Em uma noite, há quase trinta anos, a Lua dos Antigos estava alta no céu, envolta em uma majestade prateada, e seus raios dançavam sobre o Espelho da Lua. O eclipse lunar começara transformando o céu em uma pintura sombria e sagrada, e os lykor observavam, em silêncio, o ritual aguardado por toda uma geração. O ar estava denso, carregado de uma energia antiga que pulsava ao mesmo tempo como uma promessa e um presságio de tempos decisivos.
Afastada da multidão, em uma clareira protegida pelos carvalhos ancestrais, Lyanna, líder do clã Lykir, enfrentava o momento mais doloroso e sagrado de sua vida. Sobre uma manta de linho bordada com o símbolo da Lua dos Antigos, as contrações se intensificavam, em correntes que traziam a vida e, ao mesmo tempo, arrancavam suas forças. Seus lábios, apertados, mal deixavam escapar um som, mas o suor que escorria por seu rosto denunciava o esforço e o sofrimento. Ela segurava a terra úmida com força, buscando naquele contato um pouco da firmeza que começava a lhe escapar. Seu corpo tremia, mas sua determinação permanecia intacta.
Apesar da dor física, o que mais pesava era o vazio em seu peito. Em meio à penumbra, sua mente voltava, inevitavelmente, para Aedric, o homem que fora tudo para ela. Havia pouco mais de um ano, ele surgira naquele território como um guerreiro nômade, um mensageiro de um clã distante. Lyanna lembrava-se do dia em que o vira pela primeira vez: ele era imponente, com uma calma que parecia dominar o próprio vento, olhos de um azul profundo, como se carregassem os mistérios do mundo. Enquanto todos o viam como um estranho, ela o enxergou por inteiro.
O vínculo entre eles fora instantâneo. Nas noites silenciosas do vale, longe dos olhos atentos do clã, Lyanna e Aedric se encontravam na clareira dos carvalhos. Seus toques eram gentis, mas carregados de uma paixão quase primal. Ela, sempre tão firme e controlada, se entregou a ele como se cada toque, cada beijo, fosse um elo irrompendo o peso que carregava. Ele a segurava como se ela fosse preciosa, como se o vento — ao qual os Lykir eram tão devotados — soprasse apenas para aproximá-los.
— Você é como o vento, Lyanna — sussurrou ele certa noite, seus dedos percorrendo a linha do rosto dela com devoção. — Livre e feroz. Quem poderia prender o vento?
— Talvez o vento não precise ser preso — respondeu ela, com um sorriso suave, puxando-o para perto.
Naquela noite, os corpos se uniram como as almas que foram desde o princípio. Cada gesto entre eles era uma promessa silenciosa, um amor que transcendia o tempo. Aedric era a calmaria que ela nunca soube que precisava. Quando ele partiu para cumprir uma missão, prometeu voltar. Mas semanas depois, os ventos trouxeram notícias: Aedric desaparecera. Pouco tempo depois Lyanna sentiu, no fundo do coração, que ele estava morto. Não havia corpo, não havia confirmação — apenas a dor implacável que vinha do elo que compartilhavam e que fora precocemente rompido.
Seu mundo quase desabou, mas dentro de si, havia uma chama que a manteve de pé: o filhote que crescia em seu ventre, o fruto do amor mais puro que ela conhecera. Por essa criança, ela precisava resistir.
Agora, naquela clareira sagrada, enquanto a Lua dos Antigos mergulhava em sombras, Lyanna sabia que estava chegando ao seu limite. As sacerdotisas, ao seu redor, entoavam cânticos ancestrais, suas vozes quase suplicantes à deusa Arktas:
— Oh, Arktas, guia dos lykor, conceda-nos sua luz! Proteja esta geração, que será nossa força nos tempos de trevas!
O eclipse se completava, e Lyanna, com a força restante, empurrou uma última vez. Um único grito rompeu seus lábios, ecoando pelo vale, e então o silêncio tomou tudo.
