Toda a situação pareceu caminhar para o êxito, mas por pouco tempo. Estávamos no auditório de transmissões quando o pronunciamento das três da tarde foi interrompido e substituído por alguma outra coisa. Os murmúrios começaram a ganhar volume.
Olhei para a Magister e não vi o júbilo de minutos antes. Em vez disso, ela tinha um semblante lívido.
Eu me reconhecia nas telas, eram imagens recém-gravadas. Mas nossa conversa não deveria ter sido gravada, as câmeras serviam apenas para vigilância, e somente em casos especiais eram usadas para registrar. A Magister nunca ordenaria que uma discussão tão delicada quanto a que tivera com o bronco fosse guardada em vídeo. Desse modo, como aquelas imagens podiam estar sendo reproduzidas?
Scylla superou o choque e agiu. Subiu no estrado, empurrou a câmera para o lado e se inclinou
Durante o pronunciamento, um alvoroço rebentou na sede. Pude assistir o suficiente apenas para supor o que mais seria mostrado, e então muitos deixaram a sala às pressas, inclusive a Magister e Delos. Um guarda me levantou da cadeira com um puxão e me arrastou de volta à sala no quinto andar.Encostei-me na parede. A tensão ainda me mantinha ativo. Logo descruzei os braços e comecei a perambular.Nem tudo o que vinha acontecendo havia tido planejamento prévio. O intuito era induzir Scylla a falar sobre os projetos do Núcleo, o descaso com que os páuperes sofriam, a realidade das províncias e a maneira como éramos tratados no Simulador. Para minha surpresa, eu havia conseguido bem mais do que isso: uma declaração sobre a visão que a Corte tinha sobre os habitantes da Colmeia, ameaças de morte e uma cena sangrenta que dificilmente sairia da cabeça de que
Eu ainda olhava para fora. Delos acabara de sair.Havia poesia em tudo o que vinha acontecendo. A melhor maneira de evitar uma tragédia era impedindo que houvesse meios para que ela se instalasse. Eu não podia dizer que era repentino. A relação da Colmeia com Továren nunca foi das melhores, os movimentos insurgentes nunca deixaram de espreitar; e então vieram os transgressores, causando perturbações e fugindo da justiça. Essa era a equação perfeita que resultava em todo o mal que enfrentávamos agora. O que eu não supusera, no entanto — e talvez muita coisa tivesse sido diferente caso eu houvesse previsto —, era que uma agitador estava entre nós, um membro da Corte habilidoso e cheio de recursos.Agora havia aquelas pobres criaturas lá embaixo; se ao menos percebessem o prejuízo que vinham causando…Eu não podia culpá-lo
O silêncio na sede era sepulcral. Uma vez que a costumeira andança de mulheres e homens de jaleco havia cessado, os únicos sons que ecoavam por aquelas paredes eram os de meus passos e respiração ofegante.Eu precisava descer mais alguns andares até alcançar o cerne de tudo. Encontrei o elevador sobre o qual Reina me informara. Suas portas metálicas eram cromadas e refletiam uma imagem distorcida de mim. Por um instante, quase pude ver aquele velho Simas, sob a carapaça que costumava usar para se esconder.As portas se abriram. O interior era amplo. Entrei e pressionei o botão para o nível mais baixo que constava no painel, o lugar onde as raízes da Corte se prendiam. O elevador se sacudiu antes de começar a se mover para baixo.Fechei os olhos e puxei o ar lentamente. Meu coração dançava num ritmo inconstante, ora venturoso, ora amedrontado.&md
