A porta da casa estava escancarada, mas o assistente de xerife hesitava, parado, do outro lado da rua. Não queria encarar uma cena de crime, pois, apesar de ser parte da sua função, era sensível e cada tragédia teimava em ficar registrada em sua memória, para lhe assombrar durante a noite, por isso, se preparava olhando para “o famoso céu de Yurok”, como sempre dizia.
Aos trinta e cinco anos, Christopher ainda tinha um rosto jovem e o fato de carregar sempre um sorriso leve no rosto, ajudava a causar essa impressão. Não usava barba, mas carregava um fino bigode sobre os lábios grossos. Seu nariz era largo e as narinas bem abertas. Os olhos, redondos e escuros sempre deixavam o interlocutor à vontade, pois, passavam a segurança de que tudo o que era dito tinha sua importância. Contrariando a moda da Capital, o assistente não usava chapéu, exibindo com orgulho seu enorme cabelo crespo, que formava uma grande nuvem ao redor da cabeça. Quanto ao restante do fardamento, Christopher seguia a moda do planeta. Usava botas de cano alto, calça jeans reforçada com perneiras de couro, camisa xadrez e jaqueta cinturada, com franjas em uma linha vertical, do cotovelo ao punho. Era robusto e alto, muito mais alto que o comum, seu tamanho sendo agigantado, ainda mais, pelo cabelo.
Finalmente, olhando para a porta aberta, agradeceu à Sagrada Trindade por estar sozinho na delegacia quando recebeu aquela chamada. Apesar de Munir ser a melhor pessoa do universo para ter ao lado na hora da ação, em outros momentos, como aquele, o xerife costumava ser um tanto rude e até mesmo grosseiro.
A ligação fora anônima. O assistente sempre se divertia com a ingenuidade das pessoas que acreditavam ser possível ligar anonimamente para a delegacia. Mas, talvez, não acreditassem, preferindo manter a farsa apenas como recurso desesperado de tentar garantir que o xerife e seu assistente não usassem a informação contra o autor do telefonema. O fato é que, apesar de Christopher saber quem tinha realizado a chamada, por questão de princípios, ele jamais passaria essa informação para terceiros. Mesmo porque, o importante naquela situação, não era investigar quem tinha ligado, mas sim, o que acontecera. A diligência da Inquisição parara na frente daquela casa, ficara por algumas horas, houve gritos, outro morador chegou à residência, mais gritos e a Inquisição foi embora. Silêncio, desde então. Nenhum dos vizinhos teve coragem de entrar, todos sabiam a bagunça que aquela visita significava.
Christopher precisava parar de enrolar e entrar, mas mesmo ele, ficava indisposto com as crueldades cometidas por aquele grupo que, oficialmente, não existia. As visitas da Inquisição se tornavam cada vez mais frequentes, deixando um rastro de sangue por toda Baracoa, mas, quando qualquer reclamação era feita ao governo, este negava a existência da repartição ou o envolvimento da República nos assassinatos. No entanto, quando a população exigia que o xerife tomasse alguma providência, o mesmo governo enviava representantes à delegacia, pedindo que o caso fosse abafado e encerrado. O sangue do assistente fervia dentro das veias. O xerife acatava qualquer ordem superior como se fosse uma determinação divina. Um verdadeiro cão de caça.
Sem nem mesmo tirar a pistola do coldre, o assistente respirou fundo e, com passos largos, decidiu entrar na casa, de uma vez por todas.
A residência não tinha qualquer atrativo. Era simples, como qualquer outra casa habitada por um operário. No entanto, os móveis da sala tinham sido todos empurrados para um canto, o tapete com padrões geométricos, a mesa de centro, em madeira, com as bordas e quinas ornamentadas, o sofá disforme, escondido por uma capa protetora, todos amontoados e encostados na parede. Mesmo assim, era possível, pelas marcas mais claras no piso, identificar os lugares originais do sofá e do tapete.
No centro do cômodo, amarrada em uma antiga poltrona, estava a primeira vítima.
