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Capítulo 3/O Recomeço

Estava meio confuso quanto a tudo, queria resolver tudo sozinho, mas, para ser bem sincero, não tinha ideia de por onde deveria começar... Não podia ser um simples enterro, afinal, meus pais pertenciam às altas rodas da sociedade.

Tentei fazer tudo da melhor maneira possível, algo tão grandioso quanto o nome da família... Meu Deus, quanto pesa um nome? A futilidade daquilo me incomodava profundamente, seria tão mais simples enterrá-los com uma pequena cerimônia apenas para a família... Mas que família? Irmãos, cunhados, sobrinhos... Há muito todos haviam se afastado devido ao orgulho e arrogância de meus pais. Muitas vezes me perguntei o que restava além das letras juntas que formavam a palavra Donovan... Nada restou, a não ser interesses financeiros, contratos, dinheiro. Tudo do que fugi vinha ao meu encontro, me perseguindo a toda velocidade.

Por que sou filho único? Tanto dinheiro, espaço, e apenas um filho? Agora vejo que faltava o principal, amor! Isso não tem dinheiro no mundo que compre, e apesar de todos os bens materiais, nunca foram capazes de dispensar amor verdadeiro, nem sequer a mim... Compravam-me com brinquedos, comida, roupas caras, carros, dinheiro... Mas agora estão mortos. O que vai ser da minha vida? Terei que assumir a metalúrgica, pessoas dependem daquilo para viver. Não tenho a mínima ideia do que farei lá, mas terei de fazer! A música? Não largarei, de jeito nenhum, arrumarei uma maneira de conciliar as coisas!

Fiz um grande cerimonial, recebi os acionistas, empresários do ramo de meu pai, expliquei que assumiria a presidência o mais rápido possível. Alguns poucos amigos mais próximos de meu pai e muitos jornalistas, que a todo o custo tentavam arrancar informações das pessoas que entravam e saíam dos jardins da casa, estavam presentes no cerimonial Aquilo mais parecia uma festa do que um velório. Não se falava nada além de negócios, e de como tudo ficaria daquele momento em diante.

Procurei ficar mais afastado, aquela falsidade toda me corroía por dentro, não conseguia ser falso ou dissimular sentimentos... Todos ali eram pessoas estranhas a mim, mas não ao dinheiro que eu manipularia, por isso se aproximavam com falsas gentilezas e sorrisos amarelos. Não consegui ver em ninguém nenhuma ponta de consideração, ao contrário, todos me olhavam com certa preocupação. Era extremamente observador, e ninguém precisava abrir a boca para que eu soubesse exatamente o que se passava por trás de cada olhar.

Finalmente tudo acabou. Eles foram cremados, depois de uma extensa perícia em cada um dos corpos. Assim que voltei do crematório, entrei casa adentro, e um grande silêncio habitava o lugar, portanto eu não tinha vontade nenhuma de ficar ali. Lembrei do meu pequeno apartamento, senti vontade de voltar. Pensei em vender a mansão...

Fui desperto pela voz já fraca de uma antiga empregada. Uma senhora de uns sessenta anos, que sempre foi muito fiel à família. Sempre gostei muito dela, afinal a maior parte de meus dias, passei a seu lado... Para falar a verdade, acredito que se tive algo parecido com uma mãe, foi ela. Seu nome era Bernarda.

— Menino Matt, quanto tempo! Como você cresceu. Que homem bonito se tornou! Não consegui chegar perto de você nos dias anteriores por causa da polícia e depois do velório... Mas estava te observando o tempo todo. Não mudou nada, calado, observador.

Aquelas palavras me deram certo alento. Dei um imenso abraço em Bernarda.

— Acho que você foi a única de quem realmente senti saudades.

— E a vida, meu filho?

— Estava tranquila, até agora... Daqui para frente, não sei como será.

— O que vai fazer com esta casa?

— Estou pensando em vendê-la.

