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Capítulo 4/Amizade

Tomei um banho refrescante e me joguei na cama, o dia havia sido estranhamente diferente dos meus dias habituais. Em seguida, peguei meu velho saxofone, que continuava pendurado na parede do que um dia foi meu quarto e refúgio, entoei uma linda canção... Adoro o som do saxofone, me acalma e me ajuda a refletir. Enquanto tocava aquela bela canção de Kenny G, meu celular começou a tocar. Olhando a tela percebi que era Brad:

— Eu.

— Fala, meu irmão. Tá fazendo o quê?

— Desenferrujando meu velho saxofone.

— Não tá a fim de uns drinques e um papo? Faz tempo que a gente não se fala direito.

— Tô precisando mesmo... Aonde?

— No mesmo lugar de sempre.

— Daqui a meia hora te encontro lá.

Logo cheguei ao local onde tantas histórias aconteceram. Era um bar que costumávamos frequentar na época da faculdade, sossegado, com um grande balcão cheio de bancos, algumas mesas, com uma luz fraca e um som agradável ao fundo. Gostávamos de bater papo lá e acabou virando um hábito. Vez ou outra, eu e Brad pegávamos nossos instrumentos e ensaiávamos algumas canções em um velho palco que ficava em um cantinho. Tornamo-nos muito amigos desde aquela época. Juntamos nossas economias e montamos a produtora: pequena, mas nossa. Desde então, lançamos no mercado dois artistas que agora já se encaminhavam para as paradas de sucesso, estávamos empresariando os rapazes e bem satisfeitos com o resultado.

Sentei ao balcão, e logo Brad chegou. Cumprimentamo-nos com um aperto de mãos, um abraço, e pedimos bebida:

— Você saiu sem dar muitas explicações, Matt, concluí que algo de ruim tivesse acontecido. Quando vi os jornais, pude ver o que te levou a fazer isso. Sinto muito, irmão!

— Até agora não consigo entender o que aconteceu... Você, melhor do que ninguém, sabe do meu relacionamento quase nulo com meus pais, mas vê-los ali, daquele jeito... Me doeu.

— Posso imaginar... Mas até agora nenhuma pista do assassino?

— Nada... O idiota do investigador Ramires desconfiou de mim, a princípio. Um babaca.

— Que barra, cara. E as empresas de seu pai?

— Vou ter que tomar conta por enquanto... Não entendo absolutamente nada daquele mundo. Mas até eu resolver o que vou fazer com tudo, não posso deixar desmoronar.

— E a produtora? Como vai ficar?

— Vai continuar... Mesmo que eu não esteja presente lá todos os dias como antes, tem você, e sempre que tiver um tempinho, vou aparecer para a gente resolver os problemas. Posso contar contigo? Você segura as pontas?

— Sempre, amigão! A propósito, já te falei pelo telefone do tal menino Charlie, não falei?

— Falou. O garoto é bom mesmo?

— Tá me cheirando a sucesso! Acho que vale a pena investir.

— Como ele é?

— Tem dezenove anos, bem-apessoado, uma bela voz, toca demais e tem um dom natural para a composição de músicas. Há dois dias, ele me mostrou uma... Cara, é demais, ele a chamou de “Eu Te Desenhei”. Muito boa.

— Vou ver se consigo dar uma passada lá até o final da semana. Te ligo antes pra gente marcar, assim eu o vejo e ouço também.

— Estou te achando pra baixo demais... — Brad disse, pedindo mais bebida ao garçom.

— Tô sentindo o rumo da minha vida mudando, é como se eu estivesse perdido em uma tempestade em alto-mar sem o leme do barco... Tudo do que eu sempre fugi me alcançou.

— A vida tem uns baratos loucos...

— E você? Se arrumou com aquela tal namorada?

— Nada, cara... Até tentei uma reconciliação, mas depois que a irmã dela ficou doente e ela teve que ficar cuidando da sobrinha, eu estava sempre de lado! Difícil estar em segundo plano o tempo todo.

— Mas você gostava dela, pelo jeito.

