Quando entrei pelo portão, foi do mesmo jeito que saí, com a mesma loucura e insensatez, a diferença é que naquele dia havia um cerco policial em volta da casa. Não conseguia ainda assimilar o ocorrido, sentia-me mal. O fato de ter me afastado completamente de meus pais durante anos me deixava desconfortável, vez ou outra. Ser quem eu sou, pensar como eu penso sempre foi quase incompreensível para a maioria das pessoas. Não consigo ver as coisas com a naturalidade que os outros veem, e minha família estava envolvida nesse meu jeito de enxergar o mundo, não tinha nada a ver comigo... Todos aqueles presentes, mimos e cobranças ridículas me afastaram cada vez mais deles. Nunca me deixei levar por riqueza e poder, para mim, o mais precioso sempre foi a liberdade. Liberdade de ser quem sou, falar o que penso, fazer o que gosto. Isso nunca combinou com o nome da família, e por isso me afastei. Jamais poderia ser quem eles queriam que eu fosse.
Quantas vezes imaginei ter nascido na família errada... Algumas vezes, ouvindo conversas pelos imensos corredores da casa, até pensava que poderia ser verdade. Coisas do teor “esse menino nem parece meu filho!” Apesar de, infelizmente, muitas coisas ensinadas tenham sido absorvidas pela minha personalidade, não sou nem de longe o que eles gostariam que eu fosse.
E, naquele momento, me via ante uma situação completamente inusitada e amedrontadora.
Desci da moto, e logo um policial se aproximou:
— Você não pode entrar aqui!
— Sou filho de Giovanna e Peter Donovan. — as palavras saíram quase como um sussurro.
— Oh... Sinto muito. O investigador está lá dentro observando a cena do crime com os peritos — o policial disse, me encaminhando pela porta de entrada da casa, que, a propósito, continuava exatamente como eu me lembrava.
Entrei sem coragem e logo vi os peritos trabalhando, passavam pincéis com algum tipo de pó pelos corrimões da escada, paredes, degraus... Olho ao redor e percebo que tudo continua do mesmo jeito por dentro também. Um homem se aproxima e estende a mão:
— Você deve ser Matthew Donovan.
Eu o cumprimento e assinto com a cabeça.
— Prazer, sou o investigador Ramires. E prometo que faremos todo o possível para encontrar o assassino, ou assassinos, de seus pais. Preciso lhe fazer algumas perguntas, mas antes poderia me acompanhar até o quarto em que eles foram mortos?
Paro um pouco, não sei se gostaria de ver aquela cena, mas acabo concordando.
Subo as escadas atrás de Ramires e logo vejo a porta do quarto de meus pais aberta e várias pessoas lá dentro, tirando fotos. Por maior que fosse a diferença com eles, jamais os odiei. Senti uma sensação estranha, procurei não demonstrar, não para os outros, mas para mim mesmo. Entrei logo atrás do investigador, e o choque foi grande... Tanto meu pai quanto minha mãe tinham a cabeça praticamente arrancada do corpo... Vários hematomas espalhados pelo corpo, como se tivessem lutado muito pelas suas vidas... Quanto ódio pode existir em um ser humano para que ele faça algo assim? Senti meu rosto ficar quente e vermelho e um misto de ódio por terem feito aquilo com eles, além do remorso que me corroía. Saí do quarto e desci as escadas, seguido de perto por Ramires.
Já no andar debaixo, sentado na poltrona que era de meu pai, tentei entender tudo aquilo, sem conseguir, é claro, e Ramires inicia uma conversa:
— Já percebi que você é de poucas palavras, mas precisamos conversar. Matthew, você sabe de algum inimigo que seu pai ou mãe pudessem ter?
— Olha, Ramires, para ser bem sincero, não via meus pais há sete anos... Nos falávamos às vezes por telefone. Então não posso te dizer muita coisa. Mas por que inimigos? Não foi roubo ou coisa parecida?
— Nada foi levado da casa, a porta não foi arrombada, o sistema de segurança não foi acionado...
— Mas e as câmeras? Meu pai sempre viveu cercado por elas!
— Já procuramos e absolutamente nada foi gravado, por incrível que pareça, parece que o sistema de segurança foi desligado propositadamente por seu próprio pai alguns minutos antes de essa pessoa entrar... É como se ele não quisesse que a tal pessoa fosse vista.
— Sinceramente... Não posso ajudar muito. Sei lá, talvez por ser um homem de negócios... Lembro-me de ouvi-lo dizer como era complicado o mundo dos negócios, sempre tinha alguém querendo puxar o tapete... Mas isso faz tanto tempo!
— Tem certeza de que em nenhuma de suas conversas pelo telefone com seus pais eles deixaram escapar nada? Pense bem!
— Não, nada que parecesse suspeito.
— Nem um pedido de ajuda?
— Já disse que não!
