiro…

— Não se culpe, Sofi… Só lamento por perder a arma que o meu pai me deu. Mas torço para que aquele tiro o tenha matado. — disfarço e decido mudar para um assunto aleatório.

Para todos, aquele homem foi apenas um estrangeiro louco que tentou me sequestrar. E eu, utilizando as técnicas que me foram ensinadas há alguns meses, consegui reagir e me defendi antes de descobrir suas verdadeiras intenções. Essa foi a versão que contei quando finalmente consegui me acalmar.

A culpa e a vergonha de tudo o que aconteceu naquela noite me fizeram guardar a verdade só para mim. Sinceramente, não sei se algum dia terei coragem de compartilhar isso com alguém.

— Acho que chegou o momento de você descobrir com quem vai se casar… — minha prima afirma, apontando para os carros que entram na propriedade. — Você não está curiosa para saber quem ele é?

— Não! — exclamo ao me levantar da janela, assim que os carros somem do nosso campo de visão. — Terei que aceitá-lo de qualquer forma. Afinal, é tradição, não é mesmo? A diferença é que eu não fui prometida a ele na infância.

— Isso poderia ter acontecido, se você não tivesse sofrido aquele atentado e ido parar no convento. — ela diz, espontânea. Ao perceber o meu olhar desconfortável, Sofia muda rapidamente de assunto. — Mas por experiência própria, isso não é tão ruim, Gio. Para mim, é interessante imaginar o que acontecerá na lua de mel. Ao menos meu futuro marido não é feio… Ou é? Você o viu há alguns dias.

— Ele não é feio, Sofia. Só é um homem vinte anos mais velho que você!

— Fazer o quê? — ela dá de ombros, levantando-se da janela. — Minhas amigas sempre dizem que experiência é tudo. Descerei e ver como o seu futuro marido é. Já volto para te contar.

Sofia, que parece estar mais empolgada com essa história de casamento que eu, praticamente corre ao passar pela porta. Solto um longo e me jogo na cama, torcendo para que os últimos dois meses tenham sido apenas um pesadelo. E que, magicamente, acordarei no colégio interno feminino onde passei boa parte da minha adolescência.

Entretanto, não demora para a minha mãe aparecer no meu quarto. Ela abre a porta e põe as mãos na cintura enquanto me encara séria.

— Giovanna, seu noivo está aqui. — ela afirma, num tom insatisfeito. — Por que você ainda não está pronta?

— Mamma, eu tenho dezenove anos! Eu não quero me cas…

— Giovanna — ela me corta, sentando-se ao meu lado na cama, com um olhar de compreensão —, ninguém queria que fosse assim. Mas não se esqueça que ninguém vai contra uma decisão do Don, e isso inclui você.

— Mas não é justo que eu me case com alguém que eu não conheço! Meu pai me contou ontem sobre esse casamento e disse que ocorrerá quanto antes! Todas as mulheres levam anos se preparando para seus futuros maridos, e algumas até se apaixonam pela ideia! Por que comigo tem que ser diferente?

— Filha, eu sinto muito. — A expressão da minha mãe fica séria, os olhos cansados refletindo a tristeza da situação. Ela suspira, como se carregasse o peso de uma tradição antiga. — Mas você sabe que no nosso mundo isso não existe! O amor vem com o tempo. Da mesma forma que foi comigo e com o seu pai, pode acontecer com vocês. Agora se vista, por favor! Não precisamos de mais discussões entre vocês dois.

Ela me dá um abraço forte e acaricia as minhas costas antes de se levantar e sair. “Ninguém vai contra uma decisão do Don.” Essas palavras martelam na minha cabeça, enquanto procuro uma roupa qualquer para vestir.

Termino de me arrumar da forma como o meu humor me permite e desço. Caminho vagarosamente até o escritório do meu pai, sentindo como se estivesse indo ao próprio funeral.

