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forte alarido, vindo dos grandes sinos do pátio do colégio de São Paulo, alertava em alto e bom som, os habitantes da Villa de Piratininga, que algo de grande vulto estava em andamento. Ansiosos em saber o que ocorria, o povo da Villa largou rapidamente o que estava fazendo e saiu apressado para a praça do colégio. Apinhados no pátio, toda a Villa pode vislumbrar ao longe a chegada de uma das Bandeiras, que meses antes, havia se embrenhado pelos sertões. Isso agitou os corações aflitos daqueles que tinham amigos e familiares entre os Paulistas que compunham as tropas. O que viam, porém, não era aquilo que esperavam.
Dos milhares que saíram oito meses antes, poucas centenas retornavam em condições precárias. As crianças, assustadas, faziam silêncio, enquanto os adultos, esperançosos, procuravam reconhecer entre aquelas figuras maltrapilhas, alguma fisionomia familiar.
Dom Gabriel Farias, era o comandante daquela bandeira. Homem experimentado nos sertões, de forte personalidade e traços bem portugueses. Era reconhecido pela população, como um dos bravos heróis da Villa de Piratininga. Há anos nesta lida, já havia amealhado muitas conquistas e muitos escravos para suas fazendas de cana de açúcar. Andara, desde sua mocidade, em várias outras bandeiras, inclusive as de Manuel Preto.
Acostumado a reveses típicos do sertão e as gloriosas conquistas, chegava agora a Villa, pela primeira vez na vida, com as mãos vazias.
Na frente da tropa, ainda trazia a sua bandeira, descolorida e suja, expressando o que sobejara do orgulho paulista. Logo atrás, vinham os exaustos mestiços, em farrapos e alguns brancos que sobreviveram. Por último, alguns nativos da terra, aqueles que já estavam domesticados pelos Paulistas e que faziam parte agora também das incursões pelas matas dos sertões. Eram Guaranis, Tupis, Guaianás e outras tribos chamadas de “amigas”. Foram cerca de mil e trezentas almas, aquelas que meses atrás, partiram deixando familiares e amigos na Villa para a empreitada de apresamento, sertão adentro.
Conforme iam chegando, exauridos que estavam, deixavam as macas caírem ao chão. Descarregavam assim seus feridos e doentes que, sem forças, somente esperavam pelo socorro. Os padres do colégio, prestativos, logo chegaram e vieram ao encontro dos mesmos. A população, ainda em estado de choque, se aproximou lentamente, procurando seus conhecidos e familiares entre aqueles desgraçados homens. Com calorosos abraços e desesperadas crises de choro, recebiam seus amados, agora finalmente regressos ao lar, sem honra, sem glorias, apenas almas querendo um pouco de descanso e paz. No rosto de cada um, havia apenas o olhar de desilusão e cansaço. Dom Gabriel Farias logo se fez apresentar as autoridades da Villa.
Adentraram rapidamente para o interior do colégio, sob os olhos da população, que estupefata, aguardava ansiosa as noticias do lado de fora, para saber o que realmente havia ocorrido com aquela gente. Padre Nicolau Botelho, um inaciano vindo de Portugal e que estava na Villa já há alguns anos, era o clérigo de mais alto grau e o reitor do colégio de São Paulo. Recebeu Dom Gabriel em seu gabinete. O homem, beijando-lhe a destra, sentou-se a sua frente.
— Dom Gabriel... Que Deus abençoe vossa volta... Seja bem vindo a Villa!
— Agradeço sua hospitalidade, eminência, mas certamente Deus não me tenha abençoado como queria!
— Notei deveras, que vossa mercê teve muitas dificuldades desta vez! — Disse-lhe solicito o padre.
— Foram dias terríveis... Achei realmente que não veria mais os sinos do colégio ressoarem quando da minha chegada!
E padre Nicolau notou certo temor na voz do homem.
— O que deu errado, Dom Gabriel?
— Na verdade padre Nicolau, nem eu mesmo saberia os reais motivos desta desgraça... Tudo caminhava muito bem, já até estávamos retornando com nosso “ remédio”[1] em mãos... Até que...
— O que se sucedeu Dom Gabriel?
— Kaluanã... Padre, e seus guerreiros Guaicurus... Como um raio, caíram sobre nós, e nos assolaram ferozmente por mais de uma semana... Nunca havia visto coisa igual em meus mais de dez anos nesta vida...