— E por que se afastou de seus pais tanto tempo?
— Isso é um assunto meu e deles...
— Por que o nervosismo Matthew? Estou apenas investigando o caso! Afinal, você sendo o único filho e não tendo um bom relacionamento com seus pais... A morte deles daria a você direito a tudo!
— Sabe o que eu acho? Que você é um bosta querendo ganhar fama com esse caso! Faz sete anos que eu não piso aqui, vocês me chamam e agora você quer me acusar de assassinar meus pais, seu merda! Saí daqui porque não queria nada deles... Se quisesse, teria ficado, imbecil!
— Calma aí, rapaz, está falando com uma autoridade!
— Autoridade? Que autoridade você acha que tem? Vai fazer seu trabalho e descobrir quem fez essa barbaridade.
— Vou dar um desconto porque sei que deve estar chocado com tudo isso aqui... Mas vou investigar tudo, sim, inclusive você!
— Pode investigar o quanto achar necessário.
Saio pela porta e vou até o jardim acender um cigarro, a imagem dos meus pais mortos não sai da minha cabeça.
É claro que havia inimigos, afinal o poder e o dinheiro atraem muitos desafetos, ainda mais de meu pai, que sempre passou por cima de tudo e todos para alcançar seus objetivos.
“Quem teria tanto ódio para fazer tal coisa?” — esse era o pensamento que me rondava.
Fumei meu cigarro, acendi outro, a essa altura já não sabia mais o que me impulsionava a fumar um cigarro atrás do outro, se a dor de vê-los naquele estado ou o remorso. Não conseguia chorar, apesar de sentir um nó na garganta.
Tentei ser prático, eu era o único que poderia organizar as coisas daquele momento em diante... Eu era o herdeiro — meu Deus, como essa palavra era pesada! Sentia que ela podava absolutamente a liberdade pela qual eu tanto prezava.
Fechei meus olhos, respirei fundo... Não era mais um garoto de dezoito anos, era um homem, e apesar de minha vontade de sair de lá correndo e deixar tudo nas mãos de outras pessoas, sabia que não podia fazê-lo. Queria tanto crescer alguns anos antes, mas naquele momento vi que quando se cresce, há um tipo de sinal, de alarme que cresce junto e resolve ficar apitando na nossa cabeça quando uma coisa chamada responsabilidade aparece.
Precisava preparar o velório deles, até já podia imaginar as manchetes do dia seguinte, que, àquela hora, já deviam estar rodando nas prensas de todos os jornais do país.
Imaginava os acionistas da empresa de meu pai como urubus sobrevoando a carniça... Minha vida tomaria um rumo completamente diferente de tudo o que eu sempre quis... A vida estava me carregando pelas mãos de volta a um mundo que havia muito eu deixara para trás...
Estava meio confuso quanto a tudo, queria resolver tudo sozinho, mas, para ser bem sincero, não tinha ideia de por onde deveria começar... Não podia ser um simples enterro, afinal, meus pais pertenciam às altas rodas da sociedade.Tentei fazer tudo da melhor maneira possível, algo tão grandioso quanto o nome da família... Meu Deus, quanto pesa um nome? A futilidade daquilo me incomodava profundamente, seria tão mais simples enterrá-los com uma pequena cerimônia apenas para a família... Mas que família? Irmãos, cunhados, sobrinhos... Há muito todos haviam se afastado devido ao orgulho e arrogância de meus pais. Muitas vezes me perguntei o que restava além das letras juntas que formavam a palavra Donovan... Nada restou, a não ser interesses financeiros, contratos, dinheiro. Tudo do que fugi vinha ao meu encontro, me perseguindo a toda velocidade.