A conversa havia acabado.O rosto de Reina era um alvo fácil. Por um instante, desejei adiar o momento, apenas para contemplar seu desespero. Todas as suas palavras insubordinadas, seus ideais absurdos… Ela merecia morrer.Foi assim que puxei o gatilho. O que aconteceu, entretanto, estava longe de ser o que eu esperava. Esse foi o instante exato em que uma terceira bomba nos acertou. O efeito foi muito maior dessa vez, como o de um terremoto, empurrando-me para o lado. Com a mão livre, segurei-me na mesa para não cair. O tiro acertou a parede do outro lado da sala.Um segundo antes que eu voltasse a mirar na assistente, ela investiu. Reagia depressa. Segurou meu pulso com ambas as mãos e o empurrou com força contra a superfície da mesa, garantindo que o cano apontasse para outra direção senão a dela; esforçava-se para torcer meu pulso. Recobrei meu equilíbrio, mas agora est&aacut
Começava a anoitecer, e o céu tinha uma cor avermelhada bonita. Eu tinha ficado tanto tempo dentro daquele lugar que nem sabia que horas eram. O ar do lado de fora era um pouco abafado, mas não era o clima ou a paisagem o que me chamava a atenção.Um monte de pessoas se reunia pra gritar. Era que nem na Festa da Grande Emersão, com um monte de gente junta, mas um pouco diferente, porque pareciam estar com raiva de alguma coisa. Ou de alguém. Talvez tivesse alguma coisa a ver com o que meu irmão e aquele menino tinham conversado lá dentro.Simas tinha dito pra eu confiar no menino, mas eu estava com medo. E se a mamãe estivesse certa, e todos daquele lugar fossem maus? A pele de Benjamin era macia; ele me lembrava uma boneca que uma amiga minha tinha, toda bonitinha. Eu queria ser igual a ele. Meu irmão confiava nele. Eu ia dar uma chance pro garoto.
Eu nunca deveria ter acreditado no que os livros diziam sobre a morte. As ficções poderiam ter me convencido de que a vida passaria diante dos meus olhos em retrospectiva; de que os últimos momentos seriam de paz antes que eu fosse levado para uma dimensão fora da matéria. As não-ficções ensinavam o incontestável: nos primeiros segundos, eu expeliria o que restava de oxigênio no meu corpo. Minha atividade cerebral pararia. Talvez algumas funções ainda se mantivessem por alguns minutos, consumindo as últimas unidades de energia. E então meus músculos relaxariam. A essa altura, eu não estaria mais ali para ver.Da minha perspectiva, nada disso era tão fácil de imaginar. Mas a poética visão de túnel era real. Quanto tempo eu teria que esperar?Obriguei-me a manter os olhos abertos até que não aguentasse mais. Em ve
Agora o toque era real. Mais brusco, mais… desesperado.— Simas, por toda a venustidade! — A voz de Benjamin soava bem acima de mim.Ele levantou minha cabeça para uma posição inclinada e forçou algo frio contra minha boca. De olhos ainda fechados, senti na língua o gosto de ambrosina, o fluido azul curativo; ele me empurrava a borda de um frasco. Tentei engolir o máximo que pude.Então ele me segurou. Colocou um dos meus braços por trás do pescoço e me arrastou para dentro do elevador. Percebi por sua respiração ofegante que ele esteve correndo. Os gemidos que soltava para tentar segurar o peso do meu corpo indicavam que eu não era um fardo fácil de se carregar. Minhas pernas imóveis deslizavam pelo chão.Uma vez dentro do elevador, Benjamin despencou. Não se preocupou em me ajeitar confortavelmente; apenas apertou os
O aroma doce me dava bom-dia. Eu podia sentir a presença de Benjamin ao meu lado no colchão. Havíamos dormido afinal. Virei-me de barriga para cima, devagar para não despertá-lo. Então, por um momento, quase experimentei um déjà vu. Colado no teto, bem acima do meu rosto, havia uma folha de papel, um desenho feito à mão.Benjamin se mexeu ao meu lado, já estava acordado. Ao perceber que ele olhava para mim, fiz uma careta.— Aquilo é uma mosca? — perguntei, tentando decifrar o desenho no papel. Tratava-se de um círculo com tracinhos ao redor.Ele cobriu uma risada com a mão.— Uma mariposa — respondeu. — A sua mariposa. — Franzi o cenho. Benjamin fixara o desenho no teto enquanto eu dormia. — Queria que você se sentisse em casa.Lembrei-me de ter contado a ele sobre a mancha do meu quart