A jovem loura, de cabelos longos, cujos cachos serpeavam por suas costas até a linha da cintura, estava nua e observava atentamente seu reflexo no espelho. As coxas grossas e musculosas, os pelos pubianos que, da mesma cor de seu cabelo, cintilavam, o abdômen rígido com musculatura definida, os seios pequenos e duros, com mamilos discretos, quase da mesma cor de sua pele alva, salpicada por centenas de sinais. Os ombros largos e fortes, assim como os braços. Os olhos pequenos e verdes, o nariz pequeno, mas de traços fortes, assim como sua boca, que se mantinha em um constante sorriso sarcástico. Hilde olhava para seu belo rosto, depois para o corpo, modelado por seu treinamento constante, mas não sentia orgulho, havia até um certo quê de indiferença pelo que via. Desde que retornara para Yurok, retornando para casa de sua mãe, tinha de gastar horas se maquiando, escondendo suas feições, preparando-se para fazer seu trabalho.
Ainda jovem, percebeu que, lentamente, o Planeta Yurok abandonava a neutralidade na guerra intergaláctica, cedendo o controle de seu governo para um dos lados. Primeiro, favorecendo a República em alguns contratos de exploração de oxigênio, depois, permitindo o estabelecimento de pequenas forças militares, cujo objetivo anunciado para a população não fazia sentido algum, pois, se tratava de instalar oficiais da República no planeta para impedir a intervenção do grupo rival, a Coligação Interplanetária, garantindo assim que Yurok se mantivesse independente. Hilde percebeu que o caminho escolhido pelo planeta era sem volta e, aos dezenove anos, fez o que quase todos os jovens de Baracoa, da sua idade, desejavam fazer: Embarcou clandestinamente em uma espaçonave comercial, cujo destino não conhecia, e fugiu.
Seu esconderijo foi descoberto, logo nos primeiros minutos após a decolagem, pois, como protocolo de toda nave comercial, em viagens entre sistemas diferentes, foi feita uma varredura biológica, com o intuito de impedir a disseminação de vírus e pragas. O complexo scanner, capaz de detectar bactérias, até mesmo por trás de espessas placas metálicas, detectou um ser humano com uma facilidade despropositada.
Hilde foi levada ao capitão da espaçonave que, após perguntar o motivo da fuga da jovem, solidarizou-se, pois, ele mesmo começara a sua carreira na Espaçonáutica Mercantil por ser um desertor político. Como forma de mostrar sua simpatia pela forma de pensar de Hilde, resolveu que concederia tratamento especial e, ao invés de jogá-la no vácuo do espaço, tomou uma decisão mais humana e, em um dos entrepostos comerciais, por uma boa quantia em créditos não marcados, vendeu-a como escrava para uma espaçonave da Coligação, dizendo:
- Essa menina vai longe, fugiu de Yurok por não querer vê-la nas mãos da República, façam bom proveito!
Os espaçonautas da Coligação seguiram o conselho do capitão.
Os compradores de Hilde eram, na verdade, membros da FOEC, a Força de Operações Especiais da Coligação, cuja missão corrente no dia da negociação envolvendo a jovem era, justamente, debelar o tráfico humano, que se tornara cada vez mais frequente naquele setor do universo. Os créditos não marcados, como o prometido, estavam livres de qualquer tributação, mas eram totalmente rastreáveis e a nave foi abatida por um esquadrão de caça, algumas semanas depois.
Normalmente, os escravos comprados pela FOEC eram levados, provisoriamente, para campos de refugiados e, após triagem, restituídos aos seus planetas de origem, ou, caso isso não fosse possível, deixados em alguma colônia que necessitasse de suas habilidades. Mas, Hilde não era uma jovem normal. Sua capacidade de argumentar e insistir eram tão grandes que acabara convencendo os responsáveis por sua tutela sobre a seriedade da ocupação do Planeta Yurok pela República, que já detinha supremacia militar e buscava hegemonia econômica, enquanto batalhava cargos, cada vez mais, importantes na política do país.
Agentes se infiltraram em Yurok para confirmar as informações de Hilde e estas se mostraram coerentes. Como parte da barganha, a jovem foi submetida a testes físicos, psicológicos e de inteligência, nos quais, com maior ou menor louvor, foi aprovada, juntando-se à FOEC.
Após três anos de treinamento intenso e rigoroso, com sucesso em inúmeras pequenas missões, em diversos setores do universo, Hilde foi convocada para fazer parte de um grupo ainda mais exclusivo, dentro da FOEC, a Polícia Científica Experimental.
A PoCiEx era composta por dois grupos: o científico, que desenvolvia armamentos, armaduras, equipamentos e bugigangas da mais alta e moderna tecnologia; e o de campo, que experimentava essas tecnologias de modo secreto, usando-os como elemento surpresa nas mais importantes operações. Em outras palavras, Hilde se tornara uma agente secreta.
