1. Afonso

Cansado, o operário removeu o capacete de escafandrista, assim que foi puxado de volta à superfície por um colega de trabalho, exibindo um rosto redondo e benevolente, com a pele lisa de quem se barbeia todos os dias pela manhã. Seu nariz não passava de um pequeno detalhe no centro do rosto e a boca uma linha discreta, sem lábios, entretanto os olhos eram grandes e azuis. Devido ao esforço, seu cabelo loiro estava colado na testa e as bochechas vermelhas.

Romeu, o colega perguntou:

- E aí? Qual a situação?

Afonso coçou os cabelos louros, pensando no trabalho que teria ao preencher o relatório daquela missão submarina.

- O equipamento tá desgastado, nada fora do normal, vai aguentar, sem problemas, até a próxima manutenção. O maior problema é que o nível do mar está baixando mais rápido que o esperado. Se essa fonte continuar secando nesse ritmo, em um ano ou dois a gente não vai mais ter onde trabalhar.

Coçando a barba, o colega andou de um lado para o outro, enquanto dizia:

- Eu avisei que isso ia acontecer, as máquinas oxigênicas tão todas trabalhando em potência máxima... O que a WaterTec quer? Criar uma atmosfera respirável em outro planeta, às custas do nosso?

O homem bonachão riu:

- Então vamos juntando dinheiro pra mudar pra lá!

A sirene tocou, indicando que faltava quinze minutos para o término do turno. Com um aceno de mão, Romeu se despediu, falando, enquanto se afastava:

- Não se esqueça de deixar o relatório na minha mesa, antes de sair.

Afonso suspirou, enquanto retirava o traje de mergulho. Pensando na sua esposa, de sorriso fácil, longos cabelos ruivos e corpo farto e curvilíneo, falou para si mesmo:

- Pelo menos, logo estarei em casa, nos braços da Yas, sem precisar me preocupar com nada dessa porcaria.

Logo que a moto flutuante, modelo Donkey Pride, dobrou a esquina e Afonso chegou à rua de sua casa, percebeu que algo estava errado.

Estacionada em frente à residência do homem de rosto bonachão, estava uma diligência flutuante, de cor preta. Veículo usado exclusivamente pelos oficiais da República.

Apreensivo, Afonso reduziu a velocidade, parando a Donkey Pride do outro lado da rua. A porta de sua casa estava aberta e dois homens, um parado ao lado esquerdo da porta e outro ao lado direito, o encaravam. Vestiam-se de forma pouco convencional em Yurok, com sapatos, ternos pretos, camisas brancas e gravatas. Oficiais da República, do pior tipo. Eram inquisidores.

Sem saber o que fazer, o homem bonachão olhou para a Donkey Pride, cogitando se deveria, simplesmente, fugir. Mas Yasmin estava lá e ele não poderia abandoná-la. Nada daquilo fazia sentido, ele tinha todas as suas obrigações com o governo em dia, não participava de nenhuma reunião ilícita e nem mesmo conhecia nenhum rebelde. Será que seu relatório sobre a escassez de água tinha incomodado alguém do alto escalão? Se fosse isso, ele poderia fugir e Yas estaria segura.

Lendo sua linguagem corporal e percebendo as intenções de Afonso, um dos inquisidores sacou a pistola enquanto o outro gesticulava para que ele se aproximasse. Afonso obedeceu.

- Afonso Castañeda?

- Sim...

- Faça o favor, nos acompanhe.

O homem bonachão acreditou que seria levado para dentro da diligência, mas um dos inquisidores virou as costas e entrou na residência, enquanto o outro aguardava a passagem de Afonso, para seguir, logo atrás.

No centro da sala, Yasmin estava sentada em uma poltrona. ‘A poltrona centenária que meu avô ganhou em um jogo de cartas’, pensou, incongruentemente, Afonso. Seu cérebro tentava evitar processar a cena que se desdobrava em sua frente. Havia um líquido vermelho espalhado pelo chão, além de dois objetos cilíndricos, grossos demais para serem cigarros, mas finos demais para que fossem charutos. Em uma das pontas de cada objeto havia uma espécie de lâmina vermelha.

As pernas de Afonso fraquejaram e, instantaneamente, um dos inquisidores o amparou pelo braço.

Yasmin estava de cabeça baixa, os longos cabelos escondendo a parte frontal de seu corpo, coberto pelo costumeiro vestido amarelo e sem muitos ornamentos que sua esposa usava para ficar em casa. Atrás dela, uma mulher, com a mesma roupa dos outros inquisidores, mas sem o terno, com uma mão arregaçava as mangas da camisa, que por algum motivo estavam pintadas de vermelho e com a outra segurava um alicate.

A mulher juntou os cabelos de Yasmin e puxou, com violência, sua cabeça para trás, enquanto dizia:

- Você tem mais alguma coisa pra nos contar?

Yasmin abriu os olhos, assustados, enquanto dizia, entre engasgos:

- Não, por favor, não. Eu disse tudo.

Afonso deu um passo à frente, com a intenção de acudir a esposa, mas recebeu um chute na parte detrás do joelho, que fez com que seu corpo cedesse. Um dos inquisidores o segurou pelos cabelos, forçando-o a encarar a esposa. Na queda, sua mão pousou sobre um dos cilindros, que Afonso segurou, involuntariamente.

Arrancando um dente de Yasmin, habilidosamente, a mulher perguntou:

- Tem algo que você queira contar para seu marido?

A tortura não tinha sido o suficiente para fazer Yasmin chorar, mas nesse momento, enquanto encarava o marido, as lágrimas começaram escorrer por seu rosto. Engasgando com o próprio sangue, ela disse:

- Desculpa, meu amor. Eu faço parte da rebelião. Eu não queria esconder de você, mas eu não podia te colocar em perigo.

Afonso fechou os olhos, dizendo repetidas vezes:

- Não. Não. Não. Não. – Como se um milagre pudesse acontecer e, ao abrir os olhos, ele fosse capaz de ter chegado em casa, em um dia comum, e ter sido recebido com o cheiro do milho cozido e o sorriso estonteante de Yasmin.

Mas ouviu a voz de um dos homens atrás de si, dizer:

- Acho que terminamos por aqui.

Afonso abriu os olhos, na esperança de ver os inquisidores irem embora, mas o que viu foi a mulher sacar uma pistola laser e disparar contra a nuca de sua esposa, antes de dizer:

- Vamos.

E ao passar por ele:

- Eu gostaria de dizer que sinto muito por isso, mas sua obrigação como cidadão era ter percebido que morava com uma inimiga.

Logo em seguida, escutou a porta bater atrás de si.

Sentindo-se anestesiado, como se nada daquilo pudesse ser real, Afonso olhou curioso para o objeto que segurava em sua mão.

Horrorizado, percebeu que era um dos dedos de Yasmin. O homem bonachão desmaiou sobre o sangue da esposa morta.

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