— É uma pena... Muitos ficarão sem seus empregos se você fizer isso, menino. Inclusive eu, que já não arrumarei nada em canto nenhum, estou velha.

— Quantas pessoas trabalham aqui, Bernarda?

— Umas quinze, pelo menos. Todos pais de família que prestavam serviços aos seu pai. Cozinheira, arrumadeira, jardineiro, motorista, passadeira, seguranças...

— Mesmo que eu fique com a casa, Bernarda, não precisarei de tanta gente! Isso chega a ser ridículo. Só você e mais alguns escolhidos a dedo por você me bastam. Afinal, seria pedir muito que você tomasse conta de tudo isso sozinha! Motorista e segurança, eu não preciso... Você pode cozinhar para mim, não pode?

— Claro que sim. Vou fazer os pratos que você mais gosta!

— Então... Vou repensar sobre a venda da casa, mas só por sua causa, viu!? — disse, apertando as bochechas de Bernarda. — Mas agora ficaria muito feliz com algo para comer.

— É pra já, Matt. Vou para a cozinha preparar um belo bife com batatas fritas!

— Você não esqueceu mesmo, né, Bernarda?

— De jeito nenhum. Enquanto isso, vou pedir para a arrumadeira organizar seu antigo quarto... Continua do mesmo jeito. Nada foi mexido!

— Preciso mesmo de um banho, comida e descanso! Nem precisa pedir nada pra arrumadeira, Bernarda, vou subir tomar um banho e desço para comer aí na cozinha.

Passar pelo quarto dos meus pais me deu desconforto, a cena deles degolados veio imediatamente à minha cabeça. Procurei não pensar muito, entrei em meu antigo quarto e, de fato, vi que tudo estava no mesmo lugar, como se eu não tivesse nunca crescido ou saído de lá. Joguei minha mochila em cima da cama, entrei no chuveiro... Flashes de lembranças de minha infância surgiam em minha cabeça, as corridas escada acima e a volta escorregando pelo corrimão, com Bernarda gritando atrás de mim como uma louca: “Menino Matt, você vai se matar!” Sorrio sem querer, lembrando das corridas pela casa escondendo-me na hora de dormir, as brincadeiras sem fim no jardim...

De repente, começo a lembrar das brigas entre meus pais, quase nunca os vi felizes, nunca me levavam com eles a canto nenhum, sempre pagavam outras pessoas para fazerem o papel deles... Meu sorriso desaparece instantaneamente. Sou um pouco traumatizado com essa história de casamento. Acho que por isso, depois da Jen, nunca consegui me apegar a ninguém.

Saí do chuveiro, vesti uma bermuda velha e desci as escadas seguindo o cheiro bom que vinha da cozinha. Meu estômago estava gritando de fome.

Logo que entrei, vi a mesa já posta com todo o capricho e um imenso bife com muita batata frita me esperando. Sentei e comi. Quanto gosto naquele simples ato!

— Coma mesmo, menino Matt, amanhã sei que o dia será bem difícil!

— Você me conhece mesmo, né, Bernarda?

— E como conheço, menino! Poucas vezes você conseguiu me enganar.

— Essa história toda... Ainda não consigo acreditar no rumo que as coisas tomaram. Quem poderia ter tanta raiva de meus pais? Incrível como não havia ninguém na casa, as câmeras estavam desligadas. Onde vocês estavam, Bernarda? Se bem me lembro, você mora aqui já há muitos anos, antes mesmo de eu nascer.

— Pois é, menino... Já há algum tempo, assim que você saiu daqui, uma vez por mês, seu pai dispensava absolutamente todos os funcionários. Ele pagava o dia, mas nós saíamos por volta das cinco horas e só retornávamos no outro dia, às dez horas da manhã... Não me pergunte o motivo, filho!

— Muito estranho... Quem será que eles recebiam aqui?

— Difícil saber, você sabe bem que entre eles e os empregados nunca houve nenhum tipo de liberdade.

— Eu sei... Confiavam em você, mas nunca a ponto de te contarem algo assim...

