“Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei.”
(Michelangelo)
OLIVER
Nunca estive tão perto do céu como agora, como um imenso tapete azul acinzentado diante de mim, me convidando...
Faz um frio em Paris nesse fim de madrugada, quase tão intenso quanto o frio daquela noite. Os flashes de memória me doem os ossos mais do que o vento invernal. Balanço os pés e o ar se agita ao meu redor, fazendo um arrepio subir por meus braços. A mureta estreita embaixo de mim parece tremer com o meu movimento e seguro-me com mais cuidado, ainda hesitante em cumprir meu objetivo.
Fito o Sena correndo sob mim, a correnteza forte arrastando qualquer coisa que apareça em seu caminho. Qualquer coisa que caísse daqui de cima nessas águas turbulentas certamente seria engolida e sugada para o fundo, tragada para a inexistência. Encho os pulmões de ar gelado e depois solto, me munindo de uma falsa coragem.
A névoa da manhã paira sobre a Pont des Artes e é difícil ver muito além da margem, mas o suntuoso Louvre desponta entre a grossa neblina. Imediatamente meu pensamento vai para a garota brasileira que acaba de chegar em Paris para seguir um sonho: estudar artes. Melissa. Seu rosto ruborizado surge na minha frente. A face de um anjo esculpida em minha mente.
Tão delicada e frágil, mas como as aparências enganam... Nunca imaginaria que alguém de feições tão doces poderia carregar tamanho sofrimento na bagagem. O ex-namorado caçando-a e ela como uma loba protegendo sua cria, infelizmente veio cair justo no ninho do urubu. Ela precisa se livrar do Andrew, precisa seguir o meu conselho. Não confiei nem um pouco na sua promessa, ela pareceu bastante satisfeita com a apoio daquele mau-caráter. Afinal, ela tem um segredo e ele tem poder para “protegê-la”. Não queria que ela descobrisse o verdadeiro Andrew embaixo daquela pele de cordeiro, espero que ele não use o segredo contra ela. A moça já passou por tanta coisa, ela merecia encontrar segurança aqui...
Suas palavras ficam ecoando na minha cabeça desde que saí correndo da república: “vai ficar tudo bem, eu sei que vai”. A boca rosada curvada em um sorriso cativante. Tão plácida e tranquila. Como ela tem certeza de que vai ficar tudo bem? Ela está grávida e sozinha em um país desconhecido, fugindo de um ex-namorado psicopata e entre as garras do Andrew Lambert! Ela não tem nenhum controle da situação, como pode estar tão convencida de que tudo vai acabar bem?
E ainda se mostrou preocupada comigo... Será que não dá conta dos próprios problemas? Por que se incomodar em me fazer sentir melhor quando o mundo parece desmoronar em sua cabeça? E mesmo assim a expressão de compaixão não deixou nem por um minuto o seu belo rosto. O rosto que permeia os corredores tortuosos da minha consciência.
Não! Estou divagando. Ela está me desviando do meu objetivo. Levanto-me e fico de pé sobre a mureta da ponte, focando no ponto mais longe do horizonte que é possível enxergar pela neblina. De repente, um helicóptero rasga o céu e joga luzes sobre mim, me assustando e fazendo escorregar...
Por muito pouco consigo segurar na mureta repleta de cadeados multicoloridos. Como se os percebesse pela primeira vez, passo a mão solta por eles – alguns com nomes ou corações gravados – e penso que cada um deles carrega uma história de amor. Como será que deve ser sentir que alguém te completa? Será que dá a vida algum sentido? Afinal, existe algum sentido em viver?
Não essa vida que se apresenta para mim. Não sem Charlie. Não há vida possível com um pedaço me faltando.
Como um pêndulo agarrado a ponte, começo a sentir o punho esquerdo arder. Ele não vai suportar meu peso por muito tempo. É hora de deixar ir toda a dor e acabar com esse peso insuportável no meu peito de uma vez por todas. Respiro fundo mais uma vez e o ar queima minhas narinas.
Lágrimas brotam de meus olhos e o rosto do anjo novamente dança diante de mim. Será que um querubim tão belo quanto ela irá me receber no céu? Eu duvido.