Ao abrir a porta, deparo-me com o Don, imponente em sua cadeira de couro. À sua direita, Giuseppe, o consigliere com olhos perspicazes, me encara. Do outro lado, Aléssio, meu irmão de semblante sério, parece evitar meu olhar. Ele também é o subchefe da Sovranità.

Quando termino de empurrar a porta, vejo um homem em pé, ao lado de ninguém menos que Don Matteo. Ele me encara com seus intensos olhos azuis, trazendo à tona as sombras daquela noite.

As lembranças dolorosas e o medo que senti ao encontrá-lo naquela igreja, quando acreditei que realmente seria o meu fim, fazem as minhas pernas tremerem, o meu coração bater freneticamente e o ar se torna pesado.

Porém, ao dar dois passos para trás, Matteo se aproxima de mim. Em uma tentativa de parecer simpático, completamente diferente daquela noite, ele sorri e beija a minha mão antes de me induzir a entrar no escritório.

— Pensei que as noivas só chegavam atrasadas para o casamento. — Matteo diz, com sua voz grave carregada de ironia. — Prazer em revê-la, Giovanna. Você parece melhor do que no nosso último encontro.

— Obrigada. — respondo, puxando a minha mão rapidamente. — Papà, eu posso saber o que está acontecendo?

— Sente-se, Giovanna. — meu pai diz, apontando para a cadeira ao lado de Aléssio. Matteo senta ao meu lado. — Você já sabe sobre o casamento, então não preciso explicar essa parte.

— Mas o senhor não disse nada sobre me casar com o nosso inimigo.

— Se tudo der certo entre nós, seremos ex inimigos, ragazza. — Matteo afirma, com um sorriso que não chega aos olhos.

— Giovanna, depois daquela fatídica noite, Don Matteo percebeu que com o passar dos anos, a nossa rivalidade se tornou irrelevante. Inclusive, se naquela noite fôssemos aliados, teria sido fácil encontrar aquele figlio di puttana no território da La Tempesta.

— Mas isso não é o sufic…

— Além disso, — ele me corta —, a La Tempesta domina áreas de extremo interesse para a Sovranità, e vice-versa.

— Exatamente, Giovanna. — Aléssio diz, dando-me um olhar satisfeito. — A união de nossas famílias trará muitos benefícios para ambos os lados.

— Mas, não há outro jei…

— Sem “mas”, Giovanna. Essa é a sua obrigação como membro da família. Você vai se casar com Don Matteo e selar a aliança entre nós.

Sinto as lágrimas escorrendo pelo meu rosto enquanto meus dedos tremem em minha coxa, sem acreditar que o meu pai está me entregando ao nosso inimigo. Meus olhos procuram um pouco de apoio ou uma reação contrária a isso, mas todos agem exatamente como a minha mãe disse: ninguém vai contra uma decisão do Don.

Os homens voltam a conversar sobre o casamento, seus benefícios e o que esperam para o futuro. Permaneço de cabeça baixa, em silêncio, como se fosse apenas parte da decoração do escritório iluminado.

Entre outros acordos, o principal me provoca arrepios: o casamento ocorrerá em um mês. Aproximadamente uma hora depois da minha chegada aqui, os homens se despedem. E como era de se esperar, meu pai me pediu para acompanhá-los até a saída.

— Não precisa me olhar assim. — Matteo diz, quando chegamos em frente à porta principal. Ele segura a minha mão e abre um sorriso que me arrepia. O mesmo sorriso que ele ostentava naquela noite, quando estava disposto a me punir. — Prometo ser bem bonzinho com você… Pelo menos até estarmos a sós, aí a minha diversão começa.

— O que o senhor quer dizer com isso, Don Matteo? — indago, sentindo o tremor em minha voz.

— Em breve você saberá. — ele afirma, percorrendo o olhar pelo meu corpo antes de mantê-lo nos meus olhos. — Até breve, querida noiva.

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