— Ninguém sabe o que aconteceu, menino, mas nunca é demais pedir para você tomar cuidado! Amanhã, você começa lá na metalúrgica de seu pai e, sei lá, né...? Toma cuidado, menino!

— Eu sou esperto, Bernarda. Não se preocupe comigo.

— Eu sei, mas nunca é demais falar.

— E como você gosta de falar, né? — dei uma gargalhada, tomei um copo de suco de melancia e fui para meu quarto, onde meu celular tocava insistentemente.

— Eu.

— Finalmente, Matt! Onde se enfiou?

— Tive uns problemas de família para resolver, Brad, fala.

— O garoto, aquele que vamos ouvir e produzir, lembra? Aquele que eu disse que tem talento? Então, ele está atrás de você igual a um louco. Quer que você o ouça.

— Sei, o que ele quer comigo? Você acha que vale a pena?

— Parece que tem uma música nova.

— Você ouviu?

— O menino tem mesmo talento, Matt... Você devia ouvir.

— Marca com ele no começo da semana que vem, Brad, amanhã tenho uns pepinos para resolver... Depois te conto.

— Ok! A gente vai se falando.

Brad trabalhava com música, assim como eu, porém eu produzia músicas, e ele, artistas. Conhecemo-nos na faculdade e resolvemos investir em uma pequena produtora, nada muito grande, mas até que estava dando certo, produzíamos e empresariávamos os artistas. Ainda eram poucos, na verdade, apenas dois, mas devagar se vai ao longe. A música dos garotos já começava a despontar nas paradas, e isso era bom. Já tínhamos certa credibilidade com grandes gravadoras, não sei ao certo se por termos um bom “feeling”, ou por meu sobrenome... Isso realmente me deixava muito confuso! Mas eu me recusava a crer que não fosse pelo feeling, pois eu sabia da minha capacidade e do meu dom para encontrar talentos.

A verdade é que minha cabeça estava  no dia seguinte... Sentia como se uma prensa estivesse apertando minha garganta. Eu não entendia porra nenhuma de metalúrgica, administração, ações... Era um mundo completamente diferente do meu, meu negócio era música. Tudo bem que a produção musical também lida com esse tipo de coisa, mas não era a minha praia. Enfim, o jeito era enfrentar.

Levantei cedo, tomei um banho, coloquei uma calça jeans, uma camisa polo, minha habitual jaqueta de couro preta. Tomei um delicioso café, preparado por Bernarda, com a estranheza dos empregados olhando para mim na cozinha — jamais meus pais tomariam café ali.

Peguei meu capacete e saí em direção ao escritório da metalúrgica multinacional de meu pai. Os acionistas já haviam sido comunicados durante o velório que eu assumiria a presidência, mas acredito que eles não esperavam que fosse tão rápido... Queria muito me livrar de tudo aquilo o mais breve possível!

Entrei no estacionamento, e confesso que fiquei perdido, aquele prédio era enorme, eu não sabia nem qual era o andar do escritório no qual se comandavam as várias metalúrgicas que meu pai possuía. Mas quem tem boca vai a Roma, não é mesmo?

Perguntei na portaria, foi um pouco difícil os seguranças me deixarem passar, tive que dar alguns gritos, falar alguns palavrões e, por fim mostrar minha identidade — acho que foi por causa da roupa, mas eles teriam de se acostumar... Eu, de terno e gravata? Sabe quando? Nunca!

Subi o elevador e parei no décimo quarto andar... Respirei e fui entrando. Havia várias salas, e a maior delas pertencia a meu pai, tinha seu nome gravado em uma placa na porta: Peter Donovan. Presidente. Vi de longe e senti um arrepio, que procurei controlar! Talvez a vida dele não fosse tão fácil assim! O remorso me tomou mais uma vez.

Algumas secretárias me olharam da cabeça aos pés, e uma delas veio até mim.

— Não estamos aceitando currículos, senhor.

— Eu não vim trazer currículo algum.

— O que quer então?

