O relógio da torre soou, pela sexta vez, indicando que Maureen estava atrasada. A dançarina seria capaz de jurar por cada um dos deuses da Tríade que saíra de casa no mesmo horário de sempre e ela não estaria mentindo. O que jamais contaria a ninguém é que entrara em uma chapelaria na Rua do Rio e, após quase quarenta minutos, deixara a loja com o mesmo chapéu e sem nenhum embrulho nas mãos.
Maureen cortara caminho pelas vielas do Bairro da Feira, tentando encurtar o caminho, mas ainda tinha algumas centenas de metros a percorrer antes de chegar a seu objetivo. Para concluir sua jornada até o Saloon Juanito Três Dedos com menos atraso, a dançarina ergueu sua volumosa saia até a altura dos joelhos, ergueu do chão uma das pernas, fazendo um ‘quatro’ e tirou um dos sapatos. Colocou o pé descalço, cujas delicadas unhas estavam pintadas de verde neon, no pavimento arenoso, e, com o mesmo movimento, retirou o outro sapato.
Segurava os dois sapatos na mesma mão e ajeitava a saia, quando escutou um assovio de ‘fiu fiu’, atrás de si, acompanhado de aplausos lentos.
“Clap”.
“Clap”.
“Clap”.
Prevendo encrenca, a dançarina virou o corpo, na direção dos aplausos.
O sorriso no rosto do homem era vulgar, assimétrico, erguendo mais o lábio no lado direito, evidenciando o canino de ouro, enquanto mascava um palito de dentes.
Maureen sabia das intenções daquele sujeito. Ele não era um desconhecido que a encontrara ali por acaso. O freguês habitual do Três Dedos não se contentara em admirar as pernas da dançarina, todas as noites, em cima do palco, e decidira que encontraria um jeito de tirar uma casquinha, afinal, a dançarina sabia o que aquele homem olhava:
Uma mulher negra, de altura mediana, com um chapéu roxo e espalhafatoso que escondia cabelos, mas ele já tivera a oportunidade de vê-los, centenas de vezes. Tranças enraizadas criavam caminhos que se formavam no final da testa e seguiam até a nuca antes de se libertarem do couro cabeludo e descerem soltas até o meio das costas. Uma mulher de olhos agateados e escuros, sempre bem delineados, com um nariz largo e de ponta arredondada, de lábios carnudos e queixo forte. Mas, apesar de considerar aquele rosto um tesouro, não era aquele o interesse do sujeito. Ele queria segurar aquele pescoço fino e apalpar os seios volumosos enquanto esfregava seu quadril no traseiro grande e arredondado.
Sem se sentir ameaçada, Maureen, disse:
- O que você quer?
Sua voz estava tranquila e carregava uma nota de deboche, deixando o homem fora de prumo, por um segundo. Mas ele logo se recuperou e, sem dizer nada, puxou da bainha uma faca de caça, enquanto exibia, novamente, seu dente de ouro e, com a outra mão, desabotoava a calça jeans.
Ainda com a voz tranquila, a dançarina continuou:
- Você quer trepar? É isso? Não precisa de violência... Pode guardar a faca... Mas venha com calma, não estrague o meu vestido.
Enquanto Maureen falava, tirou o chapéu e colocou, delicadamente, sobre um barril, encostado na parede a seu lado. Caminhava na direção do sujeito, sensualmente e fazendo brincadeiras com as mãos, girando os sapatos, passando de uma mão para a outra.
O homem olhava para a mulher que se aproximava e para a faca em sua mão, que começava a parecer despropositada e fora de contexto. Sua cabeça primitiva entrava em parafuso. “Todo esse tempo, era só eu pedir?”.
Maureen se aproximou mais alguns passos, sem olhar para baixo, pisando, com os pés nus, em todo o tipo de sujeira da viela. Até estar perto o suficiente para sentir o odor de suor e o hálito com cheiro de menta e nicotina do sujeito. Então começou a dançar. Movia o corpo de maneira sensual, ora inclinando-o para frente, exibindo o decote, ora erguendo a saia até o meio das pernas, fornecendo uma visão da coxa. Quando o homem tentava se aproximar, ela se afastava, ou colocava uma mão no peito do sujeito e o empurrava para trás. Cada vez mais distraído e convencido de que teria aquela mulher para si, o homem, finalmente, abaixou a faca.
Ainda com um movimento de dança, Maureen realizou um giro em trezentos e sessenta graus, enfiando o salto alto em um dos olhos do sujeito, no final do primeiro giro e, num segundo giro mais rápido, se agachando e aplicando uma rasteira precisa.
O homem caiu de costas, berrando de dor e ofendendo a dançarina com palavras incoerentes e ameaças de morte. A mulher se agachou e pegou a faca no chão, dizendo com uma voz dura, completamente diferente da anterior:
- Fica no chão e para de gritar. – E apontando a faca na direção dos botões abertos da calça, continuou: - Ou cabeças vão rolar.
