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       A Lua já adentrava na sua morada oposta e os primeiros raios de sol começavam a refletir sobre os tetos de zinco dos barracos e nas pedras formando imagem de espelho a mostrar ao morro o começo de um novo dia. Mais um estafante e incerto dia aonde muitos, sem dúvidas, não chegariam ao seu fim. Mais um dia no morro tão corriqueiro como qualquer outro, de raras e pequenas alegrias, de tráfico, tiros, dor, drogas e sangue.

       O foguetório lançado na madrugada avisava aos moradores da cidade, desenvolta sobre um manto plano aos pés do morro estendendo-se até o mar, que os senhores traficantes donos do mundo estavam prontos para mais uma farta distribuição de cocaína, maconha, êxtase e uma infinidade de outras drogas, sendo o craque a mais procurada e consumida entre os menos afortunados. Para a rapaziada das baladas, fervorosos consumidores de êxtase, também se oferecia os comprimidos do “boa noite Cinderela”. Haxixe e ópio eram drogas consumidas por pessoas de maior poder aquisitivo.

       Tal e qual a um exército de soldados teleguiados, os citadinos subiam o morro rumo aos chamados pontos de fumo e de lá traziam papelotes e pacaus cuidadosamente pesados e embalados pelas crianças aliciadas, muitas vezes à força, pelos traficantes. Eram crianças a serviço do tráfico e dos traficantes, por eles severamente vigiadas e obrigadas ao insano trabalho sem recompensas.

       Amedrontados pelas palavras de ordem que lhes eram dadas de forma coercitiva e seca, não ousavam dele abandonar. Todos sabiam que no morro a serviço dos traficantes, ou se mata ou se morre, ou se obedece ou se morre, ou se silencia ou se morre, ou se acata ordens ou se morre... e no futuro, ou se morre ou se morre.

       Os “meninos”, como eram conhecidos os senhores traficantes, armavam-se com sofisticadas armas, roubadas ou contrabandeadas e de pontos estratégicos vigiavam e observavam aquele exército desarmado em fila indiana subindo o morro em busca das drogas. Sabiam que aquele pó branco vindo de diversos países da América Latina, assim como as drogas químicas vindas geralmente da Europa e da Ásia ainda os mataria, mas não se importavam. O objetivo principal era o prazer através das drogas e por isso ali estavam. Dezenas, centenas de seres galgavam a montanha à sua procura. Para muitos seria esta a última subida, a última procura, o último prazer.

       Quantos deles aguardaram por essa hora durante toda a noite. Alguns até por vários dias. A ansiedade pela aquisição das drogas e seus derivados era tamanha que não se atreviam a desviar os olhos do topo do morro. Angustiavam-se durante a espera pelos sinais dos traficantes para que, finalmente, pudessem fazer uma viagem sem destino e muitas vezes sem volta.

       A fila não era desrespeitada. Pelo contrário, era até muito bem organizada, diferentemente do que se poderia imaginar nesse tipo de ambiente. Não por ser o respeito uma característica oriunda da civilidade entre eles, mas imposto pelas leis dos próprios viciados que não poupavam àqueles que se mostravam mais espertos e tentavam furá-la. Alguém que eventualmente se arriscasse a isso era simplesmente pisoteado, muitas vezes esfaqueado e atirado numa ribanceira qualquer de onde dificilmente voltava com vida. Isso tudo sob os olhares, risos e deboches dos olheiros dos traficantes. Essas leis paralelas entre os consumidores de drogas eram bem conhecidas dos moradores do morro, que nunca ousavam interferir, omitindo-se como se nada estivesse acontecendo.

       Ali estava a boa classe média e alta a subir o morro. Como se fosse uma vingança dos menos favorecidos, agora os traficantes, que se tornaram reis subjugando seus burgueses súditos que a eles se curvavam para a obtenção de alguns gramas de cocaína e pacaus de maconha, tudo a um altíssimo preço muitas vezes pago com a própria vida. Junto a eles os soldados do tráfico não arrefeciam a vigilância, tanto do povo como dos viciados, além de cuidados especiais quanto a uma possível incursão da polícia tomando o morro de assalto.

       Não era nada fácil aquela subida. Desgastados pelas sequelas do vício que lhes tirava toda a resistência e o senso de equilíbrio, aqueles seres mal se sustentavam nos rústicos degraus de terra batida, ancorados por pedaços de madeira já um tanto apodrecidos pela ação do tempo e ainda mambembes nas suas encostas e ribanceiras. Pior ainda se fazia na estação das águas, como a de agora, quando as águas de março deploravam ainda mais esses acessos.

       Ver alguém despencando de um desses lugares não era coisa rara. Muitos encontravam mais cedo o fim das suas viagens. Seus corpos, quando finalmente eram recolhidos pelos bombeiros ou pela defesa civil, geralmente em avançado estado de putrefação somavam-se às estatísticas do narcotráfico ou se alinhavam aos boletins de ocorrência relatando possível rusga entre quadrilhas rivais.

       Porém, tais rusgas verdadeiramente e de fato dificilmente aconteciam. Tudo era tramado pelos traficantes no intuito de desviar a atenção das autoridades competentes que se aventuravam a prossegui-los. Tais rusgas só havia mesmo contra essas autoridades quando alguma dela não acreditava no engodo e passava a perseguir os traficantes. Essas sérias autoridades sabiam que os meliantes faziam seus acertos de contas com os maus pagadores simplesmente dando fim ao caloteiro. Infelizmente a grande maioria do contingente policial não possuía essa mesma responsabilidade e nada mais eram do que meros servidores dos traficantes.

       Tão verdadeiro era esse fato que, bem perto dali um grupo de policiais modestamente armados conversavam entre si encostados à viatura. Despreocupados, esses homens da lei limitavam-se a observar o desenrolar da cena. Não interferiam e nem se davam ao trabalho de socorrer as vítimas das ribanceiras. Sabedores do fraco potencial dos seus armamentos, não se arriscavam contra metralhadoras, granadas, fuzis e escopetas potentíssimas dos traficantes. Em muitos casos preferiam a eles se integrar recebendo seu quinhão ao final do dia por não os molestarem. Alguns até mesmo moravam no morro, neste ou em algum outro igual a este e por isso temiam pelas prováveis represálias. Era melhor, sob todos os aspectos, aliarem-se aos pseudo-inimigos do que enfrentá-los numa luta desigual com os flancos totalmente abertos.

       Toda e qualquer corporação da polícia civil ou militar, até mesmo das forças armadas que por diversas vezes fizeram o papel de policiais, sabia que um confronto com o narcotráfico lhes seria totalmente desfavorável e com certeza sucumbiriam. O simples soldado sequer tinha um treinamento tático e antitráfico. Muitos nem mesmo sabiam como usar corretamente uma arma de fogo simples como um revólver, quanto mais uma de elevada sofisticação.

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