O choro da criança, claro e forte, rasgou o ar como um chamado. Lyanna, pálida e enfraquecida, olhou para a filha com lágrimas nos olhos, um sorriso débil iluminando seu rosto. No instante em que a segurou nos braços, a luz voltou ao vale. Um feixe prateado, puro e imaculado, desceu diretamente da Lua dos Antigos, envolvendo o corpo da recém-nascida como um manto de poder. Os lykor assistiram, paralisados, enquanto aquela luz descia dos céus e parecia sussurrar um segredo antigo ao mundo.
Quando a luz se dissipou, algo permaneceu: uma mecha prateada brilhava em meio ao cabelo escuro da bebê, bem na sua têmpora direita, como um símbolo da bênção da deusa Arktas. As sacerdotisas caíram de joelhos, murmurando orações. Lyanna, com a voz fraca, mas cheia de amor, sussurrou:
— Você foi feita de amor, minha pequena Althea. Não deixe ninguém te convencer do contrário. Seja luz onde houver sombras, como a lua que ilumina o céu mais escuro.
Os olhos de Lyanna se fecharam, e seu corpo cedeu a dor contida em seu coração. A vida escapou dela como o vento que acaricia o rosto e desaparece. A sacerdotisa Sarya, amparou a criança para que sentisse o calor que ainda emanava do corpo de sua mãe. Momentos depois, ergueu Althea nos braços, sentindo a energia do amor materno se entranhando em seu pequeno corpo. Ela fitou a Lua dos Antigos, agora com seu brilho restaurado, e sussurrou palavras de uma profecia antiga:
— Quando luz e sombras se encontrarem, o equilíbrio será restaurado. Mas apenas o amor verdadeiro poderá impedir que sejam consumidos.
Para alguns, a morte de Lyanna foi atribuída ao peso de seu sacrifício. Sua alma, diziam, fora entregue para selar o destino da filha, garantindo que Althea carregasse consigo o equilíbrio entre luz e trevas. Outros, acreditavam que ela estava sendo castigada por desprezar as tradições, ao não concluir o ritual de escolha de companheiro antes de Aedric partir.
Nos anos seguintes, todo o clã Lykir se dedicou a criar Althea com base nos valores de Lyanna: coragem, compaixão e determinação. Desde cedo, ela treinava com os guerreiros, era instruída pelos anciãos e aprendia com as sacerdotisas. Embora não soubesse, estava sendo preparada para liderar.
Seu vínculo com a Lua dos Antigos era mais forte que o de qualquer outro lykor. Mesmo jovem, ela conseguia sentir a energia da lua pulsando em seu sangue. As sacerdotisas a ensinaram a respeitar esse poder, mas esconderam dela a profecia.
Quando Althea completou sete anos, foi levada ao Templo de Veyara. Era um lugar místico, quase fora do tempo. Foi ali que aconteceu a sua primeira transformação, muito antes do previsto.
A beleza da loba deixou todos impressionados. Seus olhos cinza, agora brilhavam com uma intensidade prateada, assim como a faixa de pelos luminosos que se estendia desde sua testa até a parte de trás do pescoço, conferindo a Althea uma aparência imponente.
Mas a transformação precoce a deixara acuada. Toda a dor, a adaptação ao novo corpo, o controle do lado selvagem — era demais para uma criança de tão pouca idade. Althea rosnava e se debatia, assustada. Então, quando tudo parecia escapar do seu controle, ela fugiu.
Foi nesse momento que esbarrou em um menino franzino, de cabelos castanhos encaracolados e olhos quentes como o pôr do sol. Algo inexplicável aconteceu. Althea parou, sentindo um calor diferente percorrer a porção prateada do seu pelo.
O menino, surpreso, grudou as costas contra a parede mais próxima. A loba se sentiu atraída por ele, mais e mais e quando sentiu o toque carinhoso em sua cabeça, o impossível aconteceu: sua transformação começou a regredir, de forma suave e indolor.
O menino tirou a própria capa e envolveu o corpo trêmulo da pequena loba, protegendo-a do frio e da vergonha de sua vulnerabilidade. Quando ela o encarou, seus olhos num tom de cinza profundo encontraram aqueles olhos cor de mel, e ela se sentiu em paz.
Naquele instante, uma conexão inexplicável foi forjada.
