Cansado, o operário removeu o capacete de escafandrista, assim que foi puxado de volta à superfície por um colega de trabalho, exibindo um rosto redondo e benevolente, com a pele lisa de quem se barbeia todos os dias pela manhã. Seu nariz não passava de um pequeno detalhe no centro do rosto e a boca uma linha discreta, sem lábios, entretanto os olhos eram grandes e azuis. Devido ao esforço, seu cabelo loiro estava colado na testa e as bochechas vermelhas.
Romeu, o colega perguntou:
- E aí? Qual a situação?
Afonso coçou os cabelos louros, pensando no trabalho que teria ao preencher o relatório daquela missão submarina.
- O equipamento tá desgastado, nada fora do normal, vai aguentar, sem problemas, até a próxima manutenção. O maior problema é que o nível do mar está baixando mais rápido que o esperado. Se essa fonte continuar secando nesse ritmo, em um ano ou dois a gente não vai mais ter onde trabalhar.
Coçando a barba, o colega andou de um lado para o outro, enquanto dizia:
- Eu avisei que isso ia acontecer, as máquinas oxigênicas tão todas trabalhando em potência máxima... O que a WaterTec quer? Criar uma atmosfera respirável em outro planeta, às custas do nosso?
O homem bonachão riu:
- Então vamos juntando dinheiro pra mudar pra lá!
A sirene tocou, indicando que faltava quinze minutos para o término do turno. Com um aceno de mão, Romeu se despediu, falando, enquanto se afastava:
- Não se esqueça de deixar o relatório na minha mesa, antes de sair.
Afonso suspirou, enquanto retirava o traje de mergulho. Pensando na sua esposa, de sorriso fácil, longos cabelos ruivos e corpo farto e curvilíneo, falou para si mesmo:
- Pelo menos, logo estarei em casa, nos braços da Yas, sem precisar me preocupar com nada dessa porcaria.
Logo que a moto flutuante, modelo Donkey Pride, dobrou a esquina e Afonso chegou à rua de sua casa, percebeu que algo estava errado.
Estacionada em frente à residência do homem de rosto bonachão, estava uma diligência flutuante, de cor preta. Veículo usado exclusivamente pelos oficiais da República.
Apreensivo, Afonso reduziu a velocidade, parando a Donkey Pride do outro lado da rua. A porta de sua casa estava aberta e dois homens, um parado ao lado esquerdo da porta e outro ao lado direito, o encaravam. Vestiam-se de forma pouco convencional em Yurok, com sapatos, ternos pretos, camisas brancas e gravatas. Oficiais da República, do pior tipo. Eram inquisidores.
Sem saber o que fazer, o homem bonachão olhou para a Donkey Pride, cogitando se deveria, simplesmente, fugir. Mas Yasmin estava lá e ele não poderia abandoná-la. Nada daquilo fazia sentido, ele tinha todas as suas obrigações com o governo em dia, não participava de nenhuma reunião ilícita e nem mesmo conhecia nenhum rebelde. Será que seu relatório sobre a escassez de água tinha incomodado alguém do alto escalão? Se fosse isso, ele poderia fugir e Yas estaria segura.
Lendo sua linguagem corporal e percebendo as intenções de Afonso, um dos inquisidores sacou a pistola enquanto o outro gesticulava para que ele se aproximasse. Afonso obedeceu.
- Afonso Castañeda?
- Sim...
- Faça o favor, nos acompanhe.
O homem bonachão acreditou que seria levado para dentro da diligência, mas um dos inquisidores virou as costas e entrou na residência, enquanto o outro aguardava a passagem de Afonso, para seguir, logo atrás.
No centro da sala, Yasmin estava sentada em uma poltrona. ‘A poltrona centenária que meu avô ganhou em um jogo de cartas’, pensou, incongruentemente, Afonso. Seu cérebro tentava evitar processar a cena que se desdobrava em sua frente. Havia um líquido vermelho espalhado pelo chão, além de dois objetos cilíndricos, grossos demais para serem cigarros, mas finos demais para que fossem charutos. Em uma das pontas de cada objeto havia uma espécie de lâmina vermelha.
As pernas de Afonso fraquejaram e, instantaneamente, um dos inquisidores o amparou pelo braço.
Yasmin estava de cabeça baixa, os longos cabelos escondendo a parte frontal de seu corpo, coberto pelo costumeiro vestido amarelo e sem muitos ornamentos que sua esposa usava para ficar em casa. Atrás dela, uma mulher, com a mesma roupa dos outros inquisidores, mas sem o terno, com uma mão arregaçava as mangas da camisa, que por algum motivo estavam pintadas de vermelho e com a outra segurava um alicate.