Sem oferecer resistência, o sujeito ficou no chão, choramingando e pedindo desculpas.
Com a mão que segurava a faca, mas tomando cuidado para não estragar o vestido, Maureen puxou o decote, enquanto enfiava a outra no espaço criado, resgatando uma pequena tabuleta eletrônica e dizendo:
- Desculpa ter que tirar foto de você nessas condições, mas se eu não o fizer, o Hans nunca vai acreditar que eu atrasei por ter sido atacada no Bairro da Feira, você sabe como ele é.
Depois de tirar algumas fotos e devolver a tabuleta para o aconchego do decote, Maureen, ergueu o vestido até o meio da coxa e segurou assim por um tempo, até o homem concentrar seu único olho no movimento que ela fazia. Então ergueu um pouco mais, exibindo uma pistola Light Wave.
O homem arregalou o único olho e ergueu as mãos, em um movimento defensivo, falando:
- Por favor, me desculpa. Por favor!
Ignorando o que o homem dizia e, apontando a pistola, Maureen disse:
- Eu quero que fique claro. Eu poderia ter atirado em você, desde o começo. Quando você assoviou, eu podia só ter sacado a pistola e atirado, você entende isso?
- Entendo, me desculpa...
- E sabe por que eu não atirei?
- Por favor, me desculpa...
Um feixe de luz iluminou a viela, seguido pelo barulho agudo do disparo. Ao lado da cabeça do sujeito, um círculo vermelho fumegava no chão.
Maureen repetiu a pergunta, pronunciando as palavras mais lentamente:
- Você sabe por que eu não atirei?
- Não... Por favor...
- Pra que você espalhe por aí que as mulheres não são brinquedos. Você pode fazer isso por mim?
- Posso, posso sim...
- Agora me dê o sapato, eu preciso ir embora.
- O sapato?
- É. No seu olho. Meu sapato. Me dê.
O homem não teve reação e Maureen disparou uma segunda vez, ao lado do disparo anterior, onde jazia um círculo de vidro.
Com um grito, o homem puxou o salto de sua órbita ocular e desmaiou.
Maureen guardou a pistola no coldre atado em sua coxa, limpou o salto na camisa do sujeito e saiu andando depressa. Estava atrasada. Ainda teria lavar os pés, fazer a maquiagem e trocar de roupa. Sua apresentação era às dezenove horas.
Escurecia e as lâmpadas da delegacia continuavam apagadas. No mural de avisos, alternavam-se os cartazes de procurados, exibindo as últimas atualizações do sistema global. Não havia ninguém na cela de detenção provisória, pois, a atual gestão estava mais interessada na parte dos cartazes em que a palavra “morto” aparecia. Mas, apesar da tranquilidade reinante, não havia silêncio.Quem entrasse na delegacia veria, logo na primeira mesa, as solas da famosa bota com salto carrapeta. De cano alto e em couro de cobra, com padrões em preto e tons claros de cinza, o artigo era único em Baracoa, quase tão famoso quanto o homem que o calçava. A segunda coisa que o visitante perceberia, era o ronco do proprietário da bota. O som alto e inconstante, característico de quem sofre de apneia.O dorminhoco vestia calça jeans azul escura, com pe
O homem tinha o cabelo curto, liso e preto, penteado para o lado e mantido no lugar por algum produto capilar extremamente superfaturado. Seu rosto tinha um formato ovalado e livre de marcas de expressão. Os olhos rasgados, incomuns em Yurok, deixavam-no com uma expressão desconfiada. A boca não passava de um traço reto e inexpressivo. Vestia um terno feito sob medida, confeccionado por um alfaiate que cruzara meia galáxia apenas para trabalhar em suas vestimentas. O caimento ajustava-se perfeitamente ao corpo de Sakakibara, que, apesar da sua vida cheia de compromissos sem sentido, como presidente fantoche de Yurok, ainda encontrava tempo para manter uma “silhueta presidenciável”, como costumava dizer. Estava sentado no salão de descanso do Palácio Presidencial Jardim Estelar, lendo um livro, cuja história, fictícia, contava as façanhas de um ladrão de bancos que aterrorizava os poderoso
O centro de Baracoa e os bairros adjacentes eram um verdadeiro caos, tanto no o que diz respeito ao urbanismo, com suas quadras disformes, becos e vielas, quanto na questão humana, com fluxos intensos de veículos, que entupiam as poucas vias da região, largas o suficiente para comportá-los, e o grande número de transeuntes que, colocando as próprias vidas em risco, disputava lugar com os seus concorrentes motorizados.Por outro lado, os bairros do subúrbio semirrural eram tão diferentes da região central que pareciam estar em outro planeta. As ruas eram largas e só não eram tranquilas por culpa da correria e do barulho das crianças que brincavam na terra. Viam-se galinhas, cavalos, cachorros, gatos e, eventualmente, até vacas, passeando livres, surgindo por entre as casas e invadindo quintais alheios. Mas, apesar da atmosfera campestre, a situação financeira das pessoas qu