Althea e Eryon foram puxados daquela visão no Templo de Veyara. Após emergirem do lago, nadaram até a margem do Espelho da Lua, impulsionando seus corpos exaustos para fora da água. Quando finalmente alcançaram a terra firme, caíram deitados, lado a lado, o peito arfando enquanto tentavam recuperar o fôlego.— Vocês estão malucos? — A voz de Kael irrompeu pelo silêncio da noite, carregada com a familiar mistura de preocupação e sarcasmo. — Teve lobo que mergulhou aí sozinho e nunca voltou, quanto mais duas pessoas tocarem essas águas ao mesmo tempo! Já estava encomendando as lápides de vocês com a frase: "Kael avisou"!Kael jogou a capa sobre os ombros e afastou-se, jogando as mãos para o alto, murmurando algo.Ainda deitados, de barriga para baixo, Althea e Eryon não se moveram. As respirações ofegantes formavam uma sincronia natural, como se seus corpos entendessem algo que suas mentes ainda precisavam alcançar. A Lykir se virou, ficando com o corpo de lado, a cabeça apoiada no braç
Enquanto Eryon beijava sua mão, a brisa fresca da noite carregou um odor metálico e denso que imediatamente fez Althea ficar alerta. Os pelos em sua nuca eriçaram-se antes mesmo de qualquer som se manifestar.Antes de Kael começar a resmungar, ela se virou para as árvores atrás dela. O silêncio repentino era inquietante, como se a própria natureza tivesse parado para avisá-los de que algo estava errado e o cavalo de Eryon relinchou em pânico, fugindo pelo mesmo caminho que acabara de percorrer.— Você também sentiu? — Eryon perguntou, já em movimento, as lâminas curvas reluzindo em suas mãos.Althea não respondeu com palavras. Despiu-se rapidamente e transformou-se, o calor da mudança atravessando seu corpo com a intensidade de sempre. Suas garras tocaram o chão, o olhar prateado atento a cada movimento na escuridão. Sua loba não precisava de mais confirmações: o perigo estava ali.Eryon a seguiu, girando o corpo para cobrir os pontos cegos de Althea. Kael retornava do lado oposto da
A trilha sinuosa que levava ao território Varkos era marcada por penhascos íngremes e florestas densas, pelas quais os ventos não passavam com facilidade. Cada passo parecia mais pesado, não pela dificuldade do terreno, mas pelo silêncio que pairava entre o grupo. Kamar e Sakyr mantinham-se à retaguarda, atentos a cada som, enquanto Kael liderava.Althea, ainda sentindo o peso da separação, manteve-se calada durante a jornada que já durava três dias, alternando entre suas formas lupina e humana. Mesmo sem olhar diretamente para ela, Kael quebrou o silêncio com seu tom provocador habitual, embora houvesse um toque de suavidade em suas palavras.— Você sempre foi tão quieta, Lykir? Ou é o ar daqui que sufoca o seu espírito?Althea ergueu o olhar para ele, o cenho franzido.— Não estou de humor para suas gracinhas, Kael.Ele riu baixo, um som rouco e natural.— Bom, se quer permanecer envolta nesse manto de melancolia, tudo bem. Mas vou avisar: o território Varkos não é gentil com quem c
A pequena gruta revelou-se uma visão fascinante: uma piscina natural de água cristalina, refletindo as luzes suaves dos cristais que adornavam as paredes. O cheiro das ervas misturava-se ao vapor que subia da água, criando uma atmosfera ao mesmo tempo relaxante e revigorante.— Banhos medicinais — explicou Kael, indicando a piscina. — As ervas aquecem o corpo e aliviam a mente. É o remédio perfeito para um coração pesado.Althea olhou para a piscina e depois para ele, surpresa.— Não sabia que os Varkos eram tão... sofisticados.— Há muito que você não sabe sobre nós, Lykir. Entre na água e talvez aprenda algo.Ela hesitou, mas o calor tentador da água era irresistível. Depois de tanto tempo carregando tensões nos ombros, sentiu o desejo de ceder por um momento. Primeiro, mergulhou os pés na água, apreciando o calor agradável que parecia envolver sua pele, e, em seguida, deixou-se afundar até os ombros, sentindo a resistência do líquido dar espaço a uma sensação de leveza.Kael entrou
A entrada para a floresta de Nyrathas era marcada por árvores altas e retorcidas, cujos galhos se entrelaçavam, formando um dossel tão denso que quase não deixava a luz atravessar. O ar ali era diferente, carregado de um frescor úmido e ao mesmo tempo pesado, como se cada respiração exigisse esforço.Eryon parou na beira da trilha, seus olhos absorvendo o máximo de informações sobre o terreno à sua frente, embora dentro dele algo gritasse que nada o prepararia para o que enfrentariam ali. Ele apertou as lâminas curvas em suas mãos, sentindo o segurança do peso do metal, um lembrete do que era real e palpável. Eyle e Lukon estavam logo atrás, o silêncio entre eles mais carregado do que o próprio ar da floresta.— Esse lugar... — começou Lukon, sua voz quebrando o silêncio. — É como se estivesse vivo.— Porque está — respondeu Eyle, seu tom mais pragmático. — Nunca estive aqui, mas reza a lenda que Nyrathas não é como as outras. Ela não é apenas uma floresta, é algo que sente, observa..