Christopher puxou, do bolso interno de sua jaqueta, a tabuleta eletrônica, conferindo alguns dados e sussurrando:
- Então... Muito prazer, Yasmin Castañeda.
Com o mesmo equipamento, tirou algumas fotos do corpo, reparando nos inúmeros cortes feitos nos braços, nos dois dedos ausentes, da mão direita e, olhando para o chão, contara, ao menos, cinco dentes.
- Esses caras são uns animais... Ela era uma rebelde, eu não tenho dúvidas quanto a isso, eles são precisos quando atacam, mas ninguém precisa passar por isso, não importa o crime que cometeu. Pelo menos nisso, Munir é democrático. Em suas mãos, ninguém nunca é agredido desnes...
O barulho de algo metálico caindo no chão de madeira, vindo do interior da casa, despertou Christopher de suas divagações. Pela primeira vez, teve impulso de sacar uma de suas pistolas Light Wave.
Caminhava pelo corredor, em direção à única porta aberta, quando escutou uma respiração ofegante.
Subitamente, entendeu para onde estava indo e o que estava acontecendo.
Olhando para a tabuleta, para confirmar o nome do homem, o assistente disse:
- Afonso? Não faça isso! Meu nome é Christopher, eu sou assistente de xerife. Estou guardando a pistola no coldre e vim aqui para te ajudar. Sua vida é preciosa. Eu posso imaginar o que está passando em sua cabeça, mas vamos conversar, ok? Eu estou entrando, não se assuste. Sou um homem grande, mas não se preocupe, não vim lhe fazer mal. O que quer que tenha em suas mãos, por favor, coloque na pia.
Enquanto falava, o assistente caminhava, evitando fazer qualquer barulho que pudesse disparar uma reação defensiva em Afonso. O homem estava traumatizado e em choque. Todo cuidado era necessário.
Quando deu o primeiro passo para dentro do banheiro, Christopher viu os olhos assustados do homem que o encarava, pelo espelho. O rosto, naturalmente redondo, estava ainda mais inchado pelo choro. O homem estava completamente nu e as peles do braço, de um dos lados do rosto e da barriga estavam levemente esfoladas. Afonso segurava uma lâmina de barbear pressionada contra o pescoço, de onde escorria um fino fio de sangue.
- Ei, tá vendo? Olha pra mim! Você não precisa fazer isso! Eu tô aqui, vim te ajudar. Vamos sair desse banheiro, vamos para o quarto!
As roupas de Afonso estavam empilhadas em um canto, ao lado da banheira e havia respingos de sangue por todo o cômodo. Na banheira, o resto da água que se acumulava ao redor do ralo era rosada. Christopher imaginou que o homem gordo tinha se ralado de tanto esfregar o corpo, tentando limpar o sangue de sua esposa. O homem de cabelos crespos tentava impedir o outro de cometer suicídio, mais por dever do que por convicção. O cenário que vira na sala daquela casa o deixara profundamente abalado e, além de estar acostumado em lidar com a morte, aquela mulher não significava nada para ele. Não conseguia imaginar a devastação interior que aquele homem estava vivendo.
Mas, mesmo sem convicção, as palavras do assistente fizeram efeito. Afonso soltou a lâmina, que caiu na pia com um tinido característico e, empurrando levemente o assistente de xerife, saiu do banheiro, entrando na porta ao lado.
Christopher seguiu o homem e o encontrou sentado na cama, com os cotovelos apoiados nas pernas, olhando para os próprios pés. Afonso ergueu a cabeça, dizendo:
- Como eu posso continuar vivendo, depois disso?
Usando a tabuleta eletrônica, Christopher convocou pessoas especializadas que cuidariam do corpo e removeriam todos os vestígios do ocorrido, na sala. Não era o procedimento padrão, mas, como o governo proibiria a investigação, de qualquer maneira, seria crueldade deixar a vítima exposta naquelas circunstâncias. Enquanto realizava esses procedimentos, respondeu o homem gordo, sem coragem de olhar para seus olhos:
- A gente sempre encontra um motivo pra continuar vivendo, é só você procurar.