Dom Gabriel arregalava os olhos, parecendo ainda estar vivendo as cenas que descrevia.
— Achava que este Kaluanã era apenas uma lenda entre os negros da terra Dom Gabriel?
— Ele existe em carne e osso padre! Este demônio é impiedoso...
— Feroz como o jaguar, grande como um cavalo... E forte padre... Como nenhum mortal desta terra... Eu mesmo o vi destroçando dez homens brancos com apenas sua borduna... Padre... Ele mede mais de dois metros de altura... É o próprio demo nas entranhas deste sertão!
E ficou por alguns segundos em silêncio, talvez se lembrando da figura de Kaluanã.
— Impressionante o relato que me trás vossa mercê... E o que houve depois?
— Após nos acossarem por vários dias, conseguiram finalmente que muitos dos nativos que nos acompanhavam debandassem apavorados... Ficamos assim com os mestiços e poucos brancos... E então, tivemos que fugir, deixando o que havíamos capturado para trás...
— Ainda nos perseguiram por alguns dias, mas sabe-se lá o porquê, acabaram nos deixando ir.
— Meu Deus Dom Gabriel... Foram muitas perdas?
— Centenas... Nunca vi, ou ouvi falar de coisa igual, estou realmente me sentido um derrotado! E o homem baixou a cabeça.
— Bem Dom Gabriel, o que importa agora é que vossa mercê está a salvo...
—Vou querer avisar a capitania padre... Alguém tem que retaliar estes selvagens! — Dizia agora com certo ódio no olhar.
— Sim... Certamente as autoridades o farão! Mas agora é tempo de desmontar a bandeira e colocar os pensamentos em ordem!
— Certamente Padre Nicolau... O que me consola é minha volta ao lar...
E assim partiu Dom Gabriel Farias, de volta para suas fazendas, levando alguns de seus empregados que estiveram com ele e deixando na Villa os que moravam ali. Passados alguns meses, todos na Villa ainda tinham bem vivo na memória, o desastre que fora a empreitada de Dom Gabriel. Resolvera junto com outros fazendeiros, se aventurar além das antigas reduções Jesuítas, destruídas por seus antecessores.
Em anos anteriores, vários outros Paulistas, como eram chamados, se programaram para sair em busca de mão de obra escrava. Muitos deles acabaram atacando as reduções jesuítas, mais próximas a Villa de São Paulo, achando mais fácil trazer aqueles que já estavam domesticados, e que não apresentavam maior resistência. Aniquilaram várias delas e fizeram muitos escravos, que eram comercializados entre os mercenários de São Vicente e fazendas de cana de açúcar da região.
Apesar das acusações que os missionários Inacianos lhes faziam, continuavam a se embrenhar sertão adentro em busca de mais mão de obra escrava. Atacando desta forma as reduções, não precisavam se arriscar a ir mais longe, em terras espanholas. Evitavam desta forma os ataques iminentes dos Guaicurus e de Kaluanã, frequentes naquele período. Sabiam que quanto mais afastados da Villa, Kaluanã os esperava em algum lugar. Tinham conhecimento dos riscos que corriam.
Mas com o passar dos meses, devido à escassez de homens para trabalhar nas novas lavouras, se fez novamente necessário ir à busca do que chamavam “Remédio” para a vida econômica da Villa. A mão de obra escassa, e o lucro nas vendas dos cativos para a Capitania e também a Santos era o motivo de saírem aos sertões novamente.
E assim, novas bandeiras como a de Dom Gabriel saíram em busca de mais nativos. Como as reduções próximas a Villa já haviam sido dizimadas, era necessário avançar e adentrar o sertão pelas rotas antigas em busca de outras reduções ou tribos menos resistentes. Isso demandava meses a mais de caminhada e uma invasão as terras espanholas.
E após encontrar e atacar uma tribo de Tabajás e destruí-la por completo, Dom Gabriel conseguiu centenas de nativos que agora levaria acorrentados de volta a Villa. O que ele não esperava, e que o surpreendeu terrivelmente, foi à chegada silenciosa e organizada dos Guaicurus. Violentamente deram contra ele e seus homens. Por dias foram demasiadamente fustigados até que resolveram abandonar suas presas e fugir de volta a Villa. Durante a fuga, os Guaicurus ainda os perseguiram por muitas léguas, até que finalmente os deixaram ir.
