A
s tropas de Felipe de Santa Cruz já avançavam léguas de São Paulo. A marcha era intensa e a tropa percorria distâncias rapidamente pelas trilhas já abertas pelas bandeiras anteriores. Acauã, agora mais avançado, verificava se a trilha e arredores estavam realmente seguros. Acampavam ao anoitecer e já de madrugada, saíam novamente em marcha. Durante vinte dias percorreram cerca de quase oitenta léguas sertão adentro. O deslocamento da bandeira era vigiado ao longe pelas tribos que habitavam os arredores. Assim que se aproximavam, todos abandonavam as aldeias e se embrenhavam pelas matas, fugindo do que achavam ser uma expedição de apresamento.
A notícia da vinda de uma grande tropa de São Paulo se dirigindo ao norte do grande rio, chegou até o conhecimento dos Guaicurus. Kaluanã então pediu que espias fossem além do rio ao encontro da bandeira. Queria todas as informações que pudesse obter. Quantos homens havia, quantos estavam armados e a que distância estavam. Os espias saíram apressadamente assim que receberam as ordens de Kaluanã e cerca de trinta dias depois retornaram. Soube então que era uma bandeira com mais de mil e quinhentos homens, bem armados e equipados.
Ainda estavam a uma grande distância além do rio, mas certamente chegariam até as margens brevemente. Kaluanã teria tempo suficiente para preparar uma emboscada, léguas longe do rio e da aldeia. Pediu uma audiência com os caciques das tribos próximas, de quem eram amigos, e assim conseguiu junto a eles, um contingente de mil guerreiros que iriam compor seu exército de nativos. Eram das tribos Bororos, Guatós, Caiuás e Terenas.
Durante mais de uma semana, prepararam as armas e as estratégias de ataque. Kaluanã sabia que tinha guerreiros mais que suficientes para exterminar por completo esta expedição e então, atravessando o grande rio, se embrenhou na floresta a fim de escolher o melhor lugar para atacá-los.
Por vários dias caminharam em silêncio, movendo-se pelas trilhas paralelas, que somente eles conheciam. Dez dias de caminhada e chegaram a um local que Kaluanã bem conhecia e que estava muito próximo da trilha onde as tropas de Felipe Santa Cruz percorreriam. Ali, montaram acampamento e ficaram a espera dos Karaíbas. Como as grandes sucuris, pacientemente esperariam o momento certo para dar o bote fatal.
Naqueles dias, porém, uma grande tormenta caiu em toda a região, dificultando penosamente o deslocamento de Felipe e seus homens. Resolveram que percorreriam o resto do caminho a pé, deixando os animais com uma pequena tropa em uma das clareiras que haviam pernoitado. Desta forma, poderiam percorrer as trilhas mais antigas que eram bem mais estreitas onde os animais teriam dificuldades em se deslocar.
A chuva não dava trégua e o medo era de que a pólvora pudesse umedecer, perdendo assim sua finalidade primordial. Os baús revestidos de couro eram protegidos agora duplamente.
Acauã, a esta altura, estava ainda mais alerta. Pediu a seus homens que ficassem de ouvidos e olhos atentos ao extremo.
Qualquer movimento suspeito seria dado o alarme. Sabia que Kaluanã poderia estar em qualquer lugar, monitorando a todos.
As terras longínquas eram agora para Acauã um lugar desconhecido. Nunca viera tão longe. A vegetação já se destoava daquelas que ele bem conhecia e as trilhas que agora percorriam somente Felipe, alguns mestiços e os nativos conheciam. Sabia apenas que estava próximo do grande rio Paraguai. Uns cinco ou seis dias e chegariam as suas margens. Lá chegando, cortariam os troncos para as canoas e atravessariam, indo em busca dos Guaicurus.
Havia, porém o risco de serem surpreendidos no meio do caminho por Kaluanã, como fizera a Dom Gabriel e a João Dias, mas estavam preparados para as possíveis emboscadas. Seus mosquetes eram em número bem maior do que as duas outras tropas que enfrentaram os Guaicurus e isso, para eles, lhes davam certa vantagem e tranquilidade.
A chuva contínua e pesada persistia em castigar as tropas de Felipe Santa Cruz, que agora avançavam vagarosamente pelas trilhas encharcadas. Acauã nunca estivera numa situação parecida e realmente estava preocupado com o tempo ruim. Mal dava para enxergar com nitidez e os cuidados com os baús de pólvora precisavam ser redobrados.
