Capítulo 1

RICK

Nunca pensei que fosse possível sentir a dor física de ter o coração arrancado do peito sem que ele realmente o fosse, mas eu estava enganado. Sinto como se uma garra de metal frio tivesse penetrado em meu peito, se fechado em volta do músculo pulsante e sangrento e puxado para fora, deixando as artérias mortas penderem do buraco negro e vazio que restou.

A única coisa que permite meu sangue de continuar correndo por meu corpo, agora levando a mesma proporção de álcool e oxigênio para minhas células ressequidas, é a necessidade de tê-la de volta.

Morrer seria menos doloroso, mas uma coisa ainda me faz respirar: a esperança, aquela que costuma ser a última a morrer, ainda está presente. Um fiozinho dela é o que me mantém vivo. Noite e dia, só o que faço é pensar em todas as formas possíveis e impossíveis de conseguir minha Mel de volta. Ah, e beber. Sem beber não há como pensar sem que minha mente se afogue na dor. A bebida é anestésica.

Uma faixa de luz inunda o quarto, antes imerso em escuridão, e minha cabeça lateja. Sinto os olhos queimarem e cubro-os com o braço. Ouço passos e logo percebo o peso de alguém afundar o colchão na ponta da cama.

- Mãe, já disse para me deixar em paz.

- Acho que sua mãe entendeu o recado.

Surpreendo-me ao ouvir a voz de Amanda e me sento. Ela se levanta e circula a cama, sentando-se bem ao meu lado e pegando minhas mãos. Eu apenas fico olhando para ela, tentando focalizar seu rosto, que é um grande borrão em minha frente.

- O que você tem, Rick? Qual é o problema?

- Não começa, Amanda. Você sabe exatamente qual é o problema.

- Ela foi embora. Ok, isso não é o fim do mundo.

- É sim, é o fim do meu mundo. Você não entende. Ninguém entende porra nenhuma!

Levanto e volto a marchar pelo quarto. De um lado para o outro, respirando do jeito que ela me ensinou. É sempre assim, as pessoas acham que sabem de tudo e querem me dar lição de moral. Querem que eu supere. Não há nada para ser superado, eu preciso dela e ponto final.

- O que você faz aqui, Amanda?

- O prédio inteiro está comentando a barulheira que estava aqui em cima, antes de você cair no sono, suponho. Sua mãe está na sala tendo uma crise de nervos. Seu pai desistiu de tentar acalmá-la e saiu de casa batendo a porta. Eu estava até agora tentando fazê-la se controlar. Ela me contou que você disse coisas horríveis a ela, que a culpou de todo esse seu sofrimento. Você sabe que nada disso é culpa dela, a única culpada é essa sua loucura de querer quem não te quer.

- Não estou afim de ouvir esse discurso, Amanda. Você não entende nada.

- Rick, você precisa controlar seus impulsos. Está fazendo sua família sofrer. – Ela se levanta e acende a luz. – Olha em volta o que você fez. Têm copos quebrados, garrafas de bebida espalhadas, porta-retratos estilhaçados, o tapete manchado... Você precisa dar um jeito na sua vida.

- Minha família? Desde quando eu tenho família? Essas pessoas não estão nem aí para o que eu realmente sinto. Eles só querem manter a fachada de família feliz de comercial de margarina, nada mais. A minha vida inteira meus sentimento e opiniões foram ignorados dentro dessa casa. A Mel é a única que me entende. E quem é você para me dizer o que fazer? Eu não preciso disso. Não preciso que ninguém venha até aqui jogar na minha cara tudo o que tenho feito de errado. Eu já não estou pagando pelos meus erros?

- Rick, me desculpe, mas todos nós só queremos o seu bem. A Melissa também queria isso, que você se tratasse e que seguisse em frente!

O simples fato de ela tocar no nome de Melissa fez meu sangue ferver e eu a seguro por um dos braços com força.

- Não fala dela como se a conhecesse. Só eu a conheço verdadeiramente. Eu sei que ela está desorientada agora, confusa. Mas ela vai cair em si a qualquer momento e eu vou recebê-la de braços abertos. Porque eu nunca vou desistir dela. Não há essa possibilidade. 

- Rick, pelo amor de Deus, cai na real. ELA NÃO VAI VOLTAR PARA VOCÊ!

Antes que eu pudesse machucá-la de verdade, meu celular vibra no bolso e atendo rapidamente, ansioso por notícias dela.

- Conseguiu, Daniel?

- Oi, Rick. Boa noite. Eu vou bem, obrigado. E você?

- Péssimo e você sabe disso. Vamos, me diz se tem informações da Mel.