A mão esquerda do pianista subia e descia em um movimento preciso, como um metrônomo, extraindo do instrumento um constante “tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá”, enquanto a mão direita passeava pelas teclas mais agudas, que recebiam beijos rápidos das pontas dos dedos do artista.As mesas do Juanito Três Dedos estavam todas ocupadas, mas mesmo assim, mais pessoas empurravam a porta bangue bangue, encontrando um lugar para se acomodar, fosse apoiando um braço no balcão ou recostando em uma pilastra. A luz clara do final da tarde fora substituída pela luz amarelada dos candelabros, tornando o ambiente soturno, apesar da música animada.Pierre ocupava o mesmo banco, sem interagir com ninguém, fazia uma hora, com se aguardasse a chegada de alguém, tamborilando com os dedos contra o balcão, em movimentos compulsivos. Observava atentamente cada indiví
A moto Coby Welsh seguiu, em alta velocidade, para fora de Baracoa, deixando para trás o subúrbio e encontrando o horizonte sem fim, das terras devastadas pela seca. Christopher acelerava, em direção ao nada, permitindo que o vento modelasse seu cabelo crespo, enquanto tentava organizar os pensamentos.O assistente de xerife respeitava Munir, mas não poderia dizer que gostava do homem. Não sem mentir. Tentando usar o conhecimento que tinha sobre a forma de pensar do xerife, Christopher tentava justificar, de maneira racional, como permitir que ocorressem atrocidades, como a tortura daquela mulher, poderia ser algo que estivesse do lado da lei e da ordem. A areia castigava o lenço e as especulações se tornavam divagações.Pensava: “Como seguir a lei, por si só, pode ser uma coisa boa, quando os legisladores não trabalham, necessariamente, em prol de um bem comum
- Vocês jogam mais uma rodada?Perguntou Ezra, com sua voz grave e, após os três acompanhantes concordarem com um aceno de cabeça, apertou um dos botões na lateral da mesa.Pequenas réguas metálicas organizaram as fichas de apostas, formando quatro pilhas, uma em frente a cada jogador, enquanto as cartas eram organizadas em um quadrado, no centro da mesa, embaralhadas e distribuídas, automaticamente, duas para cada jogador e três ao centro da mesa, voltadas para baixo.Mesmo com as cartas de baralho em uma das mãos, o copo de uísque na outra e os olhos vagueando pela multidão, Ahillea era capaz de prestar atenção à história contada por Lorenzo.O homem calvo olhou as duas cartas em sua mão e jogou para o centro da mesa, viradas para baixo, abandonando a partida. Gesticulava com a bengala, desviando habilmente das pessoas que passavam perto d
A moto flutuante, modelo Akhal Teke, ergueu uma nuvem de poeira, quando a xerife Carol girou o veículo em noventa graus, parando, bruscamente, nas proximidades do Bairro do Óleo, um antigo entreposto comercial fora da capital, Baracoa, que, esquecido com a mudança das rotas mercantis, se tornara o abrigo de foragidos, rebeldes e imigrantes ilegais, vindos de outros planetas.A mulher olhou para a rua deserta à sua frente, imaginando como, minutos atrás, antes de sua nuvem de poeira ser vista pelos habitantes, aquele local devia estar repleto de vida. Tentando convencer a si mesma de que estava do lado certo da justiça, disse:- Bom... Quem não deve, não teme.Ela sabia que essa era uma verdade relativa, afinal, Baracoa não era uma cidade justa e as leis pareciam ser flexíveis, dobrando sempre para o lado mais capaz de gerar lucros, ou mais próximo dos interesses da Repúb
Cansado, o operário removeu o capacete de escafandrista, assim que foi puxado de volta à superfície por um colega de trabalho, exibindo um rosto redondo e benevolente, com a pele lisa de quem se barbeia todos os dias pela manhã. Seu nariz não passava de um pequeno detalhe no centro do rosto e a boca uma linha discreta, sem lábios, entretanto os olhos eram grandes e azuis. Devido ao esforço, seu cabelo loiro estava colado na testa e as bochechas vermelhas.Romeu, o colega perguntou:- E aí? Qual a situação?Afonso coçou os cabelos louros, pensando no trabalho que teria ao preencher o relatório daquela missão submarina.- O equipamento tá desgastado, nada fora do normal, vai aguentar, sem problemas, até a próxima manutenção. O maior problema é que o nível do mar está baixando mais rápido que o esperado. Se