— Sou o novo presidente da empresa. Sou Matthew Donovan.

Naquele momento, senti todos os olhares se voltarem para mim, ouvi cochichos paralelos e vi a cara de bosta da secretária se tornar um lindo sorriso amarelado. Em poucos instantes, as portas onde ficavam as placas de diretor disso, diretor daquilo começaram a se abrir, e quase fui carregado para minha nova sala... Sensação de ânsia era o que percorria meu estômago. Apenas uma secretária não se abalou com a minha presença.

Sentei no trono, cercado de atenção por todos os lados:

— Um café, senhor? Uma água?

— Posso ter um minuto de sossego para me adaptar? Isso seria o suficiente! Obrigado.

Vi a mulher sair meio sem graça, mas não deu para controlar!

Olhei tudo em volta, completamente perdido... Havia alguns papéis sobre a mesa, peguei para olhar. Eram algumas planilhas, contratos de venda. Enquanto olhava aquilo como quem olha um manuscrito em sânscrito, uma batida na porta e um girar na maçaneta me chamaram atenção.

— Bom dia, senhor Matthew, sou Helen, fui secretária de seu pai e posso ajudá-lo com algumas coisas.

Ela era a mulher que não se abalara com a minha chegada. Acho que por sua postura, já senti certa confiança.

— Acho que vou precisar mesmo...

— Acredito que não saiba absolutamente nada o que acontece por aqui, não é mesmo?

— De fato, não! Só sei que tenho que continuar algo que não faz parte do meu mundo. Por isso, preciso de muita ajuda mesmo.

— Tudo se aprende na vida, não é?

Olhei para ela, intrigado... Devia ter no máximo vinte e sete anos, alta, morena de olhos castanhos, cabelos longos e presos em um rabo de cavalo, óculos e pouca maquiagem. Estava bem vestida em uma saia social e um blazer, usava pouco perfume e tinha uma desenvoltura absurda para se comunicar.

— O que exatamente você faz por aqui, Helen?

— Tudo... Por isso pretendo te ajudar. Se você quiser, é claro. Imagino que não saiba muito a respeito deste mundo, afinal nunca esteve aqui antes. E as vezes em que seu pai falava sobre você, contava de seu desinteresse pelos negócios.

— Ele falava de mim? — questionei, intrigado e um tanto surpreso.

— Sim... Com certo orgulho na voz. Dizia que, apesar de tudo, você era um Donovan e mostrava isso com suas atitudes fortes e decididas!

Fiquei meio confuso. Ouvir alguém dizer que ele falava sobre mim com orgulho soava estranho!

— Você então vai ser minha secretária?

— Pretendo continuar no meu emprego. — Helen sorriu.

— Então começa me explicando o que são esses papéis!

— Tudo bem, vamos lá.

— Outra coisa.

— Fale.

— Estou muito mal vestido?

— Por mim, você venha do jeito que quiser. O que importa é o seu trabalho, não as suas roupas, mas o dia em que houver uma reunião com os acionistas, sugiro que use pelo menos um esporte chique — Helen afirmou, sorrindo.

Gostei dessa Helen, acho que vamos nos dar bem!

Ela me mostrou vários documentos, me explicou cada um deles, assinei alguns papéis lendo muito bem cada um deles antes... Eu não era tão burro assim, me senti até um pouco orgulhoso de mim mesmo ao final do dia.

Às cinco horas, desci o elevador, coloquei meu capacete e pude ver Helen se dirigindo ao ponto de ônibus para ir embora. Ela era uma secretária executiva, não devia ganhar mal... Por que ônibus, e não carro ou táxi? Parei e pensei que não era problema meu. Baixei o visor do capacete e fui para a casa...

Errei o caminho, pois o costume me fez tomar a direção do apartamento. Retornei e fui recebido na porta com um grande sorriso de Bernarda, que já havia preparado um belo jantar para mim... Pensando bem, até que não era tão ruim ter um pouco de conforto, mas, é claro, tudo com certa medida!

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