Cansados por mais uma longa jornada, Felipe resolveu que iriam montar acampamento numa grande clareira que se avistava logo à frente. A chuva havia diminuído um pouco e isso os ajudou para que armassem as redes e pudessem enfim descansar. Sentinelas ficaram dispostas a uma boa distância e assim teriam tempo de reagir, caso algum alarme fosse dado. A noite chegou rapidamente e com ela, uma negritude que parecia palpável. Não se enxergava nada além de uns cinco metros. Fogueiras foram acessas e as tropas enfim, poderiam fazer uma refeição depois de um dia inteiro de labuta. A chuva havia dado finalmente uma trégua.
Os sons da mata se mesclavam com os das grossas gotas, que ainda caíam das altas copas. Os sapos em seus charcos cantavam díspares, as várias melodias da floresta. Felipe Santa Cruz estava preocupado com a situação da pólvora e pediu a seus homens que verificassem as condições. Os relatos não eram nada animadores. Muitos baús haviam se encharcado tanto que a umidade havia migrado para dentro de boa parte deles. Os que estavam em perfeitas condições poderiam de imediato suprir as necessidades de um possível assalto dos Guaicurus, mas se precisassem alastrar por muito tempo um embate, as coisas poderiam ficar de certa forma complicada.
Os mosquetes, pistolas e espingardas, estavam carregados e assim, num primeiro momento, tinham como se defender. Acauã, sempre alerta, tentava ouvir de dentro da mata, algo diferente. Um ruído de passos sobre as folhas, a quebra de pequenos galhos, ou mesmo da corrida de algum animal assustado por alguma coisa. Tudo, porém estava silencioso. Somente os sapos e alguns outros animais noturnos faziam barulho. A noite adentrou pelas horas e Acauã não conseguia dormir. Seu corpo estava em alerta, como se pressentisse que algo estava para acontecer. Procurou novamente ouvir algo de dentro da densa floresta, mas não conseguiu discernir nada.
Resolveu então andar um pouco além da clareira. Seus pés descalços enterravam-se na lama, que ainda se mantinha pegajosa. Sentia o cheiro da mata, dos bichos e das flores. Tudo parecia estar num mesmo mundo, harmoniosamente equilibrado. Sentia-se como se estivesse em casa. Era uma sensação que poucas vezes vivera. A força que a floresta exercia sobre ele era algo muito forte. Amava-a como amava sua própria mãe. Gostava de sentir a terra sob seus pés, a frescura da água das cachoeiras, o sabor dos frutos da mata. Tinha, porém seu lado branco.
Os trabalhos na lavoura de cana e trigo, as festas da Villa e o sabor do vinho. Invejava às vezes os nativos, que livremente iam e vinham da floresta trazendo suas caças e o mel silvestre.
Adorava o mel, e queria aprender como encontrá-lo assim como os nativos faziam. Havia, porém os meleiros, índios especificamente treinados para a busca do mel. Por anos se especializaram nesta tarefa e eram realmente exímios caçadores de colmeias. Naquela mesma tropa de Felipe Santa Cruz havia cerca de dezenas deles.
Ao avistarem as abelhas na mata não a perdiam de vista e a acompanhavam por onde ela se dirigia. Escalando troncos, se desviando de galhos e cipós, adentravam a mata e não a perdiam de vista. Era como se seus olhos estivessem grudados nelas. Às vezes percorriam horas perseguindo-as até que encontravam as colmeias. Era algo realmente fantástico o que faziam.
E Acauã os achava às vezes, superiores a ele, apesar de ser muito mais forte, inteligente e corajoso. Na verdade não se sentia nem índio nem branco, apenas era Acauã, aquele que amava as matas e a liberdade.
Não se incomodava em ser filho de uma escrava e também parecia não sentir afeição aos portugueses. Quanto às bandeiras, aprendera desde sempre que era uma necessidade da Villa ter escravos para as lavouras, já que os colonos Paulistas não eram senhores de posses que poderiam ter seus nativos da África como nas capitanias. Não os destratava, mas também se mantinha longe de sua convivência. Vivia com seus irmãos mestiços, pois parecia que experimentavam do mesmo sentimento.