Eryon sentia os braços de Althea ao redor de seu corpo, o rosto dela enterrado em seu peito como se nunca mais quisesse soltá-lo. Sua respiração era irregular, quase entrecortada, enquanto um leve tremor em sua voz quebrava o silêncio.— Eu sabia que te encontraria. — O sussurro dela, carregado de alívio e emoção, cravou-se fundo no coração dele.Ele a segurou com igual intensidade, o coração acelerado, os dedos deslizando pelos cabelos escuros dela até alcançar a mecha prateada, que parecia brilhar com uma luz etérea. Naquele momento, tudo ao redor desapareceu, como se a própria floresta respeitasse a singularidade do reencontro.— Você está bem? — Ele perguntou, segurando o rosto dela entre as mãos, os polegares acariciando suavemente suas bochechas enquanto procurava por qualquer sinal de dor ou exaustão.Althea assentiu, mas seus olhos cinzentos brilhavam com lágrimas que teimavam em cair.— Eu sinto tanto a sua falta, Eryon.Antes que ele pudesse responder, Althea o puxou para um
Eryon pôs-se em pé, os sentidos em alerta máximo.— Quem está aí? — Ele perguntou, a voz firme, mas carregada de exaustão.Das sombras, uma figura surgiu. Uma mulher alta e esguia, diferente de qualquer outra que ele já havia visto. Sua pele era pálida, quase translúcida, e seus olhos verdes brilhavam com uma intensidade que parecia atravessar Eryon. Tinha uma beleza etérea, sim, mas de uma forma que parecia quase maligna. Vestia algo que parecia feito de fios de luz e trevas, os contornos de seu corpo destacando-se em uma perfeição quase sobrenatural.— Até que enfim nos encontramos, Eryon.A voz feminina era doce, sedutora, mas carregava algo que o fazia estremecer.— Quem é você? — Ele ergueu as lâminas curvas em um movimento instintivo, os músculos tensos enquanto dava um passo para trás.A mulher sorriu, um sorriso que parecia conter mil segredos. Seus longos cabelos, de um cobre profundo, ondulavam como se tocados por um vento invisível.— Eu sou Miralen — disse ela, a voz acari
O som da respiração de Althea ecoava pelo silêncio da caverna. Ela abriu os olhos, mas a escuridão ao seu redor não era a de um sono tranquilo. Era pesada, sufocante, e algo nela dizia que não estava sozinha.— Eryon? — Sua voz soou fraca, quase um sussurro.De repente, um brilho dourado atravessou a escuridão. Os olhos dele, tão familiares, cor de mel, pareciam buscar os seus. Ele estendeu a mão, e o gesto carregava uma ternura que Althea quase não se permitia lembrar. Por um instante, o peso que ela carregava pareceu diminuir. Tudo parecia certo.O toque dele foi como um bálsamo para o peito apertado dela, até que o calor suave de sua mão se transformou em algo gelado e penetrante, um frio que subiu por seu braço e roubou seu fôlego.— Eryon... — ela chamou, mas sua voz se perdeu na crescente escuridão.O sorriso dele desapareceu, e sua figura começou a se desfazer, consumida por sombras que rodopiavam ao redor dela.— Você não pode me salvar, Althea. — A voz dele soava distante, di