Alguns meses antes de estar se maquiando, em frente a um espelho, em seu planeta natal, Hilde vagava pelo espaço, na espaçonave sede da PoCiEx, “de castigo” como dizia, enquanto se recuperava dos ferimentos de uma missão que saíra diferente do esperado, por culpa do mal funcionamento de um de seus equipamentos.
O médico terminou de examinar suas costas e, com um sorriso, deu um parecer final:
- Você está pronta pra voltar a ativa.
Hilde mal teve tempo para ficar ansiosa, imaginando quando receberia uma nova missão, pois, alguns minutos após a saída do médico, um agente bateu em sua porta. A jovem recebeu a tradicional tabuleta eletrônica parda, com leitor de retina e o aviso: apenas para seus olhos.
Diferentemente das outras missões que recebera até então, com detalhes bem definidos, contatos estipulados e planos de reserva caso algo na missão corresse fora do esperado, aquela tabuleta parda era, ao mesmo tempo, tudo o que mais sonhara e tudo o que mais temia. Uma missão da mais alta categoria.
A jovem deveria voltar para Yurok, com uma história plausível para seu desaparecimento de cinco anos e recuperar a confiança de seus familiares e antigas relações. Garantir que fosse considerada apenas uma jovem sonsa e passar despercebida por possíveis oficiais da República, que a estivessem monitorando. Com discrição, deveria elaborar e executar, sozinha ou com os recursos que encontrasse no planeta, um plano que inviabilizasse ou atrasasse as ideias de colonização de Yurok pela República.
Hilde nem imaginava o quanto sentia saudades daquele céu roxo-avermelhado e das quase constantes estrelas cadentes riscando o horizonte. Ela tinha estado em centenas de planetas com os mais diversos céus, nenhum era capaz de se igualar àquele em beleza.
Mas agora, irreconhecível, vestida para continuar sua pesquisa, até então infrutífera, sobre como derrubar o governo corrupto de Sakakibara e escapar ilesa para retornar à FOEC, a jovem tamborilava, com os dedos, o peitoral da janela, contando estrelas cadentes, enquanto se concentrava para mais um dia de trabalho.
A porta da casa estava escancarada, mas o assistente de xerife hesitava, parado, do outro lado da rua. Não queria encarar uma cena de crime, pois, apesar de ser parte da sua função, era sensível e cada tragédia teimava em ficar registrada em sua memória, para lhe assombrar durante a noite, por isso, se preparava olhando para “o famoso céu de Yurok”, como sempre dizia.Aos trinta e cinco anos, Christopher ainda tinha um rosto jovem e o fato de carregar sempre um sorriso leve no rosto, ajudava a causar essa impressão. Não usava barba, mas carregava um fino bigode sobre os lábios grossos. Seu nariz era largo e as narinas bem abertas. Os olhos, redondos e escuros sempre deixavam o interlocutor à vontade, pois, passavam a segurança de que tudo o que era dito tinha sua importância. Contrariando a moda da Capital, o assistente não usava chapéu, exibindo com orgulho seu
O relógio da torre soou, pela sexta vez, indicando que Maureen estava atrasada. A dançarina seria capaz de jurar por cada um dos deuses da Tríade que saíra de casa no mesmo horário de sempre e ela não estaria mentindo. O que jamais contaria a ninguém é que entrara em uma chapelaria na Rua do Rio e, após quase quarenta minutos, deixara a loja com o mesmo chapéu e sem nenhum embrulho nas mãos.Maureen cortara caminho pelas vielas do Bairro da Feira, tentando encurtar o caminho, mas ainda tinha algumas centenas de metros a percorrer antes de chegar a seu objetivo. Para concluir sua jornada até o Saloon Juanito Três Dedos com menos atraso, a dançarina ergueu sua volumosa saia até a altura dos joelhos, ergueu do chão uma das pernas, fazendo um ‘quatro’ e tirou um dos sapatos. Colocou o pé descalço, cujas delicadas unhas estavam pintadas de verde
Escurecia e as lâmpadas da delegacia continuavam apagadas. No mural de avisos, alternavam-se os cartazes de procurados, exibindo as últimas atualizações do sistema global. Não havia ninguém na cela de detenção provisória, pois, a atual gestão estava mais interessada na parte dos cartazes em que a palavra “morto” aparecia. Mas, apesar da tranquilidade reinante, não havia silêncio.Quem entrasse na delegacia veria, logo na primeira mesa, as solas da famosa bota com salto carrapeta. De cano alto e em couro de cobra, com padrões em preto e tons claros de cinza, o artigo era único em Baracoa, quase tão famoso quanto o homem que o calçava. A segunda coisa que o visitante perceberia, era o ronco do proprietário da bota. O som alto e inconstante, característico de quem sofre de apneia.O dorminhoco vestia calça jeans azul escura, com pe