Tomei um banho refrescante e me joguei na cama, o dia havia sido estranhamente diferente dos meus dias habituais. Em seguida, peguei meu velho saxofone, que continuava pendurado na parede do que um dia foi meu quarto e refúgio, entoei uma linda canção... Adoro o som do saxofone, me acalma e me ajuda a refletir. Enquanto tocava aquela bela canção de Kenny G, meu celular começou a tocar. Olhando a tela percebi que era Brad:— Eu.— Fala, meu irmão. Tá fazendo o quê?— Desenferrujando meu velho saxofone.— Não tá a fim de uns drinques e um papo? Faz tempo que a gente não se fala direito.— Tô precisando mesmo... Aonde?— No mesmo lugar de sempre.— Daqui a meia hora te encontro lá.Logo cheguei ao local onde tantas histórias aconteceram. Era um bar que costumávamos frequentar na &e
Observei Charlie durante alguns minutos e entrei no estúdio dizendo:— Garoto... Você realmente tem talento! Acho que seu único caminho é o céu! Prazer, sou Matthew.— Obrigado! É um prazer te conhecer, já faz tempo que tenho essa vontade, as referências que tive de você como produtor foram muito boas.— Não é muito difícil produzir quem já tem um talento natural desses, fico feliz por você ter nos procurado...— Não falei, Matt, que o garoto tinha futuro? — Brad batendo em minhas costas.— E não exagerou! Vou investir na sua carreira, Charlie. E vamos começar logo, quero suas músicas gravadas para que eu as ouça, assim que tivermos um bom repertório, gravaremos as demos e divulgaremos na mídia... Tenho certeza de que vai engrenar. Você toca apenas viol&atil
Levantei cedo, apesar de não ter conseguido dormir quase a noite toda. Reencontrar Jen, depois de tantos anos... Ela havia marcado minha vida, fez história na minha alma... Sei que éramos adolescentes, talvez nem tivéssemos ficado juntos, mas a pior coisa que existe, a meu ver, é nunca saber como uma história vai terminar... É como nunca saber o final de um livro que termina inesperadamente... Uma música sem as notas certas para compor a melodia... Uma música sem final. Você pode tentar imaginar o encerramento, mas nunca terá certeza de absolutamente nada... Essa era a minha história com Jen.Tomei um banho, fiz a barba, que estava por fazer há dias, passei as mãos pelos cabelos ainda molhados e fiquei me olhando no espelho por alguns momentos, tentando encontrar o Matt de dezessete anos. Não encontrei... Eu era a mesma pessoa, mas diferente. Havia adquirido experiênc
Durante o trajeto até o hospital, tentava imaginar o que aquele idiota da van preta pretendia. É fato que foi proposital, talvez os avisos de Ramires devessem ser levados em consideração... Mas por quê? Qual era o verdadeiro motivo do assassinato de meus pais? Qual seria a história nebulosa que rondava a minha família?Sentia dores pelo corpo, mas não parecia haver nenhum osso quebrado. Os paramédicos, durante o trajeto, me apalpavam, me questionavam a respeito de lugares mais doloridos que outros. Finalmente chegamos, fui recebido por uma médica, que imediatamente me levou para a sala de tomografia.Fiz o exame: nenhum órgão havia sido lesionado, sou mesmo forte como um touro... O carro capotou tantas vezes, que ao final do trajeto, mais se parecia com uma lata de sardinhas.Depois de vários outros exames, que atestaram que meu interior estava intacto, como lembranç
Levantei cedo, o corpo ainda acusava o acidente da sexta à noite. Tomei um banho, meus ferimentos já não ardiam tanto, estava até que me recuperando rápido... Olhando para trás, poderia ter sido bem pior do que foi.Desci as escadas e logo vi Bernarda.— Bom dia, menino Matt! Como passou a noite, meu filho?— Estou bem melhor, Bernarda! Já não sinto tantas dores como ontem.— Pena que esse lindo rosto ainda carrega alguns hematomas... Tome cuidado, Matt. Contrate de volta os seguranças que trabalhavam para seu pai! São todos bons. Você não deve mais ficar andando por aí sozinho. Eu não sou surda, filho. Sei que não foi um simples acidente. Ouvi aquela moça bonita falando com seu amigo aqui embaixo ontem.— O que eles estavam falando, Bernarda?— A moça não queria muita conversa com ele, n&
Foi uma semana difícil... Helen não foi trabalhar, e, sozinho, continuei a investigação dos sócios e acionistas da metalúrgica. Não cheguei a nenhuma conclusão. Recontratei os dois seguranças que acompanhavam meu pai. Não me sentia confortável com aquela situação, mas o momento exigia cautela.Trabalhava de manhã na empresa e, à tarde, ia até a produtora. O contrato com Charlie já estava pronto, o CD demo também, estava analisando as músicas para ver quais apresentaríamos nas gravadoras.Brad e eu ficamos meio estremecidos depois do encontro dele com Helen em minha casa, mas já estava voltando tudo ao normal.Não costumo ficar dando asas para situações negativas, achei melhor não tocar mais no assunto, apesar da insistência de Brad em querer saber qual o tipo de relacionament
O silêncio dentro do carro era sepulcral... Nem eu nem Helen sabíamos o que fazer, ou como processar as informações que haviam caído sobre nós como uma bomba. Como imaginar Jen sendo minha irmã? Aquilo era surreal demais e envolvia tantas coisas... Naquele momento, sentia muita raiva de meu pai, não sabia como colocar isso para fora, estava entalado. Precisava falar, antes que me engasgasse. Imagens de momentos tão íntimos com Jen passavam pela minha cabeça... Podia ser que aquele homem estivesse mentindo?— Helen? — quebrei o silêncio sem saber exatamente o que diria.— Fala, Matt. Se é que você sabe o que dizer, porque eu sinceramente, não tenho palavras.Mais uma vez, Helen descrevia o que eu estava sentindo naquele momento.— Você consegue dimensionar esta situação?— Tô tentando... Acho q