Afonso abaixou a cabeça, voltando para a posição original. No silêncio do quarto, era possível ouvir o som das lágrimas se espatifando contra o piso de madeira.
Saindo do quarto, Christopher fez a pergunta mais idiota que se pode fazer nessas situações:
- Você vai ficar bem?
Afonso fez um gesto com a mão, indicando que o assistente fosse embora, enquanto dizia:
- Claro, claro. Vou ficar bem. Um motivo para viver, não é? É disso que preciso...
Christopher saiu da casa e subiu em sua moto flutuante, modelo Coby Welsh. Ele precisava voltar para a delegacia, mas não conseguiria fazer aquilo. Precisava organizar seus pensamentos antes.
O relógio da torre soou, pela sexta vez, indicando que Maureen estava atrasada. A dançarina seria capaz de jurar por cada um dos deuses da Tríade que saíra de casa no mesmo horário de sempre e ela não estaria mentindo. O que jamais contaria a ninguém é que entrara em uma chapelaria na Rua do Rio e, após quase quarenta minutos, deixara a loja com o mesmo chapéu e sem nenhum embrulho nas mãos.Maureen cortara caminho pelas vielas do Bairro da Feira, tentando encurtar o caminho, mas ainda tinha algumas centenas de metros a percorrer antes de chegar a seu objetivo. Para concluir sua jornada até o Saloon Juanito Três Dedos com menos atraso, a dançarina ergueu sua volumosa saia até a altura dos joelhos, ergueu do chão uma das pernas, fazendo um ‘quatro’ e tirou um dos sapatos. Colocou o pé descalço, cujas delicadas unhas estavam pintadas de verde
Escurecia e as lâmpadas da delegacia continuavam apagadas. No mural de avisos, alternavam-se os cartazes de procurados, exibindo as últimas atualizações do sistema global. Não havia ninguém na cela de detenção provisória, pois, a atual gestão estava mais interessada na parte dos cartazes em que a palavra “morto” aparecia. Mas, apesar da tranquilidade reinante, não havia silêncio.Quem entrasse na delegacia veria, logo na primeira mesa, as solas da famosa bota com salto carrapeta. De cano alto e em couro de cobra, com padrões em preto e tons claros de cinza, o artigo era único em Baracoa, quase tão famoso quanto o homem que o calçava. A segunda coisa que o visitante perceberia, era o ronco do proprietário da bota. O som alto e inconstante, característico de quem sofre de apneia.O dorminhoco vestia calça jeans azul escura, com pe
O homem tinha o cabelo curto, liso e preto, penteado para o lado e mantido no lugar por algum produto capilar extremamente superfaturado. Seu rosto tinha um formato ovalado e livre de marcas de expressão. Os olhos rasgados, incomuns em Yurok, deixavam-no com uma expressão desconfiada. A boca não passava de um traço reto e inexpressivo. Vestia um terno feito sob medida, confeccionado por um alfaiate que cruzara meia galáxia apenas para trabalhar em suas vestimentas. O caimento ajustava-se perfeitamente ao corpo de Sakakibara, que, apesar da sua vida cheia de compromissos sem sentido, como presidente fantoche de Yurok, ainda encontrava tempo para manter uma “silhueta presidenciável”, como costumava dizer. Estava sentado no salão de descanso do Palácio Presidencial Jardim Estelar, lendo um livro, cuja história, fictícia, contava as façanhas de um ladrão de bancos que aterrorizava os poderoso
O centro de Baracoa e os bairros adjacentes eram um verdadeiro caos, tanto no o que diz respeito ao urbanismo, com suas quadras disformes, becos e vielas, quanto na questão humana, com fluxos intensos de veículos, que entupiam as poucas vias da região, largas o suficiente para comportá-los, e o grande número de transeuntes que, colocando as próprias vidas em risco, disputava lugar com os seus concorrentes motorizados.Por outro lado, os bairros do subúrbio semirrural eram tão diferentes da região central que pareciam estar em outro planeta. As ruas eram largas e só não eram tranquilas por culpa da correria e do barulho das crianças que brincavam na terra. Viam-se galinhas, cavalos, cachorros, gatos e, eventualmente, até vacas, passeando livres, surgindo por entre as casas e invadindo quintais alheios. Mas, apesar da atmosfera campestre, a situação financeira das pessoas qu