— Gostava sim. Ela é tão especial que até você, com esse jeitão todo de que nunca vai se amarrar a ninguém, ia gostar. Mas quem sabe, né? Ainda não desisti dela, continuamos nos falando pelo telefone...

— Vai tentando. Uma hora, você se ajeita com ela! Engraçado vai ser te ver entrando em uma igreja com alguém! Esse dia eu quero ver!

— Olha quem fala... O Ninguém-Me-Laça! — Brad retrucou, dando uma gargalhada.

— Vamos tocar um pouco? Como nos velhos tempos?

— Vamos, sim, vai ser bom pra relaxar.

Subimos no palco, pegamos um violão cada e começamos a tocar a nossa habitual playlist: Hotel California, How Deep is Your Love, With Or Without You e algumas mais. Quando me dei conta, já era bem tarde. Eu me despedi de Brad e fui para a casa. Entrei em silêncio, com a moto desligada, e pude observar as câmeras com sensor de movimento me seguindo. Inevitável pensar o que faria meu pai as desligar uma vez por mês...

Acordei com um gosto de cabo de guarda-chuva na boca, exagerei na bebida no dia anterior, ainda deitado, acendo um cigarro e penso um pouco antes de me levantar... Sentia-me algemado a um negócio que não era o meu.

Tomei um banho rápido, me vesti, tomei um café gostoso preparado por Bernarda, já pude ver o movimento de entra e sai dos empregados, subindo descendo, limpando, arrumando. Coloquei meu capacete e saí.

Cheguei ao escritório, fui melhor recebido desta vez, até demais: as secretárias, atendentes começaram a se insinuar descaradamente. Menos Helen, que me tratava como tratava a todos ali, como se eu não fosse ninguém acima dela. Não sei se isso me incomodava ou me dava prazer...

Cumprimentei todos com um aceno de cabeça e fui direto para a minha sala, onde, sobre a mesa, havia uma pilha gigantesca de contratos a serem assinados e um imenso recado me comunicando de uma reunião com os acionistas.

Imediatamente peguei o telefone e pedi que Helen viesse até meu escritório.

 Ela deu uma ligeira batida na porta e entrou em seguida.

— Bom dia, Matthew.

— Bom dia, Helen, por que você é a única que não usa formalidades comigo aqui?

— Acho você muito novo para chamar de senhor ou doutor, mas se te incomoda, posso chamá-lo de Doutor Matthew. Para mim, não faz diferença.

— Não, está bom assim! O que é isso tudo? E que reunião é essa?

— Isso tudo são contratos com grandes fornecedores de obra prima para a metalúrgica, você tem que analisá-los antes da reunião com os acionistas para dar um parecer positivo ou negativo com relação aos preços de compra de cada um deles. E essa reunião foi marcada também porque os acionistas estão meio inquietos com relação à sua pessoa... Querem saber se você vai continuar na presidência ou vai indicar alguém que tenha mais experiência do que você.

— Bando de urubus...

— Sim, você tem razão... Não passam disso. Seu pai costumava me contar as histórias de como transformou a pequena metalúrgica de seu avô nesse império, e quando ele começou, era assim como você, sem experiência quase nenhuma.

— Eu me surpreendo com você, sabia?

— Por quê?

— Você sabe mais da vida de meu pai do que eu. Como um homem pode conversar tanto com uma secretária e quase não falar com o próprio filho?

— Espero que não esteja insinuando nada com isso... — Helen disse, me olhando com ar de poucos amigos. — Seu pai tinha idade para ser meu pai também, só que trabalhávamos juntos praticamente o dia todo, e durante o expediente ele adorava contar histórias. Sempre me respeitou muito, assim como eu a ele.

— Não quis insinuar nada, Helen, calma! É que você fala dele com tanta admiração, que nem parece ser a mesma pessoa.

— Pode ser que você não tenha feito força suficiente para entender seus pais... Só quem não os tem mais já há muito tempo sabe a falta que fazem. Mesmo quando parece que estão fazendo tudo para a nossa infelicidade, sempre tem o outro lado, aquele que não queremos enxergar. Seu pai tinha muitos defeitos, Matthew, mas era um homem justo.

— Chega desse assunto, nem sei por que estou falando sobre isso com você! Mal te conheço.