Kaluanã era o guerreiro Guaicuru que comandou o ataque a Dom Gabriel. Ainda menino, entre seis e sete anos de idade, viu sua tribo ser dizimada por uma grande bandeira do temível bandeirante paulista, Raposo Tavares. Isso foi além do rio Paraguai, já em terras espanholas e muitas léguas das terras Paulistas. Aqueles que sobreviveram foram levados acorrentados há muitos anos atrás para a longínqua Villa de Piratininga, e assim, o menino sozinho procurou sobreviver do que aprendera de seu pai e de seu velho tutor.
Kaluanã era da tribo dos Krenacore, da língua Jê, mesma dos Kayapó. Também conhecida entre as outras tribos como a tribo dos Índios Gigantes. Filho do cacique Piatã e de Iacyna, crescera pajeado por Yemandú, um grande amigo de seu pai e o pajé da tribo.
A grande estatura física que muitos entre eles chegavam, ultrapassava os dois metros e foi o motivo de serem chamados de os Panarás, os ‘índios Gigantes’. Kaluanã e alguns dos meninos, que escaparam naquele sangrento ataque, acabaram sendo capturados pelos Guaicurus tempos depois. Ele acabou sendo criado pelo chefe da tribo Guaicuru.
Com o passar dos anos, começou a se destacar entre eles por ser corpulento e de elevada altura. Todos na aldeia o respeitavam e ninguém lhe era páreo nas disputas e jogos tribais. Tornara-se um jovem inteligente e de extrema força física. Hábil no arco e no tacape sabia montar como nenhum outro Guaicuru. Aliás, eram os únicos indígenas que possuíam montaria, herdadas, muitas vezes, dos embates com as bandeiras e incursões Portuguesas pelos sertões. Aprenderam a domar os cavalos e fazerem deles, armas de guerra. Era uma tribo temida, tanto pelos filhos da terra, como pelos mestiços e brancos.
Os Guaicurus enfim se tornaram um grande empecilho aos bandeirantes Paulistas, que necessitando de mais apresamentos acabavam se infiltrando ainda mais pelo sertão adentro, ficando a mercê dos ataques de Kaluanã e seus guerreiros. E assim também se sucedeu a bandeira de João Dias filho. Partira de Piratininga quase no mesmo mês que Dom Gabriel Farias, mas marchou rumo ao sul, abaixo do Paraguai, terras Portuguesas, e ali, meses depois, conseguiu submeter os Kayapó. Estavam trazendo cerca de quinhentas almas quando foram surpreendidos por Kaluanã. A batalha foi muito acirrada para os bandeirantes, que mais uma vez acabaram subjugados pelos guerreiros Guaicurus. João Dias e seus homens foram expulsos daquelas matas em debandada.
Muitos sucumbiram diante dos nativos de Kaluanã e outros se perderam pelo caminho de volta a Villa. Dos mais de mil e duzentos homens que saíram da Villa, pouco mais de quatrocentos conseguiram retornar a salvo. Entre eles, o próprio João Dias.