A mulher juntou os cabelos de Yasmin e puxou, com violência, sua cabeça para trás, enquanto dizia:
- Você tem mais alguma coisa pra nos contar?
Yasmin abriu os olhos, assustados, enquanto dizia, entre engasgos:
- Não, por favor, não. Eu disse tudo.
Afonso deu um passo à frente, com a intenção de acudir a esposa, mas recebeu um chute na parte detrás do joelho, que fez com que seu corpo cedesse. Um dos inquisidores o segurou pelos cabelos, forçando-o a encarar a esposa. Na queda, sua mão pousou sobre um dos cilindros, que Afonso segurou, involuntariamente.
Arrancando um dente de Yasmin, habilidosamente, a mulher perguntou:
- Tem algo que você queira contar para seu marido?
A tortura não tinha sido o suficiente para fazer Yasmin chorar, mas nesse momento, enquanto encarava o marido, as lágrimas começaram escorrer por seu rosto. Engasgando com o próprio sangue, ela disse:
- Desculpa, meu amor. Eu faço parte da rebelião. Eu não queria esconder de você, mas eu não podia te colocar em perigo.
Afonso fechou os olhos, dizendo repetidas vezes:
- Não. Não. Não. Não. – Como se um milagre pudesse acontecer e, ao abrir os olhos, ele fosse capaz de ter chegado em casa, em um dia comum, e ter sido recebido com o cheiro do milho cozido e o sorriso estonteante de Yasmin.
Mas ouviu a voz de um dos homens atrás de si, dizer:
- Acho que terminamos por aqui.
Afonso abriu os olhos, na esperança de ver os inquisidores irem embora, mas o que viu foi a mulher sacar uma pistola laser e disparar contra a nuca de sua esposa, antes de dizer:
- Vamos.
E ao passar por ele:
- Eu gostaria de dizer que sinto muito por isso, mas sua obrigação como cidadão era ter percebido que morava com uma inimiga.
Logo em seguida, escutou a porta bater atrás de si.
Sentindo-se anestesiado, como se nada daquilo pudesse ser real, Afonso olhou curioso para o objeto que segurava em sua mão.
Horrorizado, percebeu que era um dos dedos de Yasmin. O homem bonachão desmaiou sobre o sangue da esposa morta.
A jovem loura, de cabelos longos, cujos cachos serpeavam por suas costas até a linha da cintura, estava nua e observava atentamente seu reflexo no espelho. As coxas grossas e musculosas, os pelos pubianos que, da mesma cor de seu cabelo, cintilavam, o abdômen rígido com musculatura definida, os seios pequenos e duros, com mamilos discretos, quase da mesma cor de sua pele alva, salpicada por centenas de sinais. Os ombros largos e fortes, assim como os braços. Os olhos pequenos e verdes, o nariz pequeno, mas de traços fortes, assim como sua boca, que se mantinha em um constante sorriso sarcástico. Hilde olhava para seu belo rosto, depois para o corpo, modelado por seu treinamento constante, mas não sentia orgulho, havia até um certo quê de indiferença pelo que via. Desde que retornara para Yurok, retornando para casa de sua mãe, tinha de gastar horas se maquiando, escondendo suas feições, preparan
A porta da casa estava escancarada, mas o assistente de xerife hesitava, parado, do outro lado da rua. Não queria encarar uma cena de crime, pois, apesar de ser parte da sua função, era sensível e cada tragédia teimava em ficar registrada em sua memória, para lhe assombrar durante a noite, por isso, se preparava olhando para “o famoso céu de Yurok”, como sempre dizia.Aos trinta e cinco anos, Christopher ainda tinha um rosto jovem e o fato de carregar sempre um sorriso leve no rosto, ajudava a causar essa impressão. Não usava barba, mas carregava um fino bigode sobre os lábios grossos. Seu nariz era largo e as narinas bem abertas. Os olhos, redondos e escuros sempre deixavam o interlocutor à vontade, pois, passavam a segurança de que tudo o que era dito tinha sua importância. Contrariando a moda da Capital, o assistente não usava chapéu, exibindo com orgulho seu
O relógio da torre soou, pela sexta vez, indicando que Maureen estava atrasada. A dançarina seria capaz de jurar por cada um dos deuses da Tríade que saíra de casa no mesmo horário de sempre e ela não estaria mentindo. O que jamais contaria a ninguém é que entrara em uma chapelaria na Rua do Rio e, após quase quarenta minutos, deixara a loja com o mesmo chapéu e sem nenhum embrulho nas mãos.Maureen cortara caminho pelas vielas do Bairro da Feira, tentando encurtar o caminho, mas ainda tinha algumas centenas de metros a percorrer antes de chegar a seu objetivo. Para concluir sua jornada até o Saloon Juanito Três Dedos com menos atraso, a dançarina ergueu sua volumosa saia até a altura dos joelhos, ergueu do chão uma das pernas, fazendo um ‘quatro’ e tirou um dos sapatos. Colocou o pé descalço, cujas delicadas unhas estavam pintadas de verde