RICKNunca pensei que fosse possível sentir a dor física de ter o coração arrancado do peito sem que ele realmente o fosse, mas eu estava enganado. Sinto como se uma garra de metal frio tivesse penetrado em meu peito, se fechado em volta do músculo pulsante e sangrento e puxado para fora, deixando as artérias mortas penderem do buraco negro e vazio que restou.A única coisa que permite meu sangue de continuar correndo por meu corpo, agora levando a mesma proporção de álcool e oxigênio para minhas células ressequidas, é a necessidade de tê-la de volta.Morrer seria menos doloroso, mas uma coisa ainda me faz respirar: a esperança, aquela que costuma ser a última a morrer, ainda está presente. Um fiozinho dela é o que me mantém vivo. Noite e dia, só o que faço é pensar em todas as formas po
MELISSASaio correndo do quarto e desço os dois andares aos pulos, de dois em dois degraus. Ao chegar no térreo estou arfando, me curvo e apoio as mãos nos joelhos buscando desesperadamente inflar meu pulmão de ar. Sinto uma mão em meu ombro, mas apenas levanto um dedo, pedindo que a pessoa espere um segundo enquanto eu tento recuperar o fôlego.Quando enfim consigo me erguer vejo que é um dos rapazes que me ajudou com as malas ontem, Mateo. Meu coração bate descompassado e seguro em seu braço, pedindo por sua ajuda. Eu preciso fazer alguma coisa ou então aquele homem irá se matar. Eu tenho que impedi-lo.- Você está bem? – Ele me pergunta e me guia até o sofá me segurando pelo cotovelo.- Eu sim, mas vai acontecer uma tragédia! Não, não, não, eu não posso me sentar, eu preciso de
MELISSAA entrada para a Beaux-Arts era imponente. Arcos em mármore e abóbadas espelhadas. Dentro era tudo ainda mais exuberante, em qualquer lugar que meus olhos pousassem havia um detalhe único que merecia total atenção. No centro, uma claridade vinda do céu banhava a recepção. O telhado neste ponto era de vitral colorido, dando a sensação de estar dentro de um arco-íris.Andrew fala com a recepcionista enquanto eu consigo apenas admirar tudo ao redor, encantada, em estado de êxtase. “Só pode ser um sonho”. Ele pega minha mão e tenho a sensação de estar flutuando. É quase como se eu tivesse morrido e um anjo estivesse me levando em um tour pelo céu.Os quadros, as esculturas, os afrescos, as colunas em pedras sobrepostas, os móveis em madeira talhada, tudo nesse lugar é fascinante. Para
MELISSABem, parece que finalmente tudo irá voltar ao normal. Pelo menos tão normal quanto pode ser... Sinto como se finalmente pudesse voltar a respirar, como se antes estivesse em uma espécie de coma, respirando com a ajuda de aparelhos. Em nenhum momento anterior da minha vida passei por tamanhas reviravoltas emocionais como nas últimas semanas. Mesmo com toda a obsessão e perseguição do Rick, levávamos uma vida morna, previsível, nada perto dessa loucura. Na verdade, toda a minha vida parece uma grande calmaria, como um mar de águas brandas, inabaláveis. E aí, de repente, estou me afogando em tsunamis.Tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Quando eu acho que finalmente estou segura e vou ter uma gestação tranquila, aparece esse louco suicida me fazendo desconfiar do meu tutor e plantando várias dúvidas na minha cabeça.
MELISSAPor um momento o meu mundo foge totalmente do eixo. O chão some sob meus pés. Ele precisa parar de me olhar desse jeito, me lançando essas ondas em fúria, fazendo eu me afogar. Tento lembrar como se respira e me apoio na pia atrás de mim. Ao perceber o meu mal-estar, ele se afasta e me observa a uma distância segura. Ele estuda o meu rosto cautelosamente, mas ansioso. Eu suspiro, tentando encontrar as palavras certas.- Oliver, sério, eu realmente não fiz nada demais. Eu só joguei em cima de você todo o meu drama pessoal, então meio que foi mais um desabafo mesmo, algo que eu precisava colocar para fora. Eu não vejo como isso pode ter sido de grande ajuda para você. Eu fui bem egoísta, na verdade. – Eu tento fazer com que ele tire essa coisa de “anjo da guarda” da cabeça. Eu não consigo entender por que ele e a
MELISSADesperto com um canto baixo e melodioso, um som divinamente puro, e sinto-me adentrando os portões do céu. Sento na cama e espreguiço-me calmamente, deixando cada músculo do meu corpo acordar no seu tempo.Olho para a janela aberta e me deparo com a origem daquele som. Passarinhos se alimentam de algumas migalhas de pão no peitoril e são banhados pelos tímidos raios de sol. Por um momento algo parece fora do lugar e, como se apenas agora percebesse o que há de estranho naquele cenário, esfrego os olhos não acreditando em minha própria visão.Oliver está sentado exatamente no mesmo lugar onde me encontrou pela primeira vez, ontem de manhã, no banco junto à janela. Ele estende as mãos repletas de migalhas e vejo que sorri. Vê-lo assim descontraído também me faz sorrir, mas logo sou surpreendida por su
RICKDuas noites nesse lugar e eu já quero me matar por ter cantado aquela enfermeira filha da puta. Ela parecia tão inofensiva, com problemas demais na cabeça para se lembrar de mim. Como eu me odeio por ter deixado esse pequeno fio desencapado. Explodiu a porra toda!Eu finalmente tinha alguma esperança de encontrá-la. Eu chegaria lá em Paris e compraria um belo buquê de rosas, sairia à procura de Melissa por toda aquela maldita cidade se fosse preciso, cada beco, cada viela, mas eu a acharia. E aí eu a surpreenderia. Eu sei que ela está sentindo a minha falta tanto quanto eu sinto a dela. Ela jogaria seus braços em volta do meu pescoço e eu sentiria o perfume dos seus cabelos. Meu Deus, como eu preciso desse perfume e do seu corpo sob o meu toque.
DOIS MESES DEPOISMELISSACada vez que caminho por esses corredores enormes e amplos tenho uma surpresa deliciosa. Acho que nem estudando aqui por dez anos eu seria capaz de ver todos os detalhes desse lugar. Paro em frente a uma parede acinzentada com texturas e pinturas rupestres do chão até o teto, fazendo uma curva acima da minha cabeça. Coloco as mãos na parede e sinto as suas ranhuras e imperfeições, como se realmente fossem pedra gasta pelo tempo. Os desenhos são como aqueles que vemos nos nossos livros de história nos primeiros anos de colégio, geralmente acompanhando uma explicação sobre o surgimento dos primeiros seres humanos na Terra.É fascinante como tal obra foi reproduzida com tamanha perfeição. A sensaç&a