[1] - Mão de Obra Escrava
CAPITULO II A visão dos combalidos bandeirantes chegando a Villa de Piratininga remeteu a população a se lembrar da chegada de Dom Gabriel meses antes. Eram os mesmos rostos cansados e desiludidos, os mesmos feridos, a mesma baixa estima. Mal chegaram e o povo veio lhes acudir. Padre Nicolau os recebeu fraternalmente e pediu que os feridos e doentes fossem levados à enfermaria do colégio. João Dias se reuniu com as autoridades da Villa e lhes relatou o ocorrido. Fora surpreendido pelos Guaicurus e não houve como enfrentá-los, tamanha era a ferocidade e força com que os atacaram. Não soube dizer a quantidade de guerreiros de Kaluanã, ma
CAPITULO III M uitas léguas dali, uma grande fogueira mantinha a carne de uma “Tapira”[1], assando lentamente, enquanto alguns guerreiros Guaicurus dançavam ao redor dela. Pintados e carregando seus colares no pescoço, entoavam canções nativas enquanto em seus tornozelos, as maracas de pequi soavam numa compassada melodia. A harmonia daquele momento trazia conforto a toda tribo. Alegremente cantavam e dançavam despreocupados com a vida. Kaluanã, sentado a frente da grande fogueira, tinha ao seu lado o cacique Apoema, que placidamente observava feliz, seus aldeões dançando. Kaluanã lembrou-se dos tempos em que os Panarás fazia
CAPITULO IV A s tropas de Felipe de Santa Cruz já avançavam léguas de São Paulo. A marcha era intensa e a tropa percorria distâncias rapidamente pelas trilhas já abertas pelas bandeiras anteriores. Acauã, agora mais avançado, verificava se a trilha e arredores estavam realmente seguros. Acampavam ao anoitecer e já de madrugada, saíam novamente em marcha. Durante vinte dias percorreram cerca de quase oitenta léguas sertão adentro. O deslocamento da bandeira era vigiado ao longe pelas tribos que habitavam os arredores. Assim que se aproximavam, todos abandonavam as aldeias e se embrenhavam pelas matas, fugindo do que achavam ser uma expedição de apresamento. &n
CAPITULO V A li, as voltas da grande clareira, as sentinelas pareciam estar um pouco perturbadas. Acauã foi até onde estavam algumas delas e ali permaneceu por algum tempo. O mesmo sentimento de perigo que lhe havia roubado o sono estava da mesma forma permeando a alma daqueles nativos. Alertas aos menores movimentos e sons, pareciam apavorados pelas sombras da noite, que escurecia tudo e não deixava ver além de alguns metros a frente. Estavam apenas orientando-se pelo cheiro e pelo barulho da floresta. Sabiam que as feras estavam por ali e mais do que as feras, temiam a chegada inesperada e mortal de Kaluanã. De repente,
CAPITULO VI O vulto do grande guerreiro percorria o arraial onde estavam os Guaicurus. Kaluanã andava solitário em volta do fogo, invocando os espíritos da selva. Por horas ficou ali; Não dormiu e não comeu nada desde o primeiro ataque. Ao perceber as primeiras luzes da manhã, convocou seus guerreiros que se posicionaram a sua volta. Todos retocaram as pinturas e encheram suas aljavas. Em uníssono, soltavam urros clamando pelo espírito da guerra. Kaluanã imóvel observava o céu. — Águas pesadas irão nos castigar durante esta batalha, mas ainda mais aos karaíbas! Guerreiros Guaicurus é chegado o momento de a grande Floresta nos libertar dos demônios
CAPITULO VII A distância entre Kaluanã e os homens de Santa Cruz era muito grande para os flecheiros, mas não para as armas dos Karaíbas. Kaluanã precisava atacar os homens de frente e avançar o mais próximo da clareira. Sabia que o seu primeiro ataque desencadearia o furor da artilharia, que estava bem posicionada. Contava, porém com o tempo que perderiam no recarregar as armas e assim aproveitaria para se aproximar e tentar um combate corpo a corpo. Era preciso calcular o tempo e não errar. Os primeiros guerreiros se aproximaram a uma distância onde poderiam lançar as setas. Atrás das árvores se protegiam de um contra ataque dos mosquetes.
CAPITULO VIII O combate foi cruel e mortal. Os primeiros Guaicurus sucumbiram, mas dezenas logo apareceram e Acauã avançou contra eles. Seus homens o seguiram e ali se travou uma batalha mortal entre bordunas e adagas. Os Guaicurus eram realmente ferozes e atacavam energicamente os homens de Acauã, que sabia serem mais fortes e ágeis com suas adagas. A quantidade de guerreiros, porém era demasiadamente desproporcional e então alguns deles acabaram sendo mortos rapidamente. Acauã avançava facilmente sobre os Guaicurus, que se assustaram ao encontrar entre os inimigos um mestiço tão forte e grande como ele. Acauã se defendia e atacava co
CAPITULO IX E assim Acauã e os capitães de Felipe resolveram que ao raiar do dia sairiam e enfrentariam os Guaicurus numa tentativa de buscarem a fuga. Sabiam dos riscos que corriam, mas não havia alternativa senão enfrentar Kaluanã frente a frente. Se tivessem que sucumbir, que fosse enfrentando o inimigo e não morrendo a mingua sob um cerco mortífero e cruel. As horas que antecipavam as primeiras luzes do dia chegavam trazendo ansiedade e temor a todos na clareira. Era a chance que teriam de tentar uma fuga pelas trilhas e salvarem suas vidas. Porém, teriam que enfrentar Kaluanã e suas hostes e o q