Escurecia e as lâmpadas da delegacia continuavam apagadas. No mural de avisos, alternavam-se os cartazes de procurados, exibindo as últimas atualizações do sistema global. Não havia ninguém na cela de detenção provisória, pois, a atual gestão estava mais interessada na parte dos cartazes em que a palavra “morto” aparecia. Mas, apesar da tranquilidade reinante, não havia silêncio.Quem entrasse na delegacia veria, logo na primeira mesa, as solas da famosa bota com salto carrapeta. De cano alto e em couro de cobra, com padrões em preto e tons claros de cinza, o artigo era único em Baracoa, quase tão famoso quanto o homem que o calçava. A segunda coisa que o visitante perceberia, era o ronco do proprietário da bota. O som alto e inconstante, característico de quem sofre de apneia.O dorminhoco vestia calça jeans azul escura, com pe
O homem tinha o cabelo curto, liso e preto, penteado para o lado e mantido no lugar por algum produto capilar extremamente superfaturado. Seu rosto tinha um formato ovalado e livre de marcas de expressão. Os olhos rasgados, incomuns em Yurok, deixavam-no com uma expressão desconfiada. A boca não passava de um traço reto e inexpressivo. Vestia um terno feito sob medida, confeccionado por um alfaiate que cruzara meia galáxia apenas para trabalhar em suas vestimentas. O caimento ajustava-se perfeitamente ao corpo de Sakakibara, que, apesar da sua vida cheia de compromissos sem sentido, como presidente fantoche de Yurok, ainda encontrava tempo para manter uma “silhueta presidenciável”, como costumava dizer. Estava sentado no salão de descanso do Palácio Presidencial Jardim Estelar, lendo um livro, cuja história, fictícia, contava as façanhas de um ladrão de bancos que aterrorizava os poderoso
O centro de Baracoa e os bairros adjacentes eram um verdadeiro caos, tanto no o que diz respeito ao urbanismo, com suas quadras disformes, becos e vielas, quanto na questão humana, com fluxos intensos de veículos, que entupiam as poucas vias da região, largas o suficiente para comportá-los, e o grande número de transeuntes que, colocando as próprias vidas em risco, disputava lugar com os seus concorrentes motorizados.Por outro lado, os bairros do subúrbio semirrural eram tão diferentes da região central que pareciam estar em outro planeta. As ruas eram largas e só não eram tranquilas por culpa da correria e do barulho das crianças que brincavam na terra. Viam-se galinhas, cavalos, cachorros, gatos e, eventualmente, até vacas, passeando livres, surgindo por entre as casas e invadindo quintais alheios. Mas, apesar da atmosfera campestre, a situação financeira das pessoas qu
A mão esquerda do pianista subia e descia em um movimento preciso, como um metrônomo, extraindo do instrumento um constante “tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá tuuu-dá”, enquanto a mão direita passeava pelas teclas mais agudas, que recebiam beijos rápidos das pontas dos dedos do artista.As mesas do Juanito Três Dedos estavam todas ocupadas, mas mesmo assim, mais pessoas empurravam a porta bangue bangue, encontrando um lugar para se acomodar, fosse apoiando um braço no balcão ou recostando em uma pilastra. A luz clara do final da tarde fora substituída pela luz amarelada dos candelabros, tornando o ambiente soturno, apesar da música animada.Pierre ocupava o mesmo banco, sem interagir com ninguém, fazia uma hora, com se aguardasse a chegada de alguém, tamborilando com os dedos contra o balcão, em movimentos compulsivos. Observava atentamente cada indiví
A moto Coby Welsh seguiu, em alta velocidade, para fora de Baracoa, deixando para trás o subúrbio e encontrando o horizonte sem fim, das terras devastadas pela seca. Christopher acelerava, em direção ao nada, permitindo que o vento modelasse seu cabelo crespo, enquanto tentava organizar os pensamentos.O assistente de xerife respeitava Munir, mas não poderia dizer que gostava do homem. Não sem mentir. Tentando usar o conhecimento que tinha sobre a forma de pensar do xerife, Christopher tentava justificar, de maneira racional, como permitir que ocorressem atrocidades, como a tortura daquela mulher, poderia ser algo que estivesse do lado da lei e da ordem. A areia castigava o lenço e as especulações se tornavam divagações.Pensava: “Como seguir a lei, por si só, pode ser uma coisa boa, quando os legisladores não trabalham, necessariamente, em prol de um bem comum