CAPITULO V A li, as voltas da grande clareira, as sentinelas pareciam estar um pouco perturbadas. Acauã foi até onde estavam algumas delas e ali permaneceu por algum tempo. O mesmo sentimento de perigo que lhe havia roubado o sono estava da mesma forma permeando a alma daqueles nativos. Alertas aos menores movimentos e sons, pareciam apavorados pelas sombras da noite, que escurecia tudo e não deixava ver além de alguns metros a frente. Estavam apenas orientando-se pelo cheiro e pelo barulho da floresta. Sabiam que as feras estavam por ali e mais do que as feras, temiam a chegada inesperada e mortal de Kaluanã. De repente,
CAPITULO VI O vulto do grande guerreiro percorria o arraial onde estavam os Guaicurus. Kaluanã andava solitário em volta do fogo, invocando os espíritos da selva. Por horas ficou ali; Não dormiu e não comeu nada desde o primeiro ataque. Ao perceber as primeiras luzes da manhã, convocou seus guerreiros que se posicionaram a sua volta. Todos retocaram as pinturas e encheram suas aljavas. Em uníssono, soltavam urros clamando pelo espírito da guerra. Kaluanã imóvel observava o céu. — Águas pesadas irão nos castigar durante esta batalha, mas ainda mais aos karaíbas! Guerreiros Guaicurus é chegado o momento de a grande Floresta nos libertar dos demônios
CAPITULO VII A distância entre Kaluanã e os homens de Santa Cruz era muito grande para os flecheiros, mas não para as armas dos Karaíbas. Kaluanã precisava atacar os homens de frente e avançar o mais próximo da clareira. Sabia que o seu primeiro ataque desencadearia o furor da artilharia, que estava bem posicionada. Contava, porém com o tempo que perderiam no recarregar as armas e assim aproveitaria para se aproximar e tentar um combate corpo a corpo. Era preciso calcular o tempo e não errar. Os primeiros guerreiros se aproximaram a uma distância onde poderiam lançar as setas. Atrás das árvores se protegiam de um contra ataque dos mosquetes.
CAPITULO VIII O combate foi cruel e mortal. Os primeiros Guaicurus sucumbiram, mas dezenas logo apareceram e Acauã avançou contra eles. Seus homens o seguiram e ali se travou uma batalha mortal entre bordunas e adagas. Os Guaicurus eram realmente ferozes e atacavam energicamente os homens de Acauã, que sabia serem mais fortes e ágeis com suas adagas. A quantidade de guerreiros, porém era demasiadamente desproporcional e então alguns deles acabaram sendo mortos rapidamente. Acauã avançava facilmente sobre os Guaicurus, que se assustaram ao encontrar entre os inimigos um mestiço tão forte e grande como ele. Acauã se defendia e atacava co
CAPITULO IX E assim Acauã e os capitães de Felipe resolveram que ao raiar do dia sairiam e enfrentariam os Guaicurus numa tentativa de buscarem a fuga. Sabiam dos riscos que corriam, mas não havia alternativa senão enfrentar Kaluanã frente a frente. Se tivessem que sucumbir, que fosse enfrentando o inimigo e não morrendo a mingua sob um cerco mortífero e cruel. As horas que antecipavam as primeiras luzes do dia chegavam trazendo ansiedade e temor a todos na clareira. Era a chance que teriam de tentar uma fuga pelas trilhas e salvarem suas vidas. Porém, teriam que enfrentar Kaluanã e suas hostes e o q
CAPITULO X O s Guaicurus atravessaram o grande rio e voltaram para a aldeia carregando seus mortos. A tribo toda se reuniu e pranteou por dias a morte de tantos guerreiros. Terminado os preparativos, os corpos foram enfaixados e colocados sob uma esteira que seria conduzida por um cavalo até o local sagrado. Comidas, e animais mortos eram separados para irem junto. Abriam-se as covas e os corpos eram cuidadosamente depositados. Sob elas uma esteira era colocada e ao seu lado as comidas e jarros de água. Aqueles guerreiros mais importantes tinham seus cavalos sacrificados e enterrados a parte. Acreditavam que no mundo dos mortos estes guerreiros ainda precisariam deles. Suas armas e um poste com vários utens
CAPITULO XI A manhã logo chegou e Kaluanã não pregara o olho. Ficara pensando na conversa que tinha tido com Acauã. Suas revelações o haviam impactado profundamente. Não acreditava mais em um dia reaver alguém de sua tribo natal, e mais ainda sendo ele um mestiço. Isso o deixou ao mesmo tempo ansioso e frustrado. Ansioso em querer saber como Acauã chegara até ali e de que tribo ele realmente era descendente. E Frustrado por ser ele um possível Panará a serviço de seus piores inimigos. Desde que o atacara na floresta, viu que usava em seu pescoço aquele colar que lhe era familiar. Quando finalmente lhe arrancou, pode ver o símbolo de sua tribo entalhada nele. Fora isso o motivo de n
CAPITULO XII K aluanã chegou junto com a noite e Apoema o aguardava. Ao vê-lo entrar no arraial foi ao seu encontro. — Vejo que já encontrou suas respostas Kaluanã... — Apoema... — Respondeu surpreso ao vê-lo ali. — Estava a sua espera... — Aconteceu alguma coisa? O prisioneiro? — Não, está tudo bem... Ele continua no mesmo lugar. — Então o quer de mim? — Saber se seus fantasmas ainda o afligem... Kaluanã silenciou-se por um momento. Parecia procurar algo em seus pensamentos. — Muitos deles ainda me cercam Apoema... — Acho que será melhor enfrentá-los de uma v