— Tem razão... Assuntos de família não me dizem respeito. Vamos ao que interessa.

— Vai ter que se acostumar comigo, sou um pouco grosso às vezes... É que eu não gosto de meias palavras, quem gostar de mim, vai ter que gostar do jeito que eu sou.

— Já ganhou um ponto positivo comigo! Não gosto de gente dissimulada.

Nós dois sorrimos, e Helen começou a me apresentar todos os documentos um a um. Eu procurava prestar atenção em cada detalhe quando, alguns minutos depois, o celular de Helen tocou. Ela pediu licença e foi atender com o semblante preocupado. Aquilo chamou minha atenção e, num ímpeto de curiosidade, fui devagar até a porta, a fim tentar ouvir a conversa. Mas apenas ouvi ela dizer: “Vou chegar o mais cedo possível, não a deixe sozinha.”

Ela entrou com o rosto bastante preocupado e me viu em pé perto da porta.

— Ouvindo a conversa dos outros, Matthew?

— Me desculpe, é que percebi sua transformação... Aconteceu alguma coisa grave?

— Ultimamente na minha vida, só acontecem coisas graves... — ela enxugou uma lágrima que teimou em descer pelo rosto.

— Quer me contar?

— Não. Deixa pra lá. Vamos terminar isso logo, que a reunião é daqui a pouco.

Terminamos a revisão e fomos para a sala de reuniões, onde os acionistas já estavam nos esperando. Entrei sob os olhares atentos de todos, que investigavam minha calça jeans rasgada e minha camisa com as mangas dobradas e dois botões abertos.

— Boa tarde. Sou Matthew Donovan, vou permanecer na presidência no lugar de meu pai até que resolva o que fazer, até lá, conto com a boa vontade de todos para que continuemos a gerir esta empresa de forma satisfatória.

Senti os olhares me fulminando, mas Helen me olhou com certo orgulho, e aquele simples olhar me encheu de forças para continuar. Sentei e começamos a discutir os contratos. Nunca imaginei que pudesse me sair tão bem...

A reunião acabou, respirei fundo e disse:

— E aí, Helen, o que achou?

— Fantástico, seu próprio pai não teria feito melhor! Parabéns!

— Vamos almoçar comigo hoje? — convidei sem convicção.

Ela me olhou de um jeito desconfiado, mas concordou. Fomos a um restaurante que havia ali perto, a algumas quadras do escritório. Ela indicou o caminho, pois almoçava lá todos os dias, a comida era boa e barata.

Sentamos à mesa e pedimos o prato do dia.

— Sabe por que te chamei para vir comer aqui, Matt?

— Por quê?

— Achei que você não ia aceitar! — ela sorriu. — Queria ter certeza de que você é realmente quem demonstra ser.

— Que bobagem, sou uma pessoa muito simples, Helen.

— Que bom... Assim me sinto mais à vontade.

— Você acredita que homens e mulheres conseguem ser apenas amigos? — lancei a pergunta e fiquei observando a reação de Helen, que para minha surpresa, continuou exatamente a mesma.

— Que pergunta estranha... Por que não poderiam?

— Acho que você vai acabar se tornando uma grande amiga minha!

— Vou adorar.

— Você tem uma coisa diferente... Parece que...

— Leio as pessoas?

— Isso!

— Já me disseram isso! — ela sorriu, e almoçamos trocando algumas palavras.

Voltamos para o escritório, o restante do dia foi tranquilo. Atendi a um pedido de Helen, deixei que ela saísse uma hora mais cedo. Mas não descobri o motivo, ela era uma mulher, apesar de muito comunicativa, um tanto misteriosa quando se tratava de si. Também acabei saindo mais cedo, Brad me ligou dizendo que Charlie estava na produtora. Acabei indo até lá, estava mesmo curioso para conhecer o jovem talento.

Parei a moto na calçada e entrei cumprimentando com toques característicos as pessoas que nos ajudavam ali. Logo vi Brad na sala de gravação, ouvindo o garoto tocar, então cheguei perto e apurei os ouvidos.

 Brad tinha razão... O garoto era bom.

Charlie tinha um grande futuro pela frente.

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