A mão esquerda do pianista subia e descia em um movimento preciso, como um metrônomo, extraindo do instrumento um constante “tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá”, enquanto a mão direita passeava pelas teclas mais agudas, que recebiam beijos rápidos das pontas dos dedos do artista.As mesas do Juanito Três Dedos estavam todas ocupadas, mas mesmo assim, mais pessoas empurravam a porta bangue bangue, encontrando um lugar para se acomodar, fosse apoiando um braço no balcão ou recostando em uma pilastra. A luz clara do final da tarde fora substituída pela luz amarelada dos candelabros, tornando o ambiente soturno, apesar da música animada.Pierre ocupava o mesmo banco, sem interagir com ninguém, fazia uma hora, com se aguardasse a chegada de alguém, tamborilando com os dedos contra o balcão, em movimentos compulsivos. Observava atentamente cada indiví
A moto Coby Welsh seguiu, em alta velocidade, para fora de Baracoa, deixando para trás o subúrbio e encontrando o horizonte sem fim, das terras devastadas pela seca. Christopher acelerava, em direção ao nada, permitindo que o vento modelasse seu cabelo crespo, enquanto tentava organizar os pensamentos.O assistente de xerife respeitava Munir, mas não poderia dizer que gostava do homem. Não sem mentir. Tentando usar o conhecimento que tinha sobre a forma de pensar do xerife, Christopher tentava justificar, de maneira racional, como permitir que ocorressem atrocidades, como a tortura daquela mulher, poderia ser algo que estivesse do lado da lei e da ordem. A areia castigava o lenço e as especulações se tornavam divagações.Pensava: “Como seguir a lei, por si só, pode ser uma coisa boa, quando os legisladores não trabalham, necessariamente, em prol de um bem comum
- Vocês jogam mais uma rodada?Perguntou Ezra, com sua voz grave e, após os três acompanhantes concordarem com um aceno de cabeça, apertou um dos botões na lateral da mesa.Pequenas réguas metálicas organizaram as fichas de apostas, formando quatro pilhas, uma em frente a cada jogador, enquanto as cartas eram organizadas em um quadrado, no centro da mesa, embaralhadas e distribuídas, automaticamente, duas para cada jogador e três ao centro da mesa, voltadas para baixo.Mesmo com as cartas de baralho em uma das mãos, o copo de uísque na outra e os olhos vagueando pela multidão, Ahillea era capaz de prestar atenção à história contada por Lorenzo.O homem calvo olhou as duas cartas em sua mão e jogou para o centro da mesa, viradas para baixo, abandonando a partida. Gesticulava com a bengala, desviando habilmente das pessoas que passavam perto d
A moto flutuante, modelo Akhal Teke, ergueu uma nuvem de poeira, quando a xerife Carol girou o veículo em noventa graus, parando, bruscamente, nas proximidades do Bairro do Óleo, um antigo entreposto comercial fora da capital, Baracoa, que, esquecido com a mudança das rotas mercantis, se tornara o abrigo de foragidos, rebeldes e imigrantes ilegais, vindos de outros planetas.A mulher olhou para a rua deserta à sua frente, imaginando como, minutos atrás, antes de sua nuvem de poeira ser vista pelos habitantes, aquele local devia estar repleto de vida. Tentando convencer a si mesma de que estava do lado certo da justiça, disse:- Bom... Quem não deve, não teme.Ela sabia que essa era uma verdade relativa, afinal, Baracoa não era uma cidade justa e as leis pareciam ser flexíveis, dobrando sempre para o lado mais capaz de gerar lucros, ou mais próximo dos interesses da Repúb