- Desculpa, cara. Não tenho muitas novidades. A única coisa que consegui descobrir foi que ela embarcou em um avião no Aeroporto Internacional Tom Jobim com destino a São Paulo, mas ela não ficou por lá. O voo dela estava ligado a uma conexão. A bagagem dela foi transferida para um avião da Air France. Mas depois disso, não posso rastrear a cidade do destino final.

- Air France? Ela saiu mesmo do país então, como eu suspeitava. Eu preciso de mais detalhes, Daniel. Você tem que saber de mais alguma coisa.

- Mano, eu sou piloto, não Agente Secreto. Além disso, conseguir essas informações já me custou muito caro. Perdi minha única folga da semana levando a atendente da companhia aérea para jantar e depois ainda morri numa grana para levá-la ao Motel mais caro da cidade. E não, meu amigo, não valeu a pena.

- Eu pago quanto você quiser. Por favor, me ajuda. Eu não posso pegar um avião e varrer a França atrás dela. Eu preciso de um destino um pouco mais certo, entendeu?

- Acho que essa deveria ser a parte mais fácil para você. Ela não vivia falando do tal curso que queria fazer lá? Você não lembra o lugar?

- É claro que não, se eu soubesse, acha mesmo que ainda estaria aqui aguardando suas informações inúteis? Além do mais, minha mente bloqueava toda vez que ela começava a falar dessa droga do intercâmbio.

- Cara, se eu fosse você, desistia logo dessa garota. Eu entrei no sistema de segurança do aeroporto para ver o momento do embarque e ela não estava sozinha.

- Como assim? Quem estava com ela? – O sangue foge compeltamente do meu rosto.

- Um cara alto e bem arrumado. Ele parecia gringo. Andava ao lado dela como um guarda e ela parecia confiar nele. Mais do que confia em você, pelo visto.

 - Um homem?! Como assim? Ele embarcou com ela?

- Aí eu já não sei. Sem a identificação dele não é possível saber se ele estava no voo.

A quentura sobe pela minha espinha até tomar conta da minha cabeça. Parece que vou explodir em um milhão de pedaços. Sinto caírem aos meus pés os fragmentos do celular que amassei contra a parede. Estilhaços da tela cortam a palma da minha mão, mas é uma dor boa. Observo o sangue escorrendo e me distraio por alguns minutos da dor pungente que dilacerou meu peito.

 - Rick, olha isso, você está sangrando!

- Jura? Não tinha percebido. – Eu respondo sarcástico.

- Me deixa cuidar disso.

Amanda me guia até a cama e me faz sentar. Sai do quarto e me deixa lá, contemplando a pequena poça escura secando na palma de minha mão, e sei que, ao contrário do meu coração, essa ferida logo irá cicatrizar. Alcanço uma garrafa de Uísque ao lado da cama e viro na garganta seca. Depois jogo um pouco na mão machucada, deixando o álcool arder sobre a pele.

Ela volta munida da maleta de primeiros socorros e ajoelha-se na minha frente. Eu a ignoro e continuo a beber enquanto ela começa a trabalhar no machucado, primeiro limpando e depois atando um curativo em minha mão.

Ela não pode ter me deixado dessa maneira, nem fugido com outro! Não, isso é uma difamação. Minha Mel não faria isso. Ainda mais esperando um filho nosso. Nosso? Será que essa criança é minha mesmo? Claro que é, como eu posso duvidar dela, afinal, a culpa foi toda minha. Mas que ela foi embora é verdade. E que alguém a acompanhou também. Como ela permitiu que outro homem a acompanhasse?

O álcool agora queima descendo por minha garganta. Minha vista embaralha. Amanda termina o curativo e sai do quarto, acho que foi embora. Até que enfim! Enquanto eu tentava coordenar meus pensamentos, ela não parava de tagarelar. Já não tinha forças nem para mandá-la se calar, estava quase perdendo a cabeça.

Termino a garrafa e caio de costas na cama, deixando o redemoinho de dor, medo e raiva se apoderar do meu corpo e da minha mente. A falta que ela me faz é tão pungente que posso jurar que sinto sua presença.

Sua mão quente de repente cobre meu pulso e seu perfume doce me envolve. Abro os olhos, instantaneamente sobressaltado, e minha suspeita de confirma. É ela, minha bela, minha Mel. Oh meu Deus, ela voltou! Como eu disse e sabia que voltaria. Ela olha intensamente nos meus olhos, como se pedisse desculpas.

- Ah, meu amor. Eu sabia que você voltaria pra mim.

Ela abre a boca, e eu a cubro com a minha e a aperto contra o meu peito que se enche de calor. Ela me abraça de volta com carinho, mas se afasta lentamente. Ela se levanta, mas não deixa meu olhar nem por um segundo. Tira os sapatos e toda sua roupa e se deita novamente ao meu lado, seu corpo quente e convidativo. Nem sei se acredito em meus próprios olhos. Mas a saudade é tamanha que não posso aguardar nem mais um minuto para cobrir seu corpo com o meu.

- Rick...

- Não, meu amor, não precisa dizer nada. Apenas fica comigo agora e o resto das nossas vidas.

                                                                     ...

Minha cabeça dói tanto que não consigo organizar nem meus próprios pensamentos. A ressaca diária me tinge. Abrir os olhos é um esforço enorme que não estou disposto a enfrentar ainda. Por sorte o quarto continua escuro, graças ao santo blackout. A consciência volta aos poucos, sinal de que estou sóbrio novamente. O quarto cheira a álcool e calculo todos os obstáculos que preciso vencer para chegar ao banheiro.

Seus braços se enlaçam em minha cintura e sua boca desfila beijos por meu peito. Um sorriso me toma e lembro-me vagamente da noite passada. O rosto de Melissa aparece vívido em minha mente e sei que ela voltou por mim. Sua boca agora passeia pelo meu pescoço, mas sua proximidade me dá uma sensação estranha.

Não é o perfume que eu esperava, e os cabelos volumosos e cacheados que sinto caírem sobre mim não são os dela. Isso me faz tentar abrir os olhos com mais afinco. Eu a fasto um pouco, mas ela resiste. Ela começa a me sufocar em seu abraço e isso me incomoda.

Consigo me soltar, com algum esforço, e me levanto cambaleante. Sinto todo o sangue se esvair do meu corpo ao ver que é Amanda quem está deitada em minha cama, completamente nua.

- Ai, meu Deus, o que foi que eu fiz? – Eu levo as mãos à cabeça e olho para ela descrente.

- Rick, volte para a cama. Ainda é cedo.

- O que você está fazendo na minha cama, Amanda?

- Eu acho que você sabe muito bem...

- Vista-se e saia daqui, agora.

- Não, Rick. Vamos conversar.

- Conversar? Você ficou louca?! Nós não temos nada para conversar. Você acha que eu quero qualquer coisa com você? Amanda, ou você me enganou ou se deixou enganar. Eu deixei bem claro para você desde sempre que só existe a Melissa na minha vida e eu provavelmente estava bêbado demais para discernir até quem era eu mesmo ontem à noite. Se você tivesse um pingo de amor próprio, teria ido embora e não me deixado dormir com você achando que era a Melissa.

- Não fala assim, Rick. Eu sei que devia ter deixado você aqui, mas não consegui. Você precisava demais de carinho e quando me abraçou daquele jeito eu não resisti. Eu não quis me passar por ela, mas você precisava de mim.

- Eu não acredito que eu fiz isso. Eu não podia. Você não podia. A Mel é a única, eu nunca a traí e agora isso! A culpa é toda sua. Isso é totalmente inaceitável. Eu a amo demais para ter deixado isso acontecer.

- Ei, nada disso, você não fez nada de errado! Ela quem foi embora, lembra? Ela te abandonou para viver a própria vida sem se importar se você ficaria bem ou não. Vamos, Rick, está na hora de seguir em frente.

- Não, não, não, não. Eu não posso acreditar. Eu não podia ter feito isso com ela. Não, não, não.

Amanda se levanta e anda até mim, tentando me abraçar. Eu a empurro com força e ela cai de costas na cama.

- Não faz isso, Rick. Me deixa te ajudar. Me deixa cuidar de você.

- Sai daqui, sua vagabunda. Você só conseguiu piorar tudo!

Eu a deixo chorando na cama e entro no banheiro, me enfiando sob a água gelada do chuveiro, esperando lavar todo o ódio e a decepção que tomam conta de mim. Como ela pôde tentar tomar o lugar de Melissa em minha cama? E se deitar sobre os lençóis que ainda guardavam o perfume dela?

Nunca vou me perdoar por tê-la traído, mesmo que ela nunca venha a saber. Me esfrego incessantemente com a esponja vegetal, sentindo-me sujo por ter estado com outra que não a minha Mel. Eu fui fraco. As lágrimas correm junto da água pelo ralo, junto da lembrança do corpo macio ao qual pertenço, lavando a imundície desse corpo estranho que fui capaz de apreciar por cegueira. Ah, meu amor, se você soubesse o quanto estou quebrado sem você...

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