Acordo na manhã seguinte com a cabeça latejando. Olho para o vidro âmbar vazio à minha frente e decido que não beberei por um bom tempo. Abgail acorda a plenos pulmões, e sei bem do que se trata. Embora eu tenha contratado a senhora Prado para cuidar de Abby, nesses últimos meses decidi eu mesmo cuidar dela.
Olho-me no espelho e percebo que também preciso de cuidados urgentemente. Ouço batidas, dou permissão e vejo o meu mordomo ali parado a me olhar.
— Senhor Stefan, quer que mande os criados preparem seu banho? — Ele diz, me olhando com tristeza.
— Por favor, Freitas. Obrigado. — Ele dá a ordem e retorna.
— Senhor Stefan, perdoe-me a intromissão, mas lhe conheço antes de ser um mancebo. Sei que a senhora Stefan está a fazer falta, mas o senhor precisa ter forças para se levantar e cuidar de si. A criança Abgail e a senhorita Elizabeth necessitam do senhor.
— Eu juro que estou tentando, mas, cá entre nós, estou falhando miseravelmente.
— Então creio que o senhor necessita se esforçar mais. A propriedade precisa de administração, e o senhor está igual ao seu finado pai quando perdemos sua mãe.
— Obrigado, Freitas. Darei um jeito nessa situação.
Ele sorriu para mim antes de se retirar, e eu voltei ao berçário para velar o sono de minha filha. Eu sei que meu mordomo está certo e não sei quando me tornei esse maldito covarde. Após tomar meu banho e deixar Abgail aos cuidados de Elizabeth, resolvi dar uma caminhada pela propriedade e ver os reparos que necessitam ser feitos. Vejo que há muito a ser feito nesses quase três meses de luto; ele me deixou relapso a respeito da criadagem e da propriedade.
Ando um pouco mais e avisto o jardim de Isabella, e logo a saudade invade meus sentidos. Decido ir até lá, sento-me em seu lugar favorito e começo a pensar em tudo o que vivemos e na luta que enfrentamos para nos casarmos. Abri mão de meu título de nobreza e tomei Isabella por minha esposa na Europa, já que por esses lados os habitantes ainda são atrasados. Na época o nosso casamento foi considerado um escândalo para a sociedade, e fomos rechaçados de formas inimagináveis.
Com o tempo, Isabella conquistou uma boa parte da população por seu altruísmo e bom coração. Sentia-me tão orgulhoso de ver minha amada defendendo seu povo, seus direitos igualitários… Agora o que resta-me é apenas saudade. Estava tão absorto em meus pensamentos que não vi quando uma velha senhora sentou-se ao meu lado.
— Olá, meu bom rapaz. — Ela sorri para mim.
— Olá, velha senhora! De onde veio? Estás perdida?
— Não estou perdida. Mas e você, meu jovem? Está?
— Em demasia. — Digo olhando para o nada.
— É por isso que estou aqui. E se eu disser que há uma chance de você reencontrar sua amada?
— Como assim, velha senhora? Por obséquio, diga-me.
— Digamos que para encontrá-la você terá que fazer uma longa viagem sozinho.
Uma centelha de esperança acendeu dentro de mim.
— E quando seria essa viagem?
— Se aceitar, você a fará hoje mesmo. Vá para casa, dê as ordens necessárias e retorne a este belo jardim. Antes que vá, escute com atenção: não conte a ninguém o que realmente irá fazer, diga apenas que surgiu uma viagem de última hora e, antes que fique preocupado, a pequena Abby e sua irmã ficarão bem. Assim que você retornar, te darei as devidas instruções. Por favor, não demore.
Voltei para casa aos tropeços. Chego em minha sala e vejo minha irmã brincando com minha filha.
— Ah, que bom que chegou, meu caro irmão. — Ela sorri.
— Minha irmã, preciso lhe falar. Aconteceu um imprevisto, e necessitarei partir em uma viagem.