O homem tinha o cabelo curto, liso e preto, penteado para o lado e mantido no lugar por algum produto capilar extremamente superfaturado. Seu rosto tinha um formato ovalado e livre de marcas de expressão. Os olhos rasgados, incomuns em Yurok, deixavam-no com uma expressão desconfiada. A boca não passava de um traço reto e inexpressivo. Vestia um terno feito sob medida, confeccionado por um alfaiate que cruzara meia galáxia apenas para trabalhar em suas vestimentas. O caimento ajustava-se perfeitamente ao corpo de Sakakibara, que, apesar da sua vida cheia de compromissos sem sentido, como presidente fantoche de Yurok, ainda encontrava tempo para manter uma “silhueta presidenciável”, como costumava dizer. Estava sentado no salão de descanso do Palácio Presidencial Jardim Estelar, lendo um livro, cuja história, fictícia, contava as façanhas de um ladrão de bancos que aterrorizava os poderoso
O centro de Baracoa e os bairros adjacentes eram um verdadeiro caos, tanto no o que diz respeito ao urbanismo, com suas quadras disformes, becos e vielas, quanto na questão humana, com fluxos intensos de veículos, que entupiam as poucas vias da região, largas o suficiente para comportá-los, e o grande número de transeuntes que, colocando as próprias vidas em risco, disputava lugar com os seus concorrentes motorizados.Por outro lado, os bairros do subúrbio semirrural eram tão diferentes da região central que pareciam estar em outro planeta. As ruas eram largas e só não eram tranquilas por culpa da correria e do barulho das crianças que brincavam na terra. Viam-se galinhas, cavalos, cachorros, gatos e, eventualmente, até vacas, passeando livres, surgindo por entre as casas e invadindo quintais alheios. Mas, apesar da atmosfera campestre, a situação financeira das pessoas qu
A mão esquerda do pianista subia e descia em um movimento preciso, como um metrônomo, extraindo do instrumento um constante “tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá”, enquanto a mão direita passeava pelas teclas mais agudas, que recebiam beijos rápidos das pontas dos dedos do artista.As mesas do Juanito Três Dedos estavam todas ocupadas, mas mesmo assim, mais pessoas empurravam a porta bangue bangue, encontrando um lugar para se acomodar, fosse apoiando um braço no balcão ou recostando em uma pilastra. A luz clara do final da tarde fora substituída pela luz amarelada dos candelabros, tornando o ambiente soturno, apesar da música animada.Pierre ocupava o mesmo banco, sem interagir com ninguém, fazia uma hora, com se aguardasse a chegada de alguém, tamborilando com os dedos contra o balcão, em movimentos compulsivos. Observava atentamente cada indiví
A moto Coby Welsh seguiu, em alta velocidade, para fora de Baracoa, deixando para trás o subúrbio e encontrando o horizonte sem fim, das terras devastadas pela seca. Christopher acelerava, em direção ao nada, permitindo que o vento modelasse seu cabelo crespo, enquanto tentava organizar os pensamentos.O assistente de xerife respeitava Munir, mas não poderia dizer que gostava do homem. Não sem mentir. Tentando usar o conhecimento que tinha sobre a forma de pensar do xerife, Christopher tentava justificar, de maneira racional, como permitir que ocorressem atrocidades, como a tortura daquela mulher, poderia ser algo que estivesse do lado da lei e da ordem. A areia castigava o lenço e as especulações se tornavam divagações.Pensava: “Como seguir a lei, por si só, pode ser uma coisa boa, quando os legisladores não trabalham, necessariamente, em prol de um bem comum
- Vocês jogam mais uma rodada?Perguntou Ezra, com sua voz grave e, após os três acompanhantes concordarem com um aceno de cabeça, apertou um dos botões na lateral da mesa.Pequenas réguas metálicas organizaram as fichas de apostas, formando quatro pilhas, uma em frente a cada jogador, enquanto as cartas eram organizadas em um quadrado, no centro da mesa, embaralhadas e distribuídas, automaticamente, duas para cada jogador e três ao centro da mesa, voltadas para baixo.Mesmo com as cartas de baralho em uma das mãos, o copo de uísque na outra e os olhos vagueando pela multidão, Ahillea era capaz de prestar atenção à história contada por Lorenzo.O homem calvo olhou as duas cartas em sua mão e jogou para o centro da mesa, viradas para baixo, abandonando a partida. Gesticulava com a bengala, desviando habilmente das pessoas que passavam perto d