— E quando vais? — Ela pergunta curiosa.
— Hoje mesmo! Demorarei um pouco para voltar, então, por favor, Elizabeth, tome conta de Abgail.
— Sim, meu irmão. Tomarei conta dela até que retorne.
— Muito obrigado, minha querida irmã. — Vou ao quarto e arrumo uma pequena mala de mão. Chego à sala e pego minha pequena no colo, acaricio seus cabelos e falo bem baixinho em seu ouvido.
— Meu amorzinho, fique aqui com sua tia, que o papai vai reencontrar a sua mamãe. — Ela abriu um sorriso para mim, e sei que ela entendeu cada palavra. Dou um beijo em minha irmã e vou rumo ao jardim de Isabella encontrar a velha senhora. Assim que chego, a senhora me olha e sorri.
— Chegou rapidamente! Sei que está ansioso para reencontrar a sua esposa, porém preciso adverti-lo. No lugar onde sua esposa está ela não o conhece, não sabe da história linda de amor de vocês dois, nem se lembra de Abgail.
Fiz menção de falar, mas ela me silenciou.
— Calma, meu rapaz, ainda não acabei com você. Neste lugar sua amada sofreu severamente, e ela perdeu o prazer de viver. Sua missão será fazê-la se apaixonar por você novamente.
— E, se isso acontecer, ela retorna novamente?
— Quando isso acontecer, eu retornarei e conversarei com vocês. Na sua viagem você deve levar o relicário. Essa será a única prova de que não está louco. Você terá seis meses para fazer com que Isabella o ame novamente.
— E se ela não me amar?
— Eu tenho certeza que você fará com que ela se apaixone por você novamente, porém, se não conseguir, você retornará para casa e viverá sem sua amada.
— Eu farei com que ela se apaixone por mim novamente. Não posso viver sem ela.
— Agora sei que você está pronto para sua jornada. Tenha uma boa sorte, Ricardo.
Abro meus olhos e preciso apertá-los mais uma vez para ter certeza que não estava sonhando. Continuo deitado no banco da praça, pensando em como vou encontrar Isabella nesse lugar.
— Oh, vagabundo! Levanta daí! Aqui não é lugar pra mendigos.
— Pois não, cavalheiros. Há algo errado? — Digo-lhes, já me sentando.
— Levanta logo, vagabundo.
— Isso não é linguajar apropriado para os guardas do rei.
Um dos guardas me pega pelo braço obrigando-me a ficar em pé.
— Guardas do rei? Circulando, maluco!
— Cavalheiros, exijo respeito. — Digo ajeitando as minhas roupas.
— Você não tem direito de exigir nada.
Eles começam a me agarrar e, por Deus, como esses guardas não tem modos! Tento me desvencilhar de seus braços até que a vejo sentada em um banco. Ela estava com algum exemplar em mãos e parecia estar... chorando. Nossos olhares se cruzaram por um breve momento, e pude sentir sua dor, que se misturava à minha própria dor. Consegui me soltar dos guardas e corri em sua direção. Bendito seja Deus! Eu a encontrei! Eu a olhava com ternura e admiração; ela estava exatamente como me lembrava. Ela me faz algumas perguntas, e as respondo. Isabela pergunta como sei seu nome, e digo-lhe quem ela é para mim.
Por Isabella Melo Começo a gargalhar. Como pode o cara achar que é meu marido? Será que ele fugiu de algum hospício? — Olha, moço, eu não sou sua esposa. — Digo abafando a risada. — Jamais me enganaria. Conheço você mais do que a mim mesmo. Se você deixar, eu te explicarei. — Ele me olha com expectativa. Dou uma bufada e o olho, e assim que nossos olhos se encontram, me sinto atraída. — Como você se chama? — Pergunto, não conseguindo quebrar o contato visual. — Ricardo Stefan. — Ele diz e beija as costas da minha mão. Por que sinto o meu corpo se agitar? Nem sei de onde esse cara surgiu, mas já conseguiu mexer comigo. Sinto a mesma coisa que senti com Cadu. Meu juízo está deturpado mesmo. Os policiais se aproximam com cara de poucos amigos. — Moça, conhece esse meliante? — Um deles perguntou. — Sim, senhor. Ele é meu amigo, porém bebeu um pouco além da conta noite passada. — Nem sei porque respondi isso. Agora me sinto meio que responsável por ele.
Também saio, travo o carro e empurro a porta da lanchonete, mas antes que entremos, ele me dá o braço, como os cavalheiros antigamente, e acabo aceitando. Já dentro do BK, Ricardo ficou assustado com as mesas e cadeiras de plástico duras. E quando ele viu as luzes então? Ficou completamente doido querendo que eu explicasse como funciona a tecnologia, e lá fui eu tentar lembrar dos meus tempos de física para explicar para ele. Vou fazer o pedido dos lanches enquanto o deixo sentado e assustado. Nossa, ele deve ter batido a cabeça feio. Peço os lanches e, assim que eles são anotados, volto para a minha mesa. Olho para Ricardo, e ele continua assustado. — Então, me fale de você? — Ele me encara por uns instantes e começa. — Eu sou Ricardo Stefan. Acabo de completar 30 anos. — Vou fazer 30 anos logo, logo. Me fala uma coisa, onde está a sua família? — Antes que ele possa me responder, os nossos lanches chegam, e ele fica espantado olhando para os embrulhos e para o
Ele fala com tanta admiração de sua esposa, e acabo compreendendo o motivo que o fez ficar louco e meio que me identifiquei com, pois depois que Cadu me deixou eu também beirei a loucura. Perder a pessoa que se ama não é fácil, e talvez ele não tenha pessoas que o ajudem a passar pelo momento de luto. Nesse momento sinto imensa compaixão por ele. Começo a perguntar sobre sua esposa, e ele me conta que ela lutava por direitos feministas. — Ela não lutava só pelo direito feminino, mas também pela liberdade de sua raça. — Raça? — Agora ele me deixou confusa. — Sim. Ela era você, quer dizer, se parecia exatamente como você. — Olhei para minha pele, se ela era como eu, ela era… Virei bruscamente para ele, e o carro acabou dando um solavanco. O motorista de trás me xingou, pois quase bateu em meu carro. Retribuí o xingamento e coloquei a mão para fora, lhe mostrando o dedo do meio. Ricardo me olhou com repúdio, e antes que ele pudesse dizer algo idiota o lembrei dos direitos f
Por Ricardo Stefan Bem que a velha senhora avisou-me sobre a diferença desse século. Depois que Isabella mostrou-me sua residência e seus inventos, ela levou-me para meus aposentos, e pelo menos aqui é um território conhecido por mim. Reconheço a cama, a mesa de cabeceira e o guarda-roupas, porém sinto falta da banheira e do lugar onde se faz certas necessidades. Ela deve manter um quarto dentro de sua propriedade para tais. Isabella retorna com algumas vestimentas mais apropriadas para esse século e me entrega, vasculho as peças de roupas e como não vejo a peça que procuro, resolvo perguntar mesmo com a face afogueada. — Desculpe-me por aborrecê-la, mas gostaria de saber se você tem ceroulas. — Ela ri de mim, e franzo o cenho, pois não entendo o motivo do escárnio. Assim que ela vê meu desconforto, para de rir. — Não queria rir da sua cara, Rick, é que não existem mais ceroulas, elas foram substituídas pelas cuecas. — Ela tenta segurar o riso enquanto me entrega um pacote
Isabella Melo Pensei que seria complicado conviver com outra pessoa, mas na verdade até que tem sido bem divertido. Ricardo se mostrou alguém bem prestativo e amigável. Ele fez amizade com Márcio, Luíza e Bernardo, e até minha avó passou a gostar dele. Por falar nela, dona Hilda está bem melhor. Até os médicos se surpreenderam com sua melhora. Nesta semana Ricardo foi para o hospital e leu para ela todos os dias, e ainda tem me ajudado com a boutique, que aumentou a freguesia feminina depois de sua chegada. Fico incomodada com o tanto de mulher que baba em cima dele. Não é que eu esteja com ciúmes, afinal, nos tornamos amigos. Ele fala tanto de sua família que tenho vontade de conhecer Abby e Elizabeth. Quanto mais ele fala de sua pequenina, mais eu tenho vontade de conhecê-la. Ricardo me contou o que sua irmã passou nas mãos de um idiota. Gostaria que ela pudesse viver aqui, onde as pessoas não se importam se você é virgem ou não. Todas as suas histórias parecem interessa
— Bom dia, cavalheiro! Creio que ainda não fomos apresentados. — Seu rosto está fechado, e isso me diverte. — Rick, esse é o Lucas, um cliente antigo, e, Lucas, esse é Ricardo, um amigo que está hospedado na minha casa. — O apresento, ainda de bom humor. — Ah, você é o cara que está com amnésia. Muito prazer, Rick, estava convidando sua amiga para dar uma ida ao cinema. Que tal você ajudar o amigão? Lucas estica a mão, vejo Rick apertar com força desnecessária e reviro os olhos. — Ricardo para o senhor, já que não somos próximos, e creio que a dama terá que recusar, pois ela havia marcado um compromisso comigo. O semblante de Lucas cai, e eu fico estarrecida. É sério que estou vendo Ricardo com ciúmes? Não sei porquê, mas a vontade de rir é enorme. Porém me contenho assim que vejo a cara de poucos amigos de Ricardo e Lucas, deixo os dois de lado e atendo dona Fran, que é uma cliente assídua e muito bondosa. Assim que Ricardo a cumprimentou ganhou sua admiração, e
Ricardo Stefan Esses dias ao lado de Isabella tem sido maravilhosos. Aos poucos ela está se abrindo para mim, e já faço parte de sua rotina e da vida de seus amigos. Ando até estudando o dialeto deles para não fazer vergonha a ela, mesmo ela me dizendo que não precisa. Estou construindo uma relação de amizade com seus amigos. Bernardo é de quem mais me aproximei, ele é como um irmão para Bella e me aceitou de primeira, sem muitos questionamentos, ao contrário de Márcio, que não para de me indagar. Tenho certeza que ele nutre sentimentos amorosos pela minha amada. Pode ser um devaneio meu, porém seu olhar para ela é estranho. Ontem cometi uma gafe. Isabella acabou recebendo uma visita, e eu acabei sendo pego desnudo por uma de suas amigas. Pegou-me desprevenido, pois como somos apenas Bella e eu, acabo não trancando a porta. — Mil perdões, senhora. Acabei indo banhar-me e, como não sabia que tínhamos visitas, acabei não trancando a porta. — Não precisa se desculpar,
Isabella Melo Acabo de perder minha única parente viva. Não sei porque o universo escolheu a mim para catástrofes. Teria desmoronado de vez se não fossem meus amigos e Rick, que se tornou mais que especial em minha rotina. Sally, Bete e Stef, três amigas queridas, que chegaram no momento certo e estão tentando me animar de tudo que é forma. Lu, minha irmã de alma, Bê e Márcio, que também considero meus irmãos, estão aqui ao meu lado me animando, e agradeço ao universo por pelo menos tê-los aqui comigo. — Você não vai e está decidido. — Minha amiga está aqui gritando que não posso ir ao cemitério visitar minha família. — Amor, deixa a Bella decidir. Se ela diz que precisa vê-los, quem somos nós para impedir. — Fica quieto, Bernardo. — Ela olha para ele com o olhar mais gélido que a própria rainha de gelo. — E você, já disse que não vai e pronto. — Ela põe as mãos na cintura, e sua barriga de sete meses fica mais evidente. As outras